ARTIGO ARTICLE
Romeu Gomes 1 | As representações sociais e a experiência da doença
Social representations and the experience of illness
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1 Pós-Graduação em Saúde da Criança e da Mulher, Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz. Av. Rui Barbosa 716, 2o andar, Rio de Janeiro, RJ 22250-020, Brasil. | Abstract This article analyzes the relationship between social representations and the experience of illness. The study is a critical review of the debate on illness. The work focuses on (a) a review of the concept of "social representations of illness"; (b) key aspects of the experience of illness and; (c) principles for understanding the illness process. The authors also emphasize the necessary link between the experience of illness and the context of its material and symbolic production.
Resumo O artigo objetiva analisar as relações entre representações sociais e a experiência da doença. O estudo é uma revisão crítica sobre a discussão da doença. O trabalho é constituído de: (a) resgate da utilização do conceito de representações sociais da doença; (b) aspectos sobre a experiência da doença; e (c) princípios para a compreensão do processo do adoecer. Como conclusão, os autores destacam a necessária articulação entre a experiência da doença e seu contexto de produção material e simbólica. |
Considerações iniciais
Cada vez mais verificamos que, no campo da saúde coletiva, são desenvolvidos estudos sobre as representações da doença e da saúde. A categoria representações sociais (RS) tem sido objeto de reflexão, sendo utilizada como referencial teórico-metodológico nesse campo. Muitos estudos baseiam-se na teoria das representações sociais (Moscovici, 1978) e outros, a exemplo de Minayo (1994) e Cardoso & Gomes (2000), fundamentam-se em outros referenciais das ciências sociais.
Apesar de as chamadas RS serem amplamente utilizadas na pesquisa social em saúde, acreditamos que tanto o seu conceito como o seu uso devam ser mais problematizados. Junto a essas considerações, como bem observa Herzlich (1991) na explicação das condutas, outros aspectos, além das representações, devem ser levados em conta. Segundo a autora, o principal limite da noção de representação social reside na generalidade do nível de análise que ela constitui, fazendo dela uma metanoção. Ciente desse limite, "uma das tarefas do sociólogo pode ser a de indicar de que modo essas representações estão enraizadas na realidade social e histórica, ao mesmo tempo em que contribuem para construí-la" (Herzlilch, 1991:32).
Alves & Rabelo (1998:108) trazem um debate no sentido de se repensar os estudos sobre as RS e as práticas em saúde e doença, assinalando que tem havido uma "nítida relação de determinação das representações sobre as práticas, de tal forma que essas últimas são vistas como passíveis de ser deduzidas do sistema construído de representações".
Segundo os autores, a cisão entre representações e práticas se relaciona a outras dicotomias já conhecidas entre ação e estrutura, subjetividade e objetividade, indivíduo e sociedade, corpo e mente. Criticando essa perspectiva, propõem deslocar a doença "como fato (seja dado empírico ou signo) para o curso da doença como experiência" (Alves & Rabelo, 1998:113). Concluem que as representações não são sistemas fechados que determinam as práticas, uma vez que conformam um conjunto aberto e heterogêneo que é continuamente refeito, ampliado, deslocado e problematizado durante as interações indivíduo-indivíduo e indivíduos e meio. Nesse sentido, recomendam uma análise que contemple "as formas temporalmente circunscritas pelas quais os atores imputam e negociam significados para suas experiências, vivenciam dificuldades de sustentar esses significados, delineiam e levam a cabo projetos e estratégias para se (re) situar no mundo social dado o evento/problema da doença" (Alves & Rabelo, 1998:119).
É no bojo dessa discussão que situamos o presente trabalho, numa tentativa exploratória inicial, contemplando novas emergências. Nesse sentido, objetivamos analisar as relações entre os pólos representacional e vivencial do processo de adoecimento, propondo princípios para se trabalhar com a possível complementaridade existente entre eles.
Com esse debate, oriundo da reflexão e das práticas sociológica e antropológica, acreditamos que as ações em saúde coletiva possam dar continuidade ao seu repensar para contemplar, ao mesmo tempo, as dimensões social e individual da doença, refletidas nas permanências culturais das representações e presentes nas experiências individuais que ocorrem no processo de adoecer.
Em termos metodológicos, o desenho do presente estudo se caracteriza como uma revisão crítica acerca da temática que nos propomos a discutir. Entretanto, ele se utiliza dessa revisão para apontar caminhos que permitam discutir o avanço de métodos que se apliquem ao estudo das representações e vivências do adoecer. Para isso, procuramos pontuar aspectos teóricos para dar suporte ao levantamento de questões metodológicas no trato das relações entre o representar e o vivenciar a doença. Nessa discussão, pretendemos seguir o seguinte percurso: (a) resgate da utilização do conceito das representações sociais para a compreensão da doença, dentro de uma ótica sócio-antropológica; (b) caracterização do processo da experiência da doença e (c) apresentação de princípios para se avançar nas questões de métodos, que se aplicam à temática.
Representações sociais e doença
Durkheim, na sociologia, foi quem primeiro abordou a discussão das representações coletivas. Para ele, "os primeiros sistemas de representação que o homem fez para si do mundo e de si mesmo são de origem religiosa" (Durkheim, 1998:154). Essas representações, segundo esse autor, "traduzem a maneira como o grupo se pensa nas suas relações com os objetos que o afetam" (Durkheim, 1999:79). Nesse sentido, as representações coletivas não seriam apenas o produto de uma imensa cooperação ocorrida num determinado espaço, mas também estariam relacionadas ao acúmulo de experiências atravessadas por longas séries de gerações. Ainda segundo ele, as representações coletivas, por terem características de fato social, assim como as instituições e estruturas, são exteriores ao indivíduo e exercem coerção sobre as consciências individuais.
Herzlich (1991:23) considera que Durkheim enfatizava a primazia do pensamento social sobre o pensamento individual, destacando que "a representação coletiva não se reduz à soma das representações dos indivíduos que compõem a sociedade. Ela é também uma realidade que se impõe a eles ...".
Em relação à visão de Durkheim, Minayo (1994) observa que essa concepção positivista tem sido bastante criticada. Segundo a autora, do ponto de vista da sociologia compreensiva e da abordagem fenomenológica, a crítica que se ressalta é a que questiona o poder de coerção, quase que absoluto, atribuído à sociedade sobre os indivíduos. Já do ponto de vista marxista, "a visão durkheimiana elimina o pluralismo fundamental da realidade social, em particular as lutas e antagonismos de classe" (Minayo, 1994:92).
Moscovici (1978), partindo do conceito de representações coletivas de Durkheim, cria uma teoria das representações sociais. Farr (1994), ao diferenciar esses dois conceitos, destaca que o de Durkheim é mais apropriado para um contexto de sociedades menos complexas, enquanto o de Moscovici (1978:44-45) se volta para as sociedades modernas, que "são caracterizadas por seu pluralismo e pela rapidez com que as mudanças econômicas, políticas e culturais ocorrem. Há, nos dias de hoje, poucas representações que são verdadeiramente coletivas".
A teoria de Moscovici (1978:48) partiu da premissa de que não há "um corte dado entre o universo exterior e o universo do indivíduo (ou do grupo)", chamando a atenção para a inter-relação entre sujeito e não-sujeito, e sujeito e outro sujeito.
Segundo Herzlich, a noção de RS de Moscovici é uma tentativa de tratar a influência recíproca da estrutura social e a do sujeito. No entanto, sua ênfase tendeu mais para um lado: "a reflexão se apoiava mais no sujeito ativo, construtor do mundo a partir dos materiais que a sociedade lhe fornece, do que na própria estrutura social" (Herzlich, 1991:24).
Minayo (1992, 1994) trabalha o conceito de representações sociais dentro da sociologia clássica, ampliando o debate acerca da temática em questão. A autora faz uma análise de como essa expressão, para além da concepção de Durkheim, pode ser compreendida com base em diferentes pontos de vista de outros teóricos, a exemplo de Marx, Weber e Schutz, mesmo que estes não tenham explicitamente trabalhado com esse conceito.
A autora citada já nos chamava a atenção para o fato de que a construção das RS implica, necessariamente a reconstrução de toda uma trajetória de filiações ideológicas (ou tradições). O conhecimento é sempre interessado e o reconhecimento do mundo como biológico e social passaria por um crivo epistemológico e político.
Ela destaca abordagens sociais e históricas que romperam com as estratégias do positivismo e as insuficiências de macro e microteorias sociais. O desafio do conhecimento também passa por esse reconhecimento das posturas e adesões teórico-metodológicas e seus interesses.
Por um outro lado, essa mesma trajetória histórica tem apontado para novas posições e disposições de elaboração do conhecimento sobre o processo saúde-doença. E aqui temos o cuidado de não esvaziar a idéia de processo, sob pena de cair em uma conceituação passível de neutralização, como é a noção de doença clínica (disease). Não se trata de encontrar ou produzir conceitos palatáveis para a análise. O recorte dos objetos biossociais reflete essa dificuldade na incorporação do processo humano e sua complexidade. Trata-se, sim, de buscar o refinamento da análise.
Queiroz (2000), considerando as diferentes abordagens nos campos da sociologia e da antropologia, observa que a ênfase do conceito de representação social, dependendo do prisma teórico adotado, se desloca de um âmbito objetivo e estrutural para um âmbito em que predomina a subjetividade.
Uma das tentativas, no campo das ciências sociais, de articular os pólos estrutural e subjetivo das RS, é conceito de habitus de Bourdieu (1992, 1998). Para o autor, esse conceito se refere a um conhecimento adquirido, um haver, um capital, indicando "uma disposição incorporada, quase postural" (Bourdieu, 1998:61). Para ele, diferentemente da palavra "hábito", que se associa a algo cristalizado, a expressão habitus envolve uma capacidade criadora, ativa e inventiva. Dentro desse raciocínio, o sujeito receberia e reinventaria a "herança" para a formação do habitus.
O estudo das RS passa, então, pela reconstrução do intersubjetivo concomitante com a trajetória da produção e reprodução de um texto socialmente constituído e com determinada permanência e pertinência - lugar da negociação e da co-presença dos autores sobre este processo de adoecimento. A adoção de um recorte macroteórico envolve o seu revés e vice-versa.
Como se expressaria este acontecimento e como seria possível entendê-lo? A idéia de texto, como fixação escrita do discurso, permite a reabilitação das teorias do discurso em sua atualização temporal, contemplando o sentido da mensagem, que persiste e deve ser compreendido.
"A compreensão deve preceder, acompanhar e fechar a explicação, envolvendo-a completamente, possibilitando a apropriação do sentido posto a descoberto pela etapa metodológica e abrindo-a em direção à existência, ao ontológico. Neste sentido, ela introduz uma intersubjetividade irredutível no processo de interpretação, um componente específico" (Costa, 1995:66).
A dialética explicação-compreensão permite que o processo interpretativo aplicado ao texto escrito direcione-se para a elucidação e tratamento científico da ação humana. Esta assume uma dimensão inter-humana e histórica. O texto escrito marca o tempo social e registra-se na história, podendo ser atualizado em diferentes situações. O agir é uma obra aberta cujos efeitos escapam ao controle de seus agentes e cuja significação é dada pelas sucessivas interpretações (Costa, 1995).
Velho (1995), discutindo a noção de cativeiro em sociedades camponesas, observa a pertinência de análises sobre RS que possam ultrapassar os limites de contextos de observação restritos à imediaticidade dos significados atribuídos aos eventos. A lógica de formação das RS exigiria a emergência de uma condição extra-intencional, para além dos significados atribuídos em um processo de interação social. Esse contexto é a ampliação do sentido do texto, apontando para eventos marcantes, que têm permanência temporal e permitem a re-significação de sentidos presentes em novos contextos sociais. O texto, nessa linha de reflexão, pontua e marca os eventos, fixando uma leitura modelar, que permite saltar da análise para o contexto, para outros sentidos.
As RS, que pareciam se formar a partir da autoridade (e autoria) do intérprete, seja ele pesquisador ou pesquisado, têm de se remeter para a situação que as envolve. Entendemos por situação uma complexidade que só se constitui pela fina análise de narrativas pessoais e de narrativas de personagens e eventos marcantes. Nesse sentido, contempla-se a história pessoal e a história social. A leitura do mundo narrado vem a exigir uma retomada do discurso textualmente considerado (situação imediata) e do discurso contextualmente estabelecido (eventos marcantes). Em realidade, o jogo de produção e reprodução das RS situa um habitus que implica, necessariamente, pensar a produção de significados com base em um coletivo que interpreta os eventos do mundo vivido. Esse conjunto de intérpretes compartilha experiências e ideologias, o que lhes dá identidade própria e interesses comuns. É preciso tornar clara a relação entre formas representacionais e práticas sociais, pois a crise das RS deu visibilidade ao fenômeno das comunidades interpretativas (Rabinow, 1999).
Ainda com base em Velho (1995), esse novo jogo admite agora duas posições singulares. A primeira se refere à necessidade de direcionamento da análise para o resgate do que se pode chamar de narrativa social, onde as RS expressam ou enunciam trajetórias, biografias e estilos de vida, compreendidos para além do diálogo intersubjetivo. Isso exige um posicionamento do intérprete tanto em relação ao contexto emergencial do discurso quanto ao contexto da produção material e simbólica da experiência dos sujeitos. Com isso, afasta-se a redução da realidade às RS, tomando o texto como lócus privilegiado de análise. A segunda posição decorre da primeira, pois a categorização que permite obter uma representação é uma modelagem e, como tal, não é explicativa em si, permitindo apenas que se caminhe para a exploração intensiva e extensiva dos significados compartilhados, dado que existe o que se pode entender por texto e os graus de liberdade deste em relação aos eventos.
As RS se expressariam nas relações eventuais mas não se reificariam. A representação não pode representar, pode apenas indicar uma linha de interpretação possível em que o liame das interpretações pode ser novamente colocado e deslocado em seguida até que permita fazer falar e demonstrar uma relação possível entre eventos e modelos propostos.
A resposta sobre quais seriam as RS a respeito de algo tem implicações históricas, certamente, mas a diversidade não pode ser sintetizada pela autoridade do interpretante (Clifford, 1998), nem pela apreensão imediata da particularidade histórica do evento. O jogo de interpretações deve caminhar para a percepção de uma abertura possível, em que as RS são sustentadas por condições mediadas culturalmente ou pré-textos.
E aqui reencontramos algumas colocações de Minayo (1992), que estabelece uma proposta de análise, a hermenêutica-dialética, que busca reconhecer o lugar da pertença e da presença do Outro. As escolhas científicas são também posturas ideológicas que afirmam um ponto de vista interpretativo sobre o objeto e dialogam com as interpretações complexas que o circundam. As RS são aqui também propostas de investigação, de negociação e de aprofundamento. O deslocamento teórico do objeto é sua politização também. A luz que se projeta sobre o objeto é sempre uma força que o mobiliza e o constitui, instruindo-o, deslocando-o e referenciando um novo lugar, sempre provisório. Como coloca Bourdieu (1996), o campo é político.
Retomando a discussão das representações sociais da doença, assinalamos que já há um vasto conjunto de estudos que trabalham com essa temática, tanto em nível internacional, como no âmbito nacional. No interior desse conjunto, destacamos que, do ponto de vista da antropologia médica, a leitura de Good (1994) pode ampliar a discussão sobre a temática em questão. Segundo o autor, no interior do debate atual, ressaltam-se quatro abordagens das representações da doença.
A primeira abordagem, que segue o paradigma da tradição empirista, segundo o autor, procura compreender as representações de doença com base nas crenças presentes no senso-comum. Nesse ponto de vista, a doença é entendida como algo natural, sendo separada da consciência humana. A análise de crenças populares, utilizada como informação ou como explicação, sugere uma neutralidade política e psicológica.
A segunda se orienta por uma visão da antropologia cognitiva, que se volta, entre outros aspectos, para a investigação de como a linguagem e a cultura estruturam a percepção. Estudos que compõem essa linha de pensamento podem ser vistos como uma crítica às descrições generalizadas de crenças de doença e conjecturas de que as crenças culturais são consensuais. Entre suas vertentes, há o posicionamento que situa as representações de doença em termos mentalísticos, abstraídos do conhecimento incorporado, da influência e das forças sociais e históricas que moldam significados de doença. Assim, os modelos de doença são estudados em termos formais e semânticos.
Na terceira abordagem, qualificada como interpretativa, as representações de doença são vistas como culturalmente constituídas, centrando-se no seu significado. Os estudos interpretativos, em geral, procuram articular cultura e doença, entendendo que a doença não é uma entidade mas um modelo explicativo. Nesse sentido, ao invés de centrar os estudos nas representações em si, essa abordagem vem investigando como significados e práticas interpretativas interagem como processos sociais, psicológicos e fisiológicos para produzir formas distintas de doença e trajetórias de doença.
Por último, destaca-se a chamada abordagem crítica, que entende as representações de doença como mistificação. Os estudos dentro dessa abordagem, em geral baseados no pensamento neomarxista, se esforçam para entender questões de saúde à luz de forças políticas e econômicas que padronizam relações interpessoais, moldam comportamentos sociais, geram significados socialmente compartilhados e condicionam experiências coletivas. Essas investigações, em vez de se voltarem para a construção cultural da doença, focalizam a produção social da doença. Assim, nesse âmbito, questiona-se quando as representações de doença são realmente mal representadas e de que forma servem aos interesses daqueles que se encontram no poder. Para isso, a análise da representação de doença se encaminha para um desmascaramento crítico dos interesses dominantes.
Good (1994) observa que doença e sofrimento humano não podem ser vistos por uma única perspectiva e que as posições teóricas atuais continuam desenvolvendo conversações que fazem avançar a discussão dessas questões. Com essas considerações, o autor ressalta que não deseja promover uma dialética das diferenças teóricas para chegar a sínteses admiráveis. Ele deseja assegurar a pluralidade de pontos de vista.
Aspectos da experiência da doença
Antes de falarmos da experiência da doença, faremos um rápido parêntese sobre o conceito de doença. Sobre isso, Laplantine (1991:15) chama atenção para o fato de a língua francesa só dispor de um vocábulo (maladie) para designar a doença, enquanto na língua inglesa há três expressões: "disease (a doença tal como ela é apreendida pelo conhecimento médico), illness (a doença como é experimentada pelo doente) e sickness, (um estado muito menos grave e mais incerto que o precedente [...] de maneira mais geral, o mal-estar)".
O autor destaca também que a expressão illness pode ser entendida por dois pontos de vista clássicos: doença-sujeito e doença-sociedade, refletindo, respectivamente, a experiência subjetiva do doente e comportamentos sócio-culturais ligados à doença. Para integrar as noções de doença-objeto (disease), doença-sujeito (um ponto de vista de illness) e doença-sociedade (outro ponto de vista de illness), ele propõe que se avance no debate de sickness, uma vez que essa terminologia pode articular, ao mesmo tempo, "as condições sociais, históricas e culturais de elaboração das representações do doente e das representações do médico e isso qualquer que seja a sociedade considerada" (Laplantine, 1991:16-17).
No presente estudo, entendemos doença no sentido predominantemente refletido na expressão illness, sem contudo estabelecermos dicotomia entre os pontos de vista de ser uma experiência subjetiva ou um comportamento sócio-cultural, referidos por Laplantine (1991). Aqui empregamos doença ou enfermidade como reflexo da combinação de aspectos da experiência dos indivíduos e situações sócio-culturais. Isso, por sua vez, não significa que desconsideremos os aspectos biológicos presentes no processo do adoecer. Assim, junto a esses aspectos, buscamos desenvolver uma perspectiva interdisciplinar na abordagem da enfermidade.
A enfermidade seria, então, o modelo que permitiria a mediação possível entre os participantes, que jogam com seus saberes e admitem uma certa lógica de condutas e práticas. Esse roteiro da experiência da enfermidade está delimitado por um contexto finito de interpretações, que se sustenta em eventos marcantes e com anterioridade em suas vidas. É também a idéia de que o texto é uma espécie de modelo que teria uma relação direta com os eventos.
O que pode permanecer como base de interpretação para os eventos que se sucedem não é somente o modelo (disease ou illness) ou o evento (a presença da doença), ou, ainda, a interação (os significados imediatos ao estoque de conhecimento ou aqueles negociados a partir da emergência da doença). Nem mesmo é um somatório de tudo isso. A lógica da análise social sobre a complexidade da experiência da enfermidade está em outro percurso metodológico: são as estratégias ou bricolagens que se formam entre pré-textos, textos, eventos e significados expressos nos mais diversos suportes discursivos (lingüísticos e corporais), comunicados e negociados socialmente.
As RS, então, passam a expressar estratégias e experiências humanas, tanto particulares quanto universais. As RS e as categorias que as sintetizam só podem ser pensadas com base nas instâncias de regulação que permitem sua formação, não mais como categorias explicativas, mas como o lugar do verdadeiro ou das narrativas científicas vigentes (Rabinow, 1999). A compreensão dos significados exige um movimento da interpretação sobre a experiência, entendendo que esta é um processo de feedback do próprio processo de interação. Os recortes sobre este processo serão, mesmo quando científicos, necessariamente ideológicos, como Clifford (1998) destaca sobre o personagem Nisa e as escolhas textuais que o pesquisador (como mais um modelo no experimento etnográfico) faz da narrativa que supõe (ou tenta) controlar.
O conceito de experiência ganha, então, uma outra perspectiva, a de experiência socialmente constituída, na qual se apresentam estratégias que só são passíveis de análise quando se expressam como narração individual e intersubjetiva (portanto social), mas entendendo nessa condição a presença de uma situação dialógica (e dialética). Os significados são negociados também em um espaço comunicacional e político, em que a enunciação coletiva reflete a atualização de um universo discursivo e experiências vividas e projetadas. O jogo das escolhas narrativas deve refletir essa tomada de posição sobre como cada sujeito e comunidade exercita o lugar da enfermidade (Hydén, 1997).
Alves & Rabelo (1999) discutem de forma interessante o lugar das narrativas e das metáforas como condição e método para entender a experiência da enfermidade, já apostando em uma outra circunscrição metodológica, na qual as narrativas expressariam as relações intersubjetivas (e os caminhos de sua produção-reprodução) e os enunciados metafóricos expressariam tensões, conflitos e absurdidades, permitindo a criação de novos significados contra os usos estabelecidos pela linguagem. A narração e a compreensão dos enunciados metafóricos nela presentes, pela própria situação de interlocução, incluem o mundo da intersubjetividade e as situações sociais e suas interações.
A análise de Alves & Rabelo (1999) nos é útil em termos de referência conceitual. Segundo os autores, a experiência da enfermidade é entendida como a "forma pela qual os indivíduos situam-se perante ou assumem a situação de doença, conferindo-lhe significados e desenvolvendo modos rotineiros de lidar com a situação" (Alves & Rabelo, 1999:171). Eles assinalam, ainda, que "as respostas aos problemas criados pela doença constituem-se socialmente e remetem diretamente a um mundo compartilhado de práticas, crenças e valores" (Alves & Rabelo, 1999:171).
Seguindo esse raciocínio, não podemos deixar de comentar que a superação das limitações analíticas das RS deve também passar por um outro crivo metodológico que se superpõe ao emprego de análise de narrativas. Esse aspecto é a percepção concreta do universo do outro a partir dos referenciais dele, dos modos de condução do cotidiano em que vive - e aqui podemos falar do uso de etnométodos como contexto de observação. Para Garfinkel (1999), os etnométodos se relacionam aos modos utilizados pelos indivíduos para atribuir sentidos às ações cotidianas. Os estudos com base etnometodológica ajudam a entender como a doença se agrega ao dia-a-dia das pessoas, transformando-o significativamente. A doença age como fator de ruptura de um fluxo cotidiano, fazendo com que a pessoa enferma e seus familiares necessitem de nova reorganização das suas atividades diárias.
Considerações finais: princípios para um avanço de métodos na compreensão do processo do adoecer
Com base na etnometodologia, alguns princípios podem ser adotados como contexto de observação: (a) a normalidade percebida, na qual os indivíduos expressam-se em termos práticos, o experienciado e o expectado; (b) a "indexicalidade", em que se apresentam aspectos da realidade como fatores contextuais, os quais são indexados a situações potenciais, cujo sentido está ligado a uma certa inteligibilidade prévia, dando a entender que um sinal pode ter significados diferentes em contextos diferentes; (c) a descrição ou releitura que os indivíduos fazem de sua posição no mundo e dos fatos constitutivos, por meio de uma linguagem comum que reflete um determinado senso comum cotidiano; (d) ser membro de um grupo, implicando responder de forma imediata às regras constitutivas das particularidades inerentes às práticas sociais cotidianas (Tedesco, 1999). Esses princípios podem ser caminhos para o refinamento da observação de campo aplicada ao processo saúde/doença, na reconstituição da experiência da enfermidade.
As insuficiências geradas pelas estratégias de análise instrumental das RS no processo de adoecer podem ser superadas quando contemplamos os seguintes aspectos: (a) maior permanência do pesquisador em campo, evitando assim os estudos-relâmpago de pouca imersão na realidade vivida e no mundo dos sujeitos; (b) apreensão do estoque de conhecimentos dos sujeitos e do contexto de um habitus que só se revela pela compreensão de um mundo da práxis; (c) elaboração de um raciocínio sociológico sofisticado que contemple a crítica sobre o impacto dos enunciados formais na explicação e compreensão da complexidade empírica dos objetos (Passeron, 1995).
Com base nessa perspectiva teórico-metodológica, a compreensão do adoecer não ocorre apenas a partir dos enunciados das narrativas dos sujeitos da doença. Esses enunciados, em específico, e a narrativa, em geral, devem ser entendidos como recortes de uma realidade que os contém, sem, contudo, a eles se reduzir. Assim, na medida em que se consegue ir para além das falas e das ações em geral, a articulação entre o representado e o vivido do ser doente pode ser conseguida e servir de base para políticas e ações que contemplem os sujeitos para os quais se estas destinam.
Para podermos ultrapassar as falas e ações observadas, recorremos a Bardin (1979), que nos alerta sobre a necessidade de nos deslocarmos da descrição (enumeração das características da fala e das ações observadas) para a interpretação (a significação concedida a essas características). Segundo o autor, mediando esse deslocamento temos a inferência, entendida como operação pela qual se aceita uma proposição em virtude de sua relação com outras propriedades já aceitas como verdadeiras. Fazemos inferência, formulando perguntas como: O que conduziu a um determinado enunciado? Quais as prováveis conseqüências que um determinado enunciado provocará? Esse questionamento pode ser resumido na formulação clássica: quem diz o que, a quem, como e com que efeito?
A nossa experiência sobre essa forma de tratar os sentidos da doença se encontra em fase ainda exploratória. Mesmo assim, sugerimos princípios em busca de um percurso metodológico adequado:
Promover uma compressão da "indexicalidade" das representações e das vivências da doença, situando as expressões dos sujeitos no contexto em que tais aspectos foram produzidos.
Fazer uma releitura da descrição que os sujeitos fazem, em suas narrativas, sobre a sua posição em face da doença, em específico, e do mundo em geral.
Com base nessa descrição, fazer inferências para se articular o experienciado e o expectado da doença presente no quotidiano dos sujeitos.
Partindo das inferências, interpretar os sentidos subjacentes ao que os sujeitos representam e vivenciam, a fim de se chegar à compreensão das regras constitutivas das particularidades inerentes à doença, do ponto de vista das práticas sociais quotidianas.
Acreditamos que esses princípios possam ir ao encontro da necessidade de articularmos a experiência da doença e seu contexto de produção material e simbólica. Na medida em que avancemos mais nessa direção, poderemos trazer subsídios para que as políticas e ações em saúde possam contemplar mais os sujeitos para os quais estas se direcionam.
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Recebido em 29 de dezembro de 2000
Versão final reapresentada em 21 de setembro de 2001
Aprovado em 26 de dezembro de 2001