Leny Sato


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A vida cotidiana no trabalho: a ambigüidade possibilitando múltiplas leituras

 

A oportunidade de ter leitores debatendo idéias e pontos de vista a partir de uma leitura da realidade de saúde & trabalho por mim apresentada neste artigo, antecipa algumas reflexões e posicionamentos dentre tantos outros possíveis que poderão se fazer presentes nas diversas leituras. Um texto sempre traz um sem-número de possibilidades de interpretação, como sabemos, e possibilita ancorar distintos racionais, quer para corroborar, quer para refutar suas proposições, e essa multiplicidade é potencializada pelo fato de estarmos aqui situados num campo em que diversas disciplinas e profissionais nele atuam: a Saúde do Trabalhador.

Da multiplicidade de temas levantados pelos debatedores e que poderiam ser por mim eleitos para dar continuidade ao debate, tomo em especial aquele que parece ter assumido especial relevância: os significados e os reflexos das negociações cotidianas para as relações de trabalho (regulamentação, desregulamentação) e para as condições de saúde e trabalho. Para Victor Wünsch Filho, Raquel Rigotto e Elizabeth Costa Dias, a leitura sobre a descrição dos fenômenos suscitou avaliações e sentimentos de esperança, possibilidade de alcançar a liberdade e a conclusão de que nem tudo está dominado. Para Carlos Machado de Freitas, as negociações cotidianas, ao contrário, estariam no âmbito da subpolítica e poderiam vir ao encontro da intensificação da precarização das relações de trabalho, expresso, entre nós, por exemplo, na flexibilização da CLT; preocupação nesse mesmo sentido é também expressa por Wünsch Filho, ao afirmar que o debate sobre as negociações cotidianas torna-se atual frente às mudanças das "relações de trabalho contemporâneas".

O estudo das micronegociações situa-se no âmbito dos estudos sobre o cotidiano e, como tal, não focaliza aqueles processos desenvolvidos pelos sujeitos políticos instituídos, como as negociações coletivas. Ao contrário, dirige a atenção para o dia-a-dia, no qual o trabalho, os trabalhadores, as relações de poder, as resistências, as imposições hierárquicas e as negociações se dão. Focaliza o comezinho, o não memorável, a vida comum de todo o homem no local de trabalho. Nesse âmbito, focalizam-se os processos nos quais, como afirma Wünsch Filho, "proporcionam a contínua definição e redefinição de múltiplos coletivos", ao modo do que Thompson (1998), descreve como as negociações desenvolvidas pelas "multidões", as quais "têm todos os formatos e tamanhos" (Thompson, 1998:82), e é volátil. Conforme Tedesco (1999:23), o campo da sociologia do cotidiano tem o mérito de "o mesmo demonstrar a possibilidade de estabelecer ligações entre os grandes dispositivos sociais e os que regulam a vida cotidiana, bem como em resgatar o reaparecimento do sujeito face às estruturas, aos sistemas e ao instituído no vivido". Assim, o campo de estudos do cotidiano abre a possibilidade de se reconhecer as ambigüidades, a dinâmica conformismo e resistência (Chaui, 1993), e a da deferência e rebeldia (Thompson, 1998); enfim, fenômenos que são isto e aquilo ao mesmo tempo (Chaui, 1993). Não é sem razão, então, que a tematização das micronegociações suscita tanto avaliações e reflexões de otimismo - em que a liberdade do homem comum parece ser possível - e aquelas que tomam a vida cotidiana como o espaço da impossibilidade de escapar à estrutura social.

É próprio do estudo do cotidiano pesquisar a relação entre o todo e a parte (Diehl, 1999), compreender as interações face-a-face, os processos grupais, e toda uma série de dinâmicas interativas que constroem a tecitura dos lugares, dando-lhe formas, conteúdos, corpo. Sendo assim, se focalizei no estudo um âmbito da realidade social e simbólica, isso não significa que tenha tido a intenção de apresentar um "remédio" ou um único caminho através do qual a negociação, visando o replanejamento do trabalho, deva dar-se. Procurei ilustrar, descrever e compreender um tipo de interação negociada que também redunda no replanejamento do trabalho. Assim, longe de ter a intenção de propor que as negociações cotidianas venham a substituir as negociações em outros níveis, no artigo, afirmo: "Entendemos, seguindo Gardell (1982b), que o replanejamento do trabalho visando a promoção da saúde, deverá ser conduzida em múltiplos níveis - o das centrais sindicais, dos sindicatos, das OLTs e CIPAs e dos trabalhadores comuns - aproveitando-se da força que cada um deles tem", posição essa apreendida na leitura de Wünsch Filho. Pretendo, enfim, ilustrar que o cotidiano é também o espaço no qual o mundo acontece e que nele, as negociações ocorrem de um modo peculiar, onde homens e mulheres desinvestidos do papel de representação, os quais, nos moldes da multidão descrita por Thompson (1998), impõem o limite da exploração através de uma espécie de "sensibilidade irritável", em que, no momento estudado por ele, o início do século XVIII, "a subordinação está se tornando objeto de negociação (embora entre partes gritantemente desiguais" (Thompson, 1998:42). Assim sendo, se concordo com Freitas, em seu texto de debate, que tais negociações são a continuidade de "tantas outras que sempre ocorreram nos locais de trabalho, desde os primórdios da industrialização", não considero que descrever e tomar o cotidiano e as negociações que aí ocorrem devam ser acompanhados do advérbio simplesmente. Como afirma Freitas, embora possam não ser novas, para nós assim serão, caso as ignoremos. E se isso ocorre, fenômenos que pretendemos estudar no campo da Saúde do Trabalhador são deixados de lado, como se fossem de somenos importância. No entanto, se por ignorá-los eles não existem para nós, isso não significa que não existam para outros, para os trabalhadores que cotidianamente se vêem na urgência de enfrentar, com a força e a fraqueza que têm, o dia-a-dia. Trata-se, como diz Certeau (1994), de encontrar formas de escapar ao poder, sem deixá-lo.

Ao descrever esses fenômenos (e descrever, entendo, é já um trabalho de interpretação), não me propus - e nem teria o poder para tanto - a incentivar ou prever que as micronegociações sejam uma "tendência atual de transformar as necessidades coletivas em atos individuais ou mesmo de pequenos grupos", como pontua Freitas. O mundo no chão de fábrica tem uma dinâmica própria, existe para além do nosso olhar! Ao contrário, como pesquisadora, a minha intenção é propor uma leitura possível sobre o cotidiano de trabalho e, nele, sobre a saúde dos trabalhadores. Isso não significa, entretanto, que acredite ser possível alcançar a "neutralidade" científica, mas pus-me, ao lado dos trabalhadores, por cerca de oito meses, acompanhando o dia-a-dia, vendo e procurando compreender a visão que eles tinham sobre o seu trabalho, sobre sua saúde, sobre os problemas que enfrentavam e como lidavam com as constrições, esforços e com o sofrimento. E nesse processo, nem sempre vemos aquilo que descansa nossos olhos e acalma nossos sentimentos. Nesse sentido, aponto que as micronegociações têm limites; que além delas, existem negociações frustradas e imposições de mudanças a partir da gerência. De modo algum, trata-se de considerar que o problema de saúde do trabalhador esteja resolvido com essas micronegociações.

Entendo que no campo da Saúde do Trabalhador, também o cotidiano é um dos focos privilegiados de atenção: o que fazemos quando desenvolvemos os estudos empíricos sobre condições de trabalho e saúde? O que se faz quando se dirige para as atividades de vigilância nos locais de trabalho? Focaliza-se o cotidiano, as condições de trabalho diariamente enfrentadas pelos trabalhadores - a "microfísica do trabalho" como disse Wünsch Filho em seu texto de debate - afinal, são essas as condições cotidianas, que entendo, se pretende conhecer e mudar. Focalizar o cotidiano de trabalho, certamente, não implica em abstrai-lo da estrutura social (infra e superestrutura), mas tampouco, deduzir o seu funcionamento a partir desta estrutura. Isso tudo nos mostra que a vida cotidiana não é simples, a não ser que o nosso olhar a simplifique.

Retoma-se aqui, o debate, sempre em pauta sobre as grandes questões para as ciências sociais e humanas: a relação indivíduo-sociedade, individual-coletivo, mundo objetivo-mundo subjetivo, realidade material-realidade simbólica.

Outra dimensão importante, levantada por Rigotto, diz respeito aos significados possíveis de serem construídos e a experiência "indelével" acerca da possibilidade, ainda que limitada, de pensar de outro modo e de provocar o questionando da ideologia gerencial, ainda que não a desmonte, ainda que continue existindo - como também lembrou Dias em seu texto de debate - o hiato entre o trabalho prescrito e o trabalho real. Sabem os trabalhadores que, dada a assimetria de poder presente no espaço fabril, eles devem controlar a expressão do mundo subjetivo, sabem que estão num palco - nos moldes descritos por Goffman (1985) - e que a invenção deve ser tática, aproveitando as oportunidades que se apresentam a conjuntura (Certeau, 1994; Thompson, 1998).

Sobre a atuação dos profissionais da área de saúde do trabalhador, presentificada neste debate, por exemplo, em Rigotto e em Mendes, reafirmo que se atribuímos estatuto epistemológico ao conhecimento/subjetividade operária (Boltanski, 1989; Moscovici, 1961; Oddone et al., 1986) e com ele dialogamos, parece-me ser uma decorrência lógica considerar que as micronegociações têm estatuto político e que põem em prática o que esse conhecimento constrói. Se o primeiro difere do conhecimento construído pelas diversas ciências, as segundas também diferem das negociações em outros níveis. Reconhecer e compreender esses fenômenos sempre será um bom ponto de partida para a construção do diálogo com os trabalhadores e seus órgãos de representação, para a condução das práticas profissionais em saúde do trabalhador.

 

 

Referências

 

BOLTANSKI, L., 1989. As Classes Sociais e o Corpo. Rio de Janeiro: Graal.

CERTEAU, M., 1994. A Invenção do Cotidiano - Artes de Fazer. Petrópolis: Vozes.

CHAUI, M., 1993. Conformismo e Resistência. Aspectos da Cultura Popular no Brasil. São Paulo: Brasiliense.

DIEHL, A. A., 1999. Apresentação. In: Paradigmas do Cotidiano: Introdução à Constituição de um Campo de Análise Social (J. C. Tedesco, org.), pp. 7-10, Santa Cruz do Sul: Edunisc.

GOFFMAN, E., 1985. A Representação do Eu na Vida Cotidiana. Petrópolis: Vozes.

MOSCOVICI, S., 1961. A Representação Social da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar.

ODDONE, I.; MARRI, G.; GLÓRIA, S.; BRIANTE, G.; CHIATTELLA, M. & RE, A., 1986. Ambiente de Trabalho - A Luta dos Trabalhadores pela Saúde. São Paulo: Editora Hucitec.

TEDESCO, J. C., 1999. Paradigmas do Cotidiano: Introdução à Constituição de um Campo de Análise Social. Santa Cruz do Sul: Edunisc.

THOMPSON, E. P., 1998. Costumes em Comum - Estudos sobre a Cultura Popular Tradicional. São Paulo: Companhia das Letras.

 

 

Recebido em 7 de março de 2001
Versão final reapresentada em 16 de julho de 2001
Aprovado em 6 de agosto de 2001

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