ARTIGO ARTICLE
Marcelo Neri 1 | Desigualdade social e saúde no Brasil
Social inequality and health in Brazil |
1Centro de Políticas Sociais, Instituto Brasileiro de Economia, Fundação Getúlio Vargas. Praia de Botafogo 190, Rio de Janeiro, RJ 22250-040, Brasil. mcneri@fgv.br | Abstract This paper studies the relationship between social inequality and health in Brazil. The strategy adopted by the authors was to analyze needs and uses of medical care as well as access to health insurance plans according to income distribution. Determinants of health care consumption were also studied by means of logistic regression. The main source of data was the 1998 National Sample Household Survey of the Brazilian Institute of Geography and Statistics (PNAD-IBGE). In general, individuals in the lowest income distribution deciles had less access to health insurance, greater need for medical care, and lower consumption of such services. Other determinants of health care consumption were heavily associated with the most privileged social strata (greater access to schooling, water supply, sewerage, electricity, garbage collection, and health insurance) and with factors pointing to the capacity to supply these services in country.
Resumo Esse artigo estuda a relação entre desigualdade social e saúde no Brasil. A estratégia usada foi avaliar as necessidades e o consumo dos serviços de saúde, bem como o acesso a seguro saúde ao longo da distribuição de renda. Adicionalmente, por meio da estimação de uma regressão logística, foram avaliados outros determinantes do consumo dos serviços de saúde, com o intuito de se conhecer aonde e quem utiliza esses serviços no país. Os dados foram extraídos da Pesquisas Nacional de Amostra por Domicilio da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística levada a campo em 1998. Em geral, observou-se que os indivíduos nos primeiros décimos da distribuição de renda têm pior acesso a seguro saúde, necessitam de maiores cuidados médicos, mas consomem menos os serviços de saúde. As outras características extra rendimento indicam que os principais determinantes para o consumo dos serviços de saúde estariam fortemente associados aos grupos sociais mais privilegiados (de maior escolaridade, acesso a seguro saúde, água, esgoto, luz, coleta de lixo) e a fatores que apontam para capacidade de geração de oferta desses serviços no país. |
Introdução
O Brasil é um importante caso para se estudar a pobreza, não somente porque possui uma grande parte da população pobre da América Latina, mas também porque apresenta um grande potencial para erradicar a pobreza. O relativamente alto PIB per capita brasileiro, combinado com o alto grau de desigualdade da renda, gera condições favoráveis para o desenho de políticas redistributivas. Esse potencial é exemplificado pela alta sensibilidade dos índices de desigualdade e pobreza, e mudanças em certos instrumentos de política (por exemplo, mudanças no salário mínimo e nas taxas de inflação). Por outro lado, talvez devido a instabilidades anteriores, o Brasil não tenha avançado muito na implementação de políticas estruturais de combate à pobreza e desigualdade, através do reforço do portfólio de ativos dos pobres (Neri, 2000).
Em termos desse tipo de política, deve-se separar políticas de transferência de renda compensatória (e.g. programa de impostos de renda negativa, previdência e seguro desemprego), daqueles que aumentam a renda per capita permanente dos indivíduos pela transferência de capital produtivo (e.g. provisão pública de educação, políticas de microcrédito, reforma agrária e saúde pública). Quanto à provisão de saúde pública, é importante ressaltar que a extensão desse tipo de benefício à população tende a afetar a produtividade e a renda dos indivíduos. Alguns estudos sugerem que a saúde impacta diretamente na produtividade do trabalho das pessoas, e portanto seria um importante canal para políticas de distribuição de renda e combate à pobreza (Alves & Andrade, 2002; Kassouf, 1997; Thomas & Strauss, 1997).
Este artigo estuda a relação entre desigualdade social e saúde no Brasil, tendo como principal objetivo a avaliação da existência de iniqüidade vertical do consumo dos serviços de saúde no país. Antes de qualquer coisa, é importante distinguir os conceitos de eqüidade em saúde e no consumo de saúde. O primeiro avalia as diferentes chances de extratos populacionais distintos adquirirem morbidade ou mortalidade, enquanto que o conceito de eqüidade no consumo ou uso dos serviços de saúde analisa as diferentes condições de acesso aos serviços de saúde. Quanto ao conceito de equidade horizontal e vertical, o primeiro defende que indivíduos com iguais necessidades de cuidados com a saúde deveriam ser tratados da mesma forma, enquanto que o princípio de eqüidade vertical baseia-se no fato de que indivíduos com necessidades diferentes deveriam receber tratamentos diferenciados.
Na Constituição de 1988 a questão de eqüidade foi tomada como igualdade no acesso aos serviços de saúde, uma vez que garantiu a universalidade da cobertura e do atendimento, com o propósito de fornecer igual oportunidade de acesso aos serviços de saúde para indivíduos com as mesmas necessidades. Entretanto, a sustentabilidade desse sistema depende de aportes financeiros que estão além da capacidade de financiamento do setor, o que faz com que indivíduos com maior poder aquisitivo busquem os serviços privados de saúde como forma de garantir o acesso quando necessário. De acordo com o princípio de eqüidade vertical, os serviços de saúde deveriam ser distribuídos segundo a necessidade de cuidados com a saúde, independente das características sócio-econômicas individuais.
É nesse sentido que procura-se investigar eqüidade vertical no Brasil, com base no rendimento auferido pelas pessoas, ou seja, pretende-se verificar se indivíduos pobres e não-pobres possuem diferentes necessidades de cuidados com a saúde, e também tratamentos diferenciados quanto ao acesso aos serviços de saúde. Utilizou-se como proxy do acesso aos serviços de saúde uma variável de consumo, que permitiu avaliar não só a existência de desigualdade no uso dos serviços de saúde entre pobres e não-pobres, mas também a probabilidade de procurar esse tipo de serviços segundo a presença ou não de algumas características individuais, domiciliares e regionais.
Revisão da literatura
Travassos et al. (2000), utilizando os dados da Pesquisa de Padrão de Vida (PPV/IBGE) de 1996/ 1997, avaliam as chances de indivíduos segundo três extratos de rendimento, utilizarem os serviços de saúde. Os autores encontraram desigualdade social na distribuição de cuidado médico favorável aos extratos de maior rendimento, sendo que a desigualdade se acentuava na Região Nordeste quando comparada à Região Sudeste. Utilizando os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD 98), Travassos et al. (2002) testam por intermédio de razões de chances, a existência da desigualdade social na utilização de serviços de saúde segundo o gênero. Os autores também observaram que características como ser branco, ter um elevado nível de escolaridade, ser empregador ou assalariado com carteira aumentam a probabilidade de procurar serviços de saúde.
Almeida et al. (2000), com base na Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição (PNSN) de 1989, estimam para cada quintil de renda uma taxa de utilização dos serviços de saúde, padronizadas por sexo e idade, e obtidas separadamente para indivíduos saudáveis e doentes. Aproximadamente 45% das pessoas do primeiro quintil de renda, e que têm atividades restritas por motivo de saúde, utilizaram os serviços, enquanto esse percentual se eleva para os indivíduos com rendimento superior (69,2%). Já para as pessoas consideradas saudáveis, o último quintil apresenta uma taxa de utilização 50% maior que o primeiro. Essas pesquisas e outras (Campino et al., 1999; Le Grande, 1978), sugerem que a utilização dos serviços de saúde é bastante desigual entre classes sócio-econômicas, favorecendo às camadas mais privilegiadas da população.
Também existe um consenso geral de que os socialmente menos privilegiados tendem adoecer mais precocemente. House et al. (1990) avaliaram que algumas doenças crônico-degenerativas se desenvolvem com antecedência de aproximadamente 30 anos nos indivíduos na base da pirâmide social, quando comparados com aqueles que se encontram no topo. Outros estudos sugerem a construção de um índice de concentração em saúde com base em variáveis de necessidades de cuidados com a saúde auto-avaliação da saúde, presença de doenças crônicas e restrição de alguma atividade (Noronha & Viegas, 2002; Pereira, 1995).
Os índices de concentração estimados para países desenvolvidos variaram entre 0,03 para a Suíça e 0,11 e 0,13 para Reino Unido e Estados Unidos, respectivamente (van Doorslaer et al., 1997; Wagstaff et al., 1991). Um índice positivo mais próximo de 1 reflete uma maior desigualdade em saúde em favor dos grupos de renda mais elevada. Os índices estimados por Pereira (1995), para o sistema de saúde de Portugal, variaram entre 0,05 (variável utilizada: doença e mal estar) e 0,15 (pessoas acamadas), enquanto que os estimados para as unidades federativas brasileiras, utilizando dados da PNAD 98 (Noronha & Viegas, 2002), foram de 0,015 (variável utilizada: saúde auto-avaliada boa ou muito boa) e 0,08 (variável utilizada: esteve acamado). Esse resultado evidencia que no Brasil existe uma desigualdade em saúde a favor dos socialmente menos privilegiados, ou seja, os pobres tendem a adoecer menos que os ricos, o que em geral parece contra intuitivo, ou seja, difere bastante das evidências empíricas encontradas na literatura de desigualdade em saúde.
Esse resultado foi justificado pelos autores pelo fato das variáveis de saúde da PNAD serem de saúde auto-relatada, o que pode não refletir a necessidade de serviços de saúde da população brasileira, uma vez que muitos dos indivíduos da pesquisa não responderam aos questionários com base num laudo médico sobre seu próprio estado de saúde, ou seja, muitas pessoas podem ter problemas de saúde, mas os desconhecem em virtude da falta de informação médica. Noronha & Viega (2002) argumentaram que o uso de indicadores de saúde auto-relatada, como é o caso da PNAD 98, leva a subestimação das doenças. E mais, essa subestimação tende a estar mais presente na parcela mais pobre da população, uma vez que essa tem menor oportunidade de acesso a esses serviços, tendendo a desconhecer o seu verdadeiro estado de saúde.
Dados e metodologia
Os dados foram extraídos da PNAD 98, cujo suplemento especial contemplou nesse ano o tema de saúde. As variáveis de saúde foram divididas em três grupos:
Necessidades de cuidados com a saúde: auto-avaliação do estado de saúde (bom, muito bom, regular, ruim e muito ruim), esteve acamado nas duas últimas semanas, tem doença crônica (coluna ou costas, artrite ou reumatismo, câncer, diabetes, bronquite ou asma, hipertensão, doença do coração, problema renal, depressão e tuberculose, tendinite, cirrose);
Seguro saúde: plano de saúde, plano de assistência ao servidor público, valor da mensalidade, cobertura do plano e plano odontológico;
Uso ou consumo dos serviços de saúde: procurou serviços de saúde nas duas últimas semanas, qual o motivo principal da procura?
Esse último grupo representa o consumo de serviços de saúde, e não necessariamente se traduz na demanda por saúde, uma vez que existem fatores que restringem o seu acesso (distância, períodos de espera, tempo, custo privado do tratamento). O consumo ou uso dos serviços também não necessariamente equivale às necessidades de cuidados com a saúde, pois com ou sem necessidade a pessoa pode consumir os serviços de saúde. Por sua vez, a posse de seguro saúde e a gratuidade dos serviços na rede pública, podem induzir o uso desnecessário de alguns serviços.
Outro fato importante a considerar é que as variáveis de necessidade de cuidados com a saúde dos indivíduos com base na presença de morbidades, representam o perfil epidemiológico e, conseqüentemente, as necessidades de financiamento do setor. Estudos de avaliação das necessidades de recursos para saúde são freqüentemente realizados com base em dados de mortalidade, que têm o inconveniente de não refletir a ampla gama de morbidades que um indivíduo pode apresentar no transcurso de sua vida. Apesar de serem incipientes no Brasil, os estudos que avaliam as necessidades de saúde das pessoas baseados nas medidas de morbidade, têm a vantagem de captar as diferenças na qualidade de vida dos indivíduos, em vez de considerar apenas a causa de morte. Entretanto, no caso da PNAD 98, há limitações desse tipo de análise, uma vez que as doenças listadas no questionário não contemplam o universo das doenças crônicas que acometem toda população brasileira.
A auto-avaliação do estado de saúde é uma variável que procura mensurar o estado de saúde através de um critério subjetivo, uma vez que depende da percepção da pessoa acerca do seu estado. Entretanto, essa variável é freqüentemente avaliada na literatura como uma importante medida de necessidade em saúde, uma vez que pode ser vista como uma escala de bem-estar geral do indivíduo. Ao avaliar seu estado de saúde, o indivíduo não apenas responde com base na simples presença ou não de uma doença, mas procura ponderar a sua resposta a caraterísticas que extrapolam o significado strito de saúde (vitalidade, ansiedade, preocupação etc.). Outra variável de necessidade de cuidados com a saúde é a pergunta se o indivíduo ficou acamado nas duas semanas que antecederam a pesquisa. Essa variável procura avaliar o estado de saúde não subjetivamente, mas sim segundo um critério médico, apesar de apresentar o inconveniente de compreender apenas as morbidades presentes nas duas semanas que antecedem a pesquisa, bem como aquelas que somente incapacitam o indivíduo temporariamente, impedindo a sua mobilidade física.
Nas etapas metodológicas, inicialmente avaliou-se a existência de desigualdade nas necessidades e no consumo dos serviços de saúde, bem como na posse de seguro saúde segundo os décimos de rendimento da população brasileira. Utilizou-se o rendimento do chefe, uma vez que sua renda tende a ser compartilhada pelos membros da família. Caso fosse utilizada a renda individual, crianças e pessoas sem rendimento, e que vivem em função do chefe de família, estariam no pior extrato da distribuição, mas poderiam ter desigualdade em saúde a seu favor, uma vez que compartilham da renda do chefe e de outros benefícios como plano de saúde familiar, condições de moradia e alimentação. Dessa forma, as características dos chefes de família na amostra foram expandidas para população, pois esse é o principal provedor do capital familiar.
Adicionalmente, procurou-se avaliar alguns determinantes extra rendimento do consumo dos serviços de saúde no Brasil, pela estimação de uma regressão logística, tendo como variável dependente "procurou serviços de saúde nas duas últimas semanas"? O objetivo desse procedimento é diagnosticar quem e aonde são consumidos os serviços de saúde no país. As variáveis explicativas foram sócio-demográficas, presentes no questionário principal da PNAD, e procuraram representar características individuais e domiciliares da população brasileira: sexo; idade (0 a 24 anos; 25 a 44, de 45 a 64 e mais de 64 anos); escolaridade (0 anos de estudo, 1 a 4 anos, 4 a 8 anos, 8 a 12, mais de 12 anos); cor (branca ou não-brancos); imigração (até 9 anos, não imigração, imigrou a mais de 10 anos); deslocamento para o trabalho (até 30min, de 30min a 1 hora, mais de 1 hora, ocupados que vão direto ao trabalho, tempo não declarado, não ocupados); acesso a plano de saúde (tem acesso, não tem acesso); acesso a plano de assistência ao servidor público (tem acesso, não tem acesso); valor da mensalidade (menos de R$50,00, de R$50,00 a R$100,00, mais de R$100,00, sem declarar); cobertura médica (direito à consulta médica, não tem direito à consulta); doenças (presença ou não de alguma doença listada na PNAD); densidade populacional (rural, capital metropolitana, periferia metropolitana, urbano grande, urbano médio, urbano pequeno); Unidade da Federação (Acre, Alagoas, Amazonas, Amapá, Bahia, Ceara, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Pará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rondônia, Roraima, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Sergipe, Tocantins); acesso a serviços públicos (água, esgoto, coleta de lixo, luz elétrica).
Resultados
Análise das distribuições de renda segundo as variáveis de saúde
Necessidades de cuidados com a saúde
A Tabela 1 mostra uma aproximação das necessidades de cuidados com a saúde no Brasil. Observa-se que cerca de 64% dos indivíduos que se encontram no primeiro décimo da distribuição, auto-avaliaram seu estado de saúde normal (bom ou muito bom), ao passo que esse número entre os 10% mais ricos, chega a 83%. Verifica-se que existe uma tendência do aumento das proporções de indivíduos com saúde auto-avaliada "normal", à medida que se encaminha para extratos populacionais de maior rendimento.
A presença de dores nas costas e artrite ou reumatismo apresentaram uma tendência decrescente ao longo da distribuição de renda. Já afecções como diabetes e câncer apresentaram uma tendência crescente, à medida que se caminha da base para topo da distribuição de renda, bem como as doenças do coração, onde 3,6% do extrato mais pobre da população afirmou sofrer desse tipo de problema, enquanto que entre os 10% mais ricos, esse número chegou a 6,9%.
Observa-se que problemas de depressão, tendinite ou tenossinovite e cirrose não apresentam diferenças marcantes na proporção dos doentes ao longo da distribuição de renda, enquanto que a proporção de indivíduos com tuberculose é maior entre as pessoas de baixa renda. Também verifica-se que a proporção de indivíduos acamados decresce ao longo da distribuição de renda.
Seguro saúde
A Tabela 1 mostra a distribuição dos décimos de renda segundo as variáveis que caracterizam a posse de seguro saúde. Observa-se que aproximadamente 25% da população brasileira tem algum plano de saúde, sendo que, desses, 25% são detentores de plano de assistência ao servidor público.
Dos 10% mais pobres, cerca de 2,8% possuem algum plano de saúde, enquanto que dos 10% mais ricos esse número chega a 74%. Nota-se um aumento quase que monotônico à medida que se encaminha para o topo da distribuição, com exceção do terceiro decil de renda, cujo contingente de indivíduos com plano de saúde é de 18%. O destaque fica para a razão entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres, uma vez que a posse de plano de saúde é 16 vezes mais freqüente na parcela socialmente privilegiada pela distribuição de renda. Também foi possível notar que o seguro odontológico não é muito comum no Brasil, apesar de sua presença ser mais freqüente nos 40% mais ricos da população brasileira.
Verifica-se que quase a metade (44%) da população possuidora de plano de saúde paga até R$50,00, enquanto que 25% (R$50,00 a R$100,00), 30% (R$100,00 a R$200,00), 12% (R$200,00 a R$300,00), 6% (R$300,00 a R$500,00), e apenas 2%, mais de R$500,00. O primeiro e o segundo décimos da distribuição de renda apresentam a maior proporção relativa de indivíduos que pagam as maiores mensalidades de planos de saúde (mais de R$200,00), o que evidencia que a fração de gastos com seguro saúde é maior no contingente de menor poder aquisitivo.
Além de desigualdade na posse de seguros de saúde, há desigualdade entre aqueles que possuem planos de saúde, ou seja, em relação à cobertura do plano. Observa-se um aumento quase que monotônico ao longo da distribuição de renda em relação à cobertura dos exames complementares, com exceção no extrato mais pobre da população brasileira (10% mais pobres). Cerca de 93% dos que detêm algum plano de saúde admitiram ter cobertura de internação, sendo que esse número entre os 10% mais ricos chega a 98%.
Uso ou consumo dos serviços de saúde
O uso dos serviços de saúde ao longo da distribuição de renda pode ser observado na Tabela 1. A proporção de indivíduos que procuram esses serviços tende a aumentar ao longo da distribuição de renda, onde no primeiro décimo é de 8,5% e no ultimo de 17,4%. Percebe-se que, apesar de necessitarem mais dos serviços de saúde, os indivíduos de menor poder aquisitivo tendem a consumir menos esses serviços. Dos motivos de procura pelo serviço de saúde destacam-se: exames de rotina ou prevenção (37%); doença (32%); tratamento ou reabilitação (14,%) e acidente ou lesão (5,4%). Verifica-se que a proporção de indivíduos que procuram serviços de saúde por motivo de exames de rotina e prevenção tende a ser mais elevada nos últimos décimos da distribuição de renda. Das pessoas que procuraram serviços de saúde, e que se encontram no último décimo da distribuição, cerca de 40% afirmaram fazê-lo por motivo de prevenção ou exame de rotina, ao passo que esse número chega a 33% no décimo menos privilegiado da distribuição de renda.
A distribuição de renda segundo a procura de serviços de saúde por motivo de doença é decrescente da base para o topo da distribuição de renda. Os indivíduos mais pobres tendem a procurar mais os serviços de saúde por problemas de doença, e não por motivo de prevenção ou exames de rotina, como observado no contingente de maior poder aquisitivo. Já as distribuições de renda segundo os motivos "tratamento ou reabilitação" e "acidentes ou lesão", não apresentaram um comportamento em que se evidencie desigualdade a favor de algum extrato social.
Análise de alguns determinantes do consumo de serviços de saúde
Outra forma de avaliar a desigualdade no consumo dos serviços médicos, consiste em estimar um modelo de regressão logístico (Tabela 2), cuja variável dependente representa o consumo dos serviços de saúde e as variáveis explicativas características individuais, domiciliares e regionais da população brasileira.
As chances de procurar serviços de saúde aumentam à medida que os indivíduos ganham anos de idade e não acumulam anos de estudo. Os brancos têm chances aumentadas em 3% de consumir serviços de saúde, enquanto que os não imigrantes e os imigrantes a menos de 9 anos, têm chances diminuídas se comparados aos que imigraram há mais de 10 anos. Os indivíduos ocupados que gastam menos de uma hora no percurso casa-trabalho, têm chances reduzidas de consumir serviços de saúde se comparados aos ocupados que gastam mais de uma hora nesse mesmo percurso. Já a população não-ocupada possui 23% a mais de chances, quando comparada à ocupada que leva mais de uma hora para chegar ao trabalho.
Os indivíduos que possuem plano de saúde privado e de assistência ao servidor público, têm chances aumentadas em 450% e diminuídas em 7% de consumir serviços de saúde, respectivamente. As chances de consumir esses serviços aumentam à medida que os indivíduos gastam mais com a mensalidade do seguro saúde e possuem plano com cobertura à consulta médica. Quanto à presença de doença, as chances de procurar serviços de saúde aumentam em 155% para aqueles que possuem algumas das doenças crônicas listadas no questionário da PNAD.
Verifica-se uma tendência de elevação nas chances de procurar serviços de saúde à proporção que a densidade populacional aumenta, sendo que as chances aumentam em 47% na capital metropolitana se comparada à zona rural. Indivíduos que residem em algumas Unidades da Federação como Espírito Santo, Goiás, Paraná, Rio Grande do Norte, Rondônia, Rio Grande do Sul e Minas Gerais possuem chances aumentadas de procurar serviços de saúde quando comparados àqueles que residem no Estado de São Paulo.
Por último, os indivíduos que têm acesso aos serviços públicos de água, esgoto, coleta de lixo e luz elétrica têm chances aumentadas em 8%, 3%, 6% e 15%, respectivamente, de procurar serviços de saúde quando comparados àqueles que não detêm esses serviços no seu domicílio.
Discussão
No presente artigo, a análise da distribuição de renda segundo as medidas de necessidades de cuidados com a saúde corrobora a explicação dada por Noronha & Viegas (2002), para desigualdade em saúde a favor dos pobres quando utiliza-se os dados de presença e ausência de doenças crônicas da PNAD 98. No artigo de Noronha & Viegas (2002), a medida de necessidade de cuidados com a saúde foi obtida com base na agregação das doenças citadas no questionário (presença ou ausência de algumas das morbidades), enquanto que neste artigo procurou-se avaliá-las separadamente. Observou-se na análise das distribuições de renda segundo as diferentes doenças crônicas, que as morbidades mais fáceis de serem percebidas pelos indivíduos (dor de coluna, artrite ou reumatismo) estão mais freqüentes nos décimos de menor poder aquisitivo, ao passo que doenças que necessitam de um exame para o indivíduo reportar a sua presença (câncer, diabetes e hipertensão) estariam mais freqüentes à medida que se caminha da base para o topo da distribuição de renda.
Nesse caso, a menor proporção de morbidades como câncer, diabetes e hipertensão nos grupos menos privilegiados está no fato desses indivíduos terem reduzida oportunidade de acesso, desconhecendo seu estado de saúde, o que na verdade não significa uma menor probabilidade de adquirir tais afecções quando comparadas aos indivíduos de maior rendimento. Outro ponto digno de nota é a decrescente proporção de pessoas com tuberculose ao longo da distribuição de renda, pois se sabe que esse tipo de doença está fortemente associado a fatores sócio-econômicos.
Numa perspectiva de universalização dos serviços, o plano de saúde passou a ampliar a oportunidade de acesso aos serviços de saúde em indivíduos com a mesma necessidade de cuidados médicos. Menores contingentes proporcionais de pessoas que detêm seguro saúde foram observados nos subgrupos populacionais de menor rendimento. Também foi fácil notar que a fração gasta da renda com plano de saúde diminui ao longo da distribuição de renda, apesar da cobertura de exames e internações (proxy da qualidade do seguro) apresentar uma tendência inversa à medida que se aproxima do topo da distribuição. Ou seja, os indivíduos socialmente menos privilegiados gastam mais com plano de saúde, embora tenham direito a uma menor cobertura do seguro.
Quanto ao consumo dos serviços de saúde, observou-se desigualdade em favor dos mais privilegiados. Nesse caso, deve-se ressaltar que quando se avaliou o motivo da procura dos serviços médicos, percebeu-se nos décimos mais altos da distribuição uma maior procura dos serviços de prevenção e exames de rotina, ao passo que, nos extratos de pior rendimento, uma maior representatividade do consumo de serviços de saúde por motivo de doença.
Em resumo, as análises das distribuições de renda segundo as medidas de saúde possibilitaram avaliar o acesso a seguro saúde, as necessidades de cuidados médicos e consumo dos serviços de saúde no Brasil, segundo o rendimento do chefe de família. Verificou-se que os indivíduos mais pobres têm pior acesso a seguro, necessitam de maiores cuidados com a saúde, mas consomem menos os serviços, o que acaba por aprofundar o quadro de desigualdade dos rendimentos. Existe uma certa endogeneidade na equação de rendimentos dos indivíduos, ou seja, um pior rendimento gera uma saúde mais precária, e uma pior saúde, um menor rendimento. É nesse sentido que políticas de provisão de saúde pública são políticas de combate à pobreza e à desigualdade.
Quanto à análise de outros determinantes que não sejam de rendimento, observou-se que o principal determinante para o consumo dos serviços de saúde no Brasil é o indivíduo possuir plano de saúde, o que aumenta suas chances de consumir os serviços em 452%, enquanto que o motivo doença tem importância secundária, uma vez que sua presença contribui para o consumo de serviços de saúde em aproximadamente 155%. Nesse caso, o consumo dos serviços de saúde no Brasil estaria mais relacionado com o acesso aos serviços do que à necessidade de cuidados médicos, ou seja, estaria mais relacionada a características de oferta dos serviços de saúde do que às características de demanda.
Os outros resultados corroboram essa conclusão, pois observa-se chances aumentadas de procurar serviços de saúde à medida que a densidade populacional diminui, o que em parte pode ser explicado pela escassez desses serviços nas áreas rurais e de menor densidade populacional. Entretanto, esse fato não pode ser observado quando a análise é expandida em nível de Unidades da Federação, talvez pelo fato dessas incorporarem outras características além da densidade populacional.
Percebe-se também, que o custo de oportunidade do indivíduo consumir serviços de saúde é uma variável determinante na decisão de consumo dos serviços. Foi utilizada como proxy desse indicador as variáveis de tempo de deslocamento no percurso casa-trabalho, bem como o fato do indivíduo trabalhar ou não, pois o tempo gasto no percurso e dedicado ao trabalho implica menos tempo disponível para consultar um médico. Nesse caso, observa-se que os indivíduos que não estão trabalhando (categoria não ocupados) têm 23% a mais de chances de procurar o serviço de saúde quando comparado à categoria ocupada que leva mais de uma hora no percurso casa-trabalho. O mesmo pode ser observado para os ocupados que não vão direto para o trabalho (odds ratio = 1,09).
Também observou-se que o aumento das chances de procurar serviços de saúde estaria diretamente relacionado a grupos sociais mais privilegiados, ou seja, de maior escolaridade, acesso aos serviços públicos (água, luz, esgoto, coleta de lixo) e a plano de saúde. Além do mais, indivíduos com maior escolaridade tendem a ter uma melhor percepção dos efeitos do tratamento sobre a saúde, bem como o maior conhecimento das especialidades médicas para cada tipo de tratamento (Noronha & Viegas, 2002).
Apesar da análise das distribuições de rendimento evidenciarem desigualdade vertical no consumo dos serviços de saúde, uma vez que os indivíduos menos privilegiados necessitam mais e consomem menos serviços, os resultados sugerem problemas no acesso aos cuidados médicos, apesar da Constituição garantir acesso universal aos brasileiros. Foi possível diagnosticar que um importante determinante do consumo estaria ligado a componentes da oferta dos serviços de saúde, uma vez que a probabilidade de consumo dos serviços diminui para áreas de menor densidade populacional (menor diversificação de serviços médicos) e para pessoas que não detêm seguro saúde. Esses determinantes somados a outras características individuais e domiciliares, que estariam concentradas nos grupos sociais mais privilegiados, evidenciam que mesmo garantindo acesso universal, a provisão de saúde pública torna-se bastante segmentada no país.
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Recebido em 24 de abril de 2002
Versão final reapresentada em 24 de setembro de 2002
Aprovado em 15 de outubro de 2002