ARTIGO
Autonomia reprodutiva: um estudo de caso sobre a surdez
Reproductive autonomy: a case study on deafness
Debora Diniz1
Anis: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. C. P. 8011, Brasília, DF 70673-970, Brasil
RESUMO
O princípio ético da autonomia reprodutiva é um dos eixos fundamentais das teorias bioéticas. As técnicas de diagnóstico pré-natal e o avanço da genética vêm ampliando o leque das possibilidades de escolha reprodutiva, permitindo, por exemplo, a seleção em casos de diagnóstico de má-formação fetal. Neste artigo, o caso da surdez será analisado, em especial o argumento da comunidade Surda que defende a preferência pelo nascimento de crianças surdas como forma de manutenção da identidade cultural surda. O argumento culturalista dessa comunidade, o de que a surdez não deve ser considerada uma deficiência, é discutido, sendo ponderado em que medida as decisões reprodutivas de futuros pais podem limitar o desenvolvimento de seus futuros filhos.
Palavras-chave: Surdez; Genética; Bioética
ABSTRACT
The ethical principle of reproductive autonomy is one of the cornerstones of bioethical theories. Prenatal diagnostic techniques and advances in genetics have broadened the spectrum of possibilities for reproductive choice. Consequently, they allow for selection in diagnosed cases of fetal malformation, for instance. This article analyzes the case of deafness, in particular the argument from the deaf community that supports the birth of deaf children as a way of maintaining its cultural identity. The article discusses the community's culturalist argument that deafness should not be considered a disability. Furthermore, the article considers the extent to which reproductive decisions by potential parents could limit the development of their future children.
Key words: Deafness; Genetics; Bioethics
Introdução
O final do século XVIII foi um marco para o debate da educação de surdos. Foi nesse período que escolas rivais, os oralistas e os manualistas, firmaram posições pedagógicas e políticas distintas (Bayton, 1997). Alexander Graham Bell foi uma figura proeminente nesse debate, tendo sido um defensor do ensino da linguagem oral, reservando severas críticas ao uso da linguagem dos sinais como a língua natural dos surdos. Para Bell, assim como para grande parte dos educadores oralistas, o ensino e o aprendizado da linguagem oral permitiriam aos surdos a integração social, rompendo a barreira lingüística entre ouvintes e surdos. Bell justificava sua resistência à criação de escolas especiais para surdos, onde somente se utilizaria a linguagem dos sinais, pelo risco de formarem-se comunidades surdas com tendência ao casamento endógamo, tornando possível "...a formação de uma variedade surda da raça humana..." (Bayton, 1997:130). O receio de Bell era não apenas o da formação de uma colônia de surdos dentro da sociedade nacional, a exemplo do que ocorre com inúmeras comunidades de imigrantes, mas, principalmente, a de que os surdos constituíssem a alteridade absoluta, a variação não ouvinte da espécie humana (Jordan, 1991).
Essa fantasia de criação de um novo humano a partir de uma natureza não prevista, mas passível de ser dominada, não ficou restrita aos ideais pedagógicos de Bell. A história social da surdez mostra quanto os surdos, e mais recentemente a comunidade surda, vêm sendo alvo de controle e ordenamento médicos, exatamente por desafiarem os limites normativos do normal e do patológico. De acordo com a tradição nos estudos culturalistas sobre surdez, estabeleceu-se uma convenção lingüística que delimita as fronteiras políticas do movimento e que, para fins argumentativos, será seguida neste artigo. Entende-se por comunidade Surda as pessoas que possuem o sentimento de pertencimento à cultura Surda, definida basicamente pela linguagem dos sinais, ao passo que surdos são todos os que não se identificam com o movimento social, ou porque foram pessoas socializadas em ambiente ouvinte ou porque têm variados graus de deficiência auditiva.
A história da educação de surdos oscila entre mudanças nas técnicas pedagógicas e manifestações de identidade cultural, um indício da dificuldade de se definir socialmente a surdez. E é exatamente dessa tensão entre argumentos de anormalidade física e normalidade cultural que o discurso genético sobre a surdez emerge, fazendo desta um caso-limite que desafia a compreensão ética. A resistência que as comunidades surdas, especialmente norte-americana e inglesa, vêm apresentando à nova onda de medicalização da surdez com a medicina genética é um caso exemplar da dificuldade de se estabelecerem parâmetros claros e definidos para o que caracterizaria o patológico na diversidade humana.
Neste sentido, a surdez, entendida como o paradigma da resistência dos movimentos de deficientes à medicalização da vida social, não é uma novidade da medicina genética. A genética, e especialmente o ethos do aconselhamento genético reprodutivo, onde neutralidade e imparcialidade éticas são valores dominantes, potencializa valores e atitudes sociais relacionados à surdez, ao mesmo tempo em que esta desafia a eficácia desses princípios éticos. Casos como os relatados por Dena Danis, Ronald Green ou Harlan Lane, em que famílias e comunidades Surdas anunciam suas preferências por embriões surdos em detrimento de embriões ouvintes, isto é, famílias de surdos, por meio das tecnologias reprodutivas, escolhem embriões surdos e descartam embriões ouvintes, provocam os limites do modelo ético dominante na genética, que defende a soberania da autonomia reprodutiva das pessoas (Davis, 2001; Green, 1997; Lane, 1997). Outro campo médico em que as comunidades surdas provocam a compreensão do modelo ético baseado na autonomia é a audiologia com as cirurgias de implante coclear, em que pais Surdos não autorizam que seus filhos submetam-se à cirurgia sob a alegação de que essa é uma forma de extermínio da cultura Surda pela suposta cura da surdez (Levy, 2002).
Mas nem sempre a genética promoveu a autonomia reprodutiva como princípio ético norteador de sua prática. Desde a história da medicina nazista e dos movimentos higienistas que marcaram o início do século XX, a genética se viu ligada a ideologias eugênicas de intolerância em face da diversidade, tendo sido preciso reformular por completo seu discurso e prática médica para que voltasse a conquistar a confiança e a respeitabilidade social (Paul & Spence, 1995). O fantasma da eugenia como sinônimo de intolerância e opressão moral ainda ronda a genética contemporânea, muito embora haja uma razoável distância entre o que caracterizou a prática clínica e de pesquisa da genética nazista e os dilemas morais decorrentes das recentes pesquisas genômicas.
Diferente do passado, quando famílias de surdos eram arbitrariamente esterilizadas ou mesmo crianças surdas eram transformadas em cobaias de pesquisa, os dilemas atuais impostos pela genética clínica são de outra ordem. Talvez o tema ético seja o mesmo o respeito à autonomia reprodutiva , mas certamente o conteúdo do conflito agora é outro. O avanço das técnicas de diagnóstico pré-natal, pelo mapeamento genético de síndromes causadoras da surdez, associado ao sentimento de orgulho pelo pertencimento à comunidade Surda fizeram com que o desejo pelo filho surdo passasse de expectativa do acaso a possibilidade de seleção (Rehm & Morton, 1999). O avanço nas técnicas de mapeamento genético, além da segurança de diagnóstico, tornou possível algo considerado impensável há algumas décadas: a possibilidade de a comunidade Surda afirmar, por meio da ciência, a preferência pelo surdo. A diferença para o passado é que antes se discutia a importância do reconhecimento da autonomia reprodutiva aos surdos, uma vez que os mesmos eram considerados indesejados para a ordem moral. Hoje, se enfrenta a dúvida sobre a imposição ou não de limites ao exercício da autonomia reprodutiva de algumas comunidades Surdas que defendem a preferência por embriões surdos em nome da adequação familiar e cultural (Edwards, 1997). Em certo sentido, seria possível dizer que, no campo da genética reprodutiva, algumas comunidades de surdos passaram de vítimas ao banco dos réus.
O fim da inocência genética
Dilemas morais semelhantes a este provocado pelas comunidades Surdas não são fatos raros na vida coletiva. Tampouco são meros resultados do avanço biotecnológico da medicina, como sugerem os mais resistentes à medicalização da sociedade. Alguns temas em pauta, como a moralidade do aborto ou a moralidade sexual, são anteriores às pesquisas genéticas. Na verdade, o que há por trás dessa controvérsia são diferentes maneiras de entender e qualificar o humano, com base também em diferentes perspectivas sobre o que determina a qualidade de vida e o bem-viver. A dificuldade, no entanto, não está em reconhecer a pluralidade moral da humanidade, mas sim em encontrar mecanismos norteadores para essa diversidade, que, muitas vezes, elege princípios e valores incompatíveis entre si (Diniz, 2001a). E é exatamente nesse sentido que o confronto entre as comunidades Surdas, com seu apelo pela seleção de embriões surdos, e as pessoas ouvintes e surdas, que não se identificam com o movimento cultural da surdez, torna-se um caso paradigmático de exercício ético. É preciso lembrar, no entanto, que, mesmo entre as populações surdas, não há consenso sobre como qualificar a surdez, se como deficiência ou variância lingüística, sendo o movimento das comunidades Surdas minoritário dentre a população surda em geral.
Não há dúvidas de que a idade da inocência genética não mais existe (Kitcher, 1996). Posições de resistência ao uso e à popularização da genética não vêm sendo fortes, tampouco consistentes o suficiente para romper com a lógica que assegura a necessidade social da informação genética para a promoção do bem-estar. A possibilidade de conhecer o pedigree genético de um embrião não é somente uma novidade tecnológica da medicina, mas uma prescrição para os futuros pais que reconhecem nessa informação uma vantagem adicional para suas decisões reprodutivas. Admitir essa inércia social em face da ciência não é o mesmo que assumir uma relação de resignação passiva ao seu avanço e, principalmente, às conseqüências sociais, políticas e éticas de seu uso. A genética reprodutiva, ao permitir que os futuros pais recebam informações sobre o estado do embrião antes de seu nascimento, ampliou o leque de possibilidades de escolha, o que para muitas pessoas é um grande benefício. Tanto não é desejável que se soneguem informações já disponíveis o que eticamente é diferente do exercício do direito de não ser informado quanto é impossível atravancar o avanço científico por medo das preferências pessoais. É fundamental que se forme um debate público, amplo e irrestrito, entre cientistas e profanos, sobre a genética e seu impacto, considerando-se ao mesmo tempo o comprometimento com os princípios de não-maleficência e da autonomia individual (Feyeraband, 1993).
Os testes genéticos para diagnóstico preditivo passam gradativamente a compor a rotina de um bom pré-natal, especialmente entre famílias com acesso aos melhores serviços de saúde. Em certo sentido, pode-se considerar, como sugerem Parens & Asch, que os testes genéticos serão uma extensão lógica das ofertas de exames pré-natal que asseguram a saúde do feto (Parens & Asch, 1999). Mas, se por um lado, essa lógica justifica-se pela segurança de diagnóstico que os exames propiciam, por outro, a dúvida sobre o impacto moral da informação genética é ainda inquietante. E é exatamente nesta tensão entre informação genética e escolha moral que o exame genético para detectar a predisposição à surdez encontra-se imerso. Para a grande maioria das pessoas, surdez é sinônimo de uma grave e limitante deficiência, ao passo que, para outras, a impossibilidade de escutar exige apenas uma reestruturação da ordem lingüística. A depender do ponto de partida moral sobre como se define a surdez, ou seja, como uma patologia genética indesejável ou como uma variação cultural, as escolhas familiares frente à informação genética serão radicalmente diferentes. Na verdade, para grande parte das comunidades surdas, negar que a surdez seja uma deficiência passível de cura é um argumento que se encontra atrelado ao da surdez como variação cultural (Levy, 2002).
O curioso é que o avanço científico que mapeou alguns dos traços genéticos para a surdez não supunha a seleção positiva dos embriões surdos, tal como proposto pela comunidade Surda. Muito provavelmente, as pesquisas sobre as causas genéticas da surdez possuíam dois objetivos: (1) conhecer as configurações genéticas da surdez, com vistas ao desenvolvimento de tratamentos e curas; (2) na ausência de tratamentos e curas, permitir que futuros pais selecionassem negativamente os embriões portadores de genes para a surdez. Ou seja, como conseqüência natural do diagnóstico genético embrionário para a surdez, esperava-se o aborto seletivo. Muito embora a opção pela interrupção da gestação seja a saída mais comum e amparada pelo ethos do aconselhamento genético que assume posicionamentos não restritivos diante do aborto, a seleção positiva dos embriões surdos trouxe o tema da não-maleficência para o campo do debate ético em genética reprodutiva (Chadwick & Levitt, 1997).
Cultura surda
Em março de 2001, Jeff McWhinney, diretor executivo da Associação Britânica de Surdos, iniciou seu pronunciamento sobre o tema da genética e da surdez com a seguinte afirmação: "...a comunidade Surda é uma comunidade orgulhosa de si. Orgulhosa de sua cultura, orgulhosa de sua história e orgulhosa de sua linguagem. Nós temos todos os direitos de ser orgulhosos. Nós sobrevivemos a várias tentativas de estigmatização, de opressão e mesmo de eliminação de todos nós..." (McWhinney, 2001:1). O orgulho a que se referia McWhinney é o de se reconhecer como uma comunidade, onde a linguagem dos sinais é o ícone da cultura. Para os que defendem a idéia da cultura Surda, entre surdos e ouvintes o que existe é uma fronteira traçada pela audição, ou seja, nada que justifique o confinamento dos surdos ao estigma social do patológico ou do anormal, um traço passível de ser medicalizado ou curado. Os Surdos se comparam às comunidades de imigrantes, sugerindo uma diferença de grau no fato de o bloqueio lingüístico ser devido a uma limitação física e não de aprendizado, um argumento largamente criticado por aqueles que não reconhecem o fundamento culturalista na surdez (Levy, 2002). Em 1890, um instrutor de surdos, durante um congresso sobre a importância da linguagem dos sinais, comparou a dificuldade expressiva dos surdos à de imigrantes chineses recém-chegados aos Estados Unidos, em um claro indício do suporte culturalista de sua argumentação política (Bayton, 1997). A mesma estratégia comparativa vem sendo ainda hoje utilizada por membros da cultura Surda, especialmente entre líderes políticos e comunitários (Dolnick, 1993).
Em linhas gerais, a comunidade Surda fundamenta sua posição culturalista na diferença que existe entre condição da surdez (incapacidade de ouvir) e sintoma social da surdez (incapacidade de falar). Os representantes da cultura Surda defendem que estariam sendo julgados anormais pelo simples fato de não usarem a mesma língua que os ouvintes, ou seja, por não serem bilíngües assim como os chineses do exemplo anterior ou, ainda, por não compartilharem dos valores culturais hegemônicos, segundo as palavras de Roslyn Rosen, então presidente da Associação Norte-Americana de Surdos, ao comparar a surdez a minorias étnicas: "...eu sou feliz como sou...e não gostaria de ser "curada"...em nossa sociedade, todos concordam que os brancos têm uma vida melhor que os negros. Mas alguém imaginaria que uma pessoa negra deveria fazer uma operação para se tornar branca?..." (Levy, 2002:139). A demarcação da fronteira entre condição e sintoma permite que se considere a surdez como um caso-limite da premissa de que a deficiência é uma condição antes social que física, argumento fortemente defendido pelos teóricos do modelo social da deficiência (Oliver, 1990; Oliver & Barnes, 1988).
Dado que não existe consenso sobre o status social da surdez entre membros da comunidade Surda e ouvintes, a pergunta feita por McWhinney durante seu pronunciamento "...qual a diferença entre escolher ter um bebê surdo e escolher um bebê ouvinte? A não ser que se acredite que a vida de uma pessoa surda seja inferior que a de uma pessoa ouvinte, tais decisões deveriam ser tomadas sob as mesmas bases..." retira o debate do campo genético propriamente dito e o lança para o campo dos direitos sociais fundamentais (McWhinney, 2001:2). Para McWhinney, assim como para inúmeros teóricos do modelo social da deficiência, o problema não reside na moralidade do aborto, até mesmo porque grande parte deles defende o direito de escolha, mas no argumento manifesto que o aborto seletivo carrega consigo (Diniz, 2001b). Parens & Asch definem o argumento manifesto pela correlação que existe entre os exames genéticos e a vida das pessoas portadoras de deficiências: "...os testes pré-natais que selecionam contra traços genéticos de deficiência manifestam uma atitude danosa sobre as pessoas portadoras de deficiência e enviam mensagens danosas para as pessoas que vivem com esses traços..." (Parens & Asch, 1999:S2). No caso específico da surdez, por exemplo, a crítica da comunidade Surda ao argumento manifesto seria o de que não sendo a surdez uma deficiência, mas uma restrição lingüística culturalmente determinada, o aborto seletivo remete antes a valores sobre qualidade de vida do que a restrições absolutas impostas pela surdez. Logo, não apenas a comunidade Surda se distancia dos outros movimentos de deficientes não se reconhecendo como um deles, mas também, do ponto de vista político, aproxima-se de outros movimentos sociais que constroem seus discursos com base na fronteira entre diferenças biológicas e desvantagem social, tais como os movimentos de mulheres e anti-racistas (Jordan, 1991). Esse movimento de aproximação política do movimento Surdo com outros movimentos sociais foi duramente criticado por Neil Levy, que defende que, diferentemente do sexo ou da raça, a surdez é uma incapacidade que possui fundamentos absolutos, não dependendo apenas do ordenamento social para ser erradicada a desigualdade (Levy, 2002).
Mas nos casos em que a surdez for considerada uma vantagem, estima-se que a preferência por embriões surdos ocorrerá em dez por cento do total das famílias de surdos, isto é, em famílias de futuros pais também surdos, um dado que aponta para o quanto o movimento surdo ainda é uma idiossincrasia minoritária para as populações surdas (Chadwick & Levitt, 1997; Davis, 2001; Rehm & Morton, 1999). Para essas famílias, a certeza do nascimento de um filho surdo é um tranqüilizador para a estrutura familiar e social, ordenada em torno da linguagem dos sinais. Ou seja, o princípio da busca pelo semelhante, um valor para todas as políticas sociais de adoção, seria o motivo do desejo de futuros pais surdos por embriões surdos. O nó da questão, no entanto, não está no argumento culturalista utilizado pela comunidade Surda, mas na própria premissa cultural utilizada. O argumento contrário à possibilidade de seleção de embriões surdos como garantia da identidade intrafamiliar não apenas desconsidera a surdez como uma diferença cultural, classificando-a como uma patologia, mas também se apóia em princípios éticos de justiça e de não-maleficência para criticá-la, uma vez que o debate ético sobre autonomia reprodutiva no aborto não se torna capaz de mediar essa questão (Biesecker, 1997). O tema-chave desse confronto entre autonomia, não-maleficência e justiça é a pergunta de como as decisões genéticas dos futuros pais podem expandir ou limitar as possibilidades futuras de seus filhos, considerando que a surdez é uma condição física, até o momento, irreversível (Davis, 2001).
Autonomia reprodutiva, não-maleficência e justiça
"...Eu gostaria que minha filha fosse como eu, que ela fosse surda...". Com essas palavras, uma mulher grávida, participante de um programa de televisão, descreveu como imaginava sua filha ainda por nascer (Lane, 1997:160). Isso foi em 1989, em um momento em que ainda não era possível escolher a condição auditiva do embrião. Se no passado não havia como imputar responsabilidade pelas heranças genéticas, tampouco era possível exercer com criatividade o direito de escolha. O avanço da genética e, em especial, do projeto genoma humano, vem produzindo um conjunto de informações que amplia o leque de possibilidades de escolha para os futuros pais, fazendo com que a acusação de irresponsabilidade genética comece a vigorar. Hoje, com o fim da inocência genética, é preciso rever o princípio do exercício ilimitado da autonomia reprodutiva dos futuros pais em situações em que suas escolhas impliquem danos irreversíveis e graves para seus futuros filhos. A ignorância genética do passado era uma barreira científica que protegia os futuros pais da crítica e da condenação moral, o que não é mais possível com os atuais avanços do diagnóstico genético.
Ronald Green (1997), ao analisar a situação hipotética de um casal surdo que deliberadamente escolhe um embrião surdo por meio de tecnologias reprodutivas, sustenta a diferença entre direitos e obrigações no campo das decisões reprodutivas. Segundo Green, esse é um exemplo de uma situação em que os direitos podem estar em conflito com as obrigações. No intuito de mediar essa tensão entre direito e obrigação, o autor sugere a seguinte norma: "...os pais têm a obrigação prima faciede não permitir que a criança seja formada deliberadamente ou negligentemente com uma saúde que resulte em sofrimento ou deficiência significativas, ou em reduções significativas nas opções de vida, quando comparada a outras crianças com as quais ela irá crescer..." (Green, 1997: 10). Ou seja, a sugestão é que se considerem as obrigações para com os futuros filhos um balizador para o exercício da autonomia reprodutiva dos futuros pais no campo da genética reprodutiva, um argumento duramente criticado por Leslie Biesecker por considerá-lo desrespeitoso com as comunidades de deficientes e, em última instância, eugênico (Biesecker, 1997). Dessa forma, os futuros pais têm a obrigação de minimizar a loteria da natureza que, até pouco tempo, era considerada indomável no campo da herança genética. Sendo assim, a escolha pelo embrião surdo deveria ser considerada uma escolha irresponsável do ponto de vista genético, uma vez que a decisão dos futuros pais implica uma restrição definitiva e absoluta das possibilidades futuras de escolha pela criança. Como resultado da preferência inicial dos pais, a criança terá seu leque de oportunidades e escolhas definitivamente encerrado nos limites da cultura Surda. Em termos culturais, a escolha pelo embrião surdo confina a futura criança ao grupo cultural de seus pais, uma decisão que deve ser considerada, no mínimo, limitante.
Segundo um defensor da cultura Surda, não deveria haver diferença entre prevenir o nascimento de uma criança surda e prevenir o nascimento de uma mulher, de um gay ou de um negro, uma vez que estas também são condições socialmente limitantes e, ao contrário do aborto seletivo por determinação de sexo, mundialmente condenado, o aborto seletivo em casos de surdez é moralmente neutro ou mesmo estimulado (Buchanan et al., 2000). Ora, muito embora este seja um argumento politicamente forte para o movimento da cultura Surda, é preciso reconhecer diferenças entre uma mulher surda e uma mulher ouvinte. As restrições de oportunidade às mulheres surdas são infinitamente maiores que as impostas às mulheres ouvintes. O fato de existirem restrições de acesso às oportunidades pelo simples fato de ser mulher é uma questão básica de estrutura social discriminatória às mulheres. Caso se extinguisse a discriminação contra as mulheres, ainda assim as mulheres surdas sofreriam restrições de oportunidades. E, nas palavras de Buchanan et al. (1997:284), essa é uma separação fundamental a ser feita, uma vez que "...tem implicações importantes sobre como nós iremos enfrentar os custos para eliminação das limitações de oportunidades que resultam do fato de ser surdo frente às limitações sofridas por aqueles que são gays ou negros, por exemplo..." . Ou seja, por um princípio de justiça social e de não-maleficência, deve-se considerar que o resultado do exercício de autonomia reprodutiva dos futuros pais surdos pode não apenas impor limitações graves ao futuro da criança a ser gerada; é preciso também ponderar o esforço social para que se compense essa desigualdade inicial entre surdos e ouvintes.
Reconhecer a irresponsabilidade genética dos futuros pais não é o mesmo que proibi-los de realizar suas preferências reprodutivas. Para John Harris, confundir o julgamento moral de um ato com sua proibição é uma falácia comum no campo da ética reprodutiva (Harris, 2000). É possível, portanto, reconhecer a irresponsabilidade dos futuros pais membros de comunidades Surdas em preferir embriões surdos em nome de seus referenciais culturais, mas isso não significa que devamos impedi-los de tomar essas decisões. A passagem do julgamento de um ato para sua proibição moral somente deve ser percorrida após um longo e exaustivo debate público, não esperando que seja possível atingir o consenso sobre esse tema. Antes disso, é preciso que se discuta amplamente como as decisões genéticas dos futuros pais podem expandir ou limitar as possibilidades de expressão futuras de seus filhos e quais devam ser, se é que podem existir, as restrições para o exercício da autonomia reprodutiva. A importância de um debate como este é o de garantir a pluralidade de argumentos e valores, muito embora a saída para um conflito moral dessa natureza implique necessariamente a coação de uma das partes discordantes.
Agradecimentos
Agradeço ao grupo de participantes do Programa Implicações Sociais e Éticas do Projeto Genoma Humano, um espaço privilegiado de reflexão, em que parte das idéias aqui expostas foi discutida, e à Patrícia Tuxi, psicopedagoga, intérprete de LIBRAS, que gentilmente esclareceu questões sobre a educação de surdos e a linguagem de sinais. Este artigo foi escrito como resultado da participação no Summer Faculty Institute on the Ethical, Legal, and Social Implications of the Human Genome Project, em Dartmouth College, New Hampshire, Estados Unidos, em junho de 2001.
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Endereço para correspondência
Debora Diniz
d.diniz@anis.org.br
Recebido em 22 de fevereiro de 2002
Versão final reapresentada em 6 de junho de 2002
Aprovado em 30 de julho de 2002
1 Anis: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. C. P. 8011, Brasília, DF 70673-970, Brasil