ARTIGO

 

Uma análise da implementação dos comitês de estudos de morte materna no Brasil: um estudo de caso do Comitê do Estado de São Paulo

 

An analysis of the implementation of Committees on Maternal Mortality in Brazil: a case study of the São Paulo State Committee

 

 

Ana Verônica Rodrigues1; Arnaldo A. Franco de Siqueira1

Departamento de Saúde Materno-Infantil, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Av. Dr. Arnaldo 715, São Paulo, SP 01246-904, Brasil

 

 


RESUMO

A precariedade das informações disponíveis e as dificuldades para a obtenção de dados consistentes sobre a morte materna, em nosso país, põem em questão a confiabilidade das estatísticas oficiais. Os Comitês de estudos da morte materna se constituem uma das estratégias para a superação dessas dificuldades. Este artigo propõe algumas reflexões sobre aspectos da atuação dos Comitês com base na análise do percurso do Comitê do Estado de São Paulo que revelou, entre outras coisas, sua dimensão enquanto instrumento político e de controle social, situando-o, assim, para além de uma estratégia de vigilância epidemiológica. Tal posição tem trazido impasses ao trabalho de investigação da morte materna, e as adversidades decorrentes, como uma frágil inserção e pequena autoridade institucional, têm prejudicado enormemente o cumprimento das suas funções, tanto no âmbito técnico como no plano político. É necessário um reposicionamento que conduza ao seu fortalecimento como mecanismo de investigação e instância de proposição das medidas para a prevenção e redução da morte materna.

Palavras-chave: Mortalidade Materna; Saúde da Mulher; Comitê de Profissionais


ABSTRACT

The precarious available information and difficulties in obtaining consistent data on maternal deaths in Brazil raise doubts as to the reliability of official statistics. The Committees on Maternal Mortality are considered an important strategy for overcoming these difficulties. This article discusses certain aspects of the Committees' performance, based on the case of the State of São Paulo, demonstrating the Committee's role as a policy and advocacy instrument, thus going beyond merely an epidemiological surveillance strategy. This position has produced impasses in the work involving investigation of maternal deaths, and the resulting adversities, including limited institutional authority and power to intervene, have greatly jeopardized its functions both in the technical and political arenas. The Committee should be repositioned in order to strengthen itself as both a mechanism for investigation and a collective stakeholder to propose measures for the prevention and reduction of maternal mortality.

Key words: Maternal Mortality; Women's Health; Professional Staff Committees


 

 

Introdução

O conhecimento da situação real da morte materna é uma questão que tem sido discutida em diversos estudos, em distintos lugares. A literatura sobre o assunto mostra que a insuficiência de dados sobre sua magnitude e circunstâncias é um fenômeno universal que tem sido verificado tanto nos países desenvolvidos, cujos sistemas de informações em saúde são de reconhecida credibilidade (Breart, 1994; Hibbard et al., 1994; Koonin et al., 1988), como nos países em desenvolvimento.

No Brasil, os resultados de estudos mais acurados como os de Siqueira et al. (1984, 1991) e Laurenti et al. (1990) constituem-se em um importante alerta quanto à confiabilidade das estatísticas oficiais, uma vez que corrigiram o coeficiente de mortalidade materna para quase o dobro dos valores até então conhecidos. As dificuldades presentes no processo de obtenção de informações sobre a morte materna, que tornam inconsistentes os dados disponíveis, contribuem de modo significativo para a suspeição dos números oficiais. Tais dificuldades referem-se às incorreções técnicas na certificação médica dos óbitos e, somando-se a estas, a má qualidade dos registros institucionais (prontuários hospitalares e ambulatoriais) sobre a assistência; a existência, em algumas localidades, de cemitérios clandestinos e a incriminação do aborto (Siqueira, 1991). Não é demais reiterar que esses obstáculos prejudicam enormemente a formulação de medidas adequadas para a saúde materna.

A aquisição de mais e melhores informações sobre a ocorrência e circunstâncias das mortes maternas, como os dados clínico-epidemiológicos, de infra-estrutura de serviços, sanitária e logística, dados institucionais, sócio-econômicos e culturais, é de fundamental importância para a correção das distorções, quanto ao tamanho e qualificação do problema e, por conseqüência, para o equacionamento de medidas para a prevenção e redução da mortalidade do grupo de mulheres expostas a esse risco (Faúndes, 1987).

É nesta perspectiva que o surgimento dos Comitês de Morte Materna (CMM) se coloca, pois, citando a afirmação de Castillo (1994), eles são "uma das mais bem sucedidas estratégias para se conhecer e monitorar a situação de mortalidade materna nos diversos países".

 

O Comitê como dispositivo técnico-científico

As informações que a literatura traz situam historicamente a criação dos Comitês de estudos de mortalidade materna como um mecanismo ou estratégia de estudo pertinente ao campo da epidemiologia, tendo em sua metodologia de trabalho paradigmas próprios dessa área. A complexidade de um sistema de vigilância epidemiológica de mortalidade materna e a sua necessária articulação com o sistema de saúde levam ao reconhecimento de que seu "desenho" implica as especificidades de cada país e nos recursos disponíveis para a saúde materna (OPS/OMS/CDC, 1992; Rajs, 1992). Entretanto, alguns parâmetros e definições foram consignadas pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPS/OMS/CDC, 1992) de modo a favorecer a comparabilidade dos dados e aperfeiçoar os sistemas existentes. Dessa maneira, a concepção do sistema de vigilância do óbito materno foi assim estabelecida: "o processo contínuo e sistemático de coleta, análise, interpretação e difusão de dados relacionados com a identificação, notificação, medição, determinação de causa e prevenção de mortes maternas, com o propósito de formular medidas de prevenção adequadas. Tal sistema de vigilância é um componente do sistema de informação de saúde" (OPS/OMC/CDC, 1992:4). Nesse sentido, os Comitês são vistos como parte integrante da estrutura do sistema de vigilância, assinalando-se o caráter técnico dessa inserção com funções correspondentes àquelas do sistema.

A definição de CMM adotado no Brasil segue esses mesmos princípios – são instâncias interinstitucionais, multiprofissionais e confidenciais que visam identificar todos os óbitos maternos e apontar medidas de intervenção para a redução desta mortalidade, na região de sua abrangência. Ele representa também um instrumento importante de avaliação permanente da atenção materna – derivando-se daí as suas funções de investigação, avaliação, informação, educação, além das funções normativa e mobilizadora (MS, 1994).

Embora a criação dos Comitês tenha representado um avanço para a saúde materna, a sua atuação, entretanto, levanta muitas questões que podem ser cotejadas para melhor delinear os seus limites e contornos. A experiência do Comitê do Estado de São Paulo certamente vem contribuir para essa reflexão. Os dados coletados para o estudo Comitê de Mortalidade Materna do Estado de São Paulo: trajetória e vicissitudes (Rodrigues, 2000) – cuja base empírica foram depoimentos dos membros fundadores e de outros integrantes do referido Comitê, bem como a análise de documentos de seu arquivo – permitiram recompor o seu percurso observando-o pelo enfoque da noção de narrativa histórica como trama (Veyne, 1995) e, portanto, compreendê-lo como evento inscrito numa rede de conexões. Assim, cabe levantar indagações como: o que pode a história do CMM de São Paulo dizer sobre a atuação dos demais? Se for possível considerar a sua criação como um evento inscrito na trama da atenção à saúde reprodutiva, o que nos dirá sua trajetória sobre isto? Qual seria o seu lugar na trama da atenção à saúde materna? Qual a sua inserção na trama dos movimentos sociais na década de 1980, época em que, no campo da saúde, observa-se, entre outros, a emergência do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM) (Rodrigues, 2000)?

Os itinerários possíveis que essas e outras indagações levam a percorrer passam pela apreensão das implicações do papel social que lhe é atribuído. Assim, concebê-lo como uma estratégia de vigilância epidemiológica significa assinalar a dimensão técnica de sua atuação no contexto dos processos de trabalho pertinentes ao sistema de informação em saúde. Por outro lado, observá-lo na perspectiva das funções definidas e adotadas no Brasil, como mencionado acima, possibilita vislumbrar a dimensão ético-política que tais funções conferem às suas atividades.

Situar historicamente, ainda que brevemente, o surgimento dos Comitês poderá auxiliar na compreensão dos possíveis significados de sua emergência e dos meandros de sua atuação.

O combate à mortalidade materna e os Comitês: alguns marcos históricos

A mobilização internacional em torno do problema da mortalidade materna tem na Conferência Internacional sobre a Maternidade sem Risco (Safe Motherhood Conference) em 1987 – Nairobi, um importante demarcador. Este foi um evento de grande repercussão mundial que se converteu em marco referencial, sobretudo para os países menos desenvolvidos, dado que foi a partir daí que a questão assumiu mais espaço na agenda das discussões relativas à saúde pública (Castillo, 1994; Laurenti, 1989).

Outras Conferências internacionais seguiram-se, dentre elas, a XXIII Conferência Sanitária Pan-Americana em Washington, 1990, que foi para a região das Américas um marcante acontecimento, tendo sido aprovado o Plan de Acción Regional para la Reducción de la Mortalidad Materna en la Región de las Américas cujas linhas mestras alcançavam o âmbito das políticas públicas; da legislação; dos programas e serviços de saúde reprodutiva; capacitação dos recursos humanos; educação da população; vigilância e avaliação; investigação e financiamento (OPS/OMS, 1996; PAHO/WHO, 1990). Os países signatários assumiram o compromisso de formular seus planos nacionais de redução da mortalidade materna firmando a meta de reversão em, pelo menos, 50% até o ano 2000 (Abou'Zahr et al., 1996).

Alguns dos pressupostos que fundamentam este Plano estão assentados, basicamente, no reconhecimento de um contexto sócio-econômico desfavorável – comum à maioria dos países menos desenvolvidos do continente americano – que converte a vulnerabilidade biológica da mulher, no ciclo gravídico-puerperal, em risco de adoecer e/ou morrer, neste período, e na constatação da evitabilidade da maior parte das mortes maternas, uma vez que já se dispõe de conhecimento científico e tecnologia para preveni-las (OPS/OMS, 1996).

Entre as estratégias apontadas para o alcance dessas metas estava a "instauração e manutenção de Comitês de Mortalidade Materna em nível nacional, regional e local dos serviços de saúde" (OPS/OMS/CDC, 1992:2).

Todavia, a emergência dos Comitês de Estudos de Morte Materna como instrumento de combate à mortalidade materna ocorre muito antes da década de 1980. Eles estão presentes desde a década de 1930, sendo os Estados Unidos o primeiro país do mundo a instituí-los (Tanaka, 1995; Volochko, 1992). A Inglaterra implanta seu Programa governamental Inquéritos Confidenciais de Morte Materna, em 1952. Em ambos os países essa medida foi adotada em decorrência de estudos que indicavam aumento das taxas de mortalidade materna e inadequação da assistência (Braga, 1989; Marmol et al. 1969). Também em Cuba o processo de análise da mortalidade materna foi regulamentado desde 1968 como programa do governo, e, no México, foram criados Comitês hospitalares a partir de 1970 (Cabezas, 1988; Karchmer et al. 1975).

No Brasil, o Estado de São Paulo despontou, no final da década de 80, como centro pioneiro e irradiador dos esforços no combate a este agravo e criou os primeiros Comitês de Estudo da Morte Materna do Brasil, em 1988. O processo de sua instauração contou também com a participação de representantes do movimento organizado de mulheres em sua formulação (Rodrigues, 2000).

Em fevereiro de 1988 foram criados, por resolução do Secretário de Saúde, os primeiros Comitês de Estudos da Morte Materna em cinco regiões do Estado: Botucatu; Campinas; Marília; Ribeirão Preto e Centro (parte da região metropolitana de São Paulo). Todos eles estavam vinculados aos Departamentos de Ginecologia e Obstetrícia das Faculdades de Medicina locais. O critério que fez recair sobre essas regiões a escolha dos primeiros Comitês estava fundamentado na idéia, segundo depoimento do ex-presidente da Comissão, de que a presença da figura do Professor imprimiria uma maior confiança, tanto na oferta das informações corretas requeridas pelo Comitê, quanto na discussão dos casos.

A composição inicial do Comitê era exclusivamente de médicos, não tendo sido contempladas as presenças de técnicos dos serviços de saúde e de representantes de outras entidades que não da área médica. Profissionais docentes e outros especialistas participavam em caráter de consultoria técnica.

Entre 1991 e 1995, o Comitê entra em um período de refluxo quando não de esvaziamento, com algumas tentativas de retomada que, ao que tudo indica, não tiveram êxito.

O ano de 1995 representou uma espécie de "segundo tempo" no percurso do Comitê, quando passou a integrar o Sistema Estadual de Vigilância Epidemiológica do Óbito Materno, reformulação essa instituída por decreto do Governador do Estado. Contudo, sua estrutura somente foi regulamentada em 1997.

É interessante notar que nesse "segundo tempo" da história do Comitê – a despeito de um status jurídico-legal e administrativo mais consistente e da ampliação da participação com a inclusão de representantes de outros setores da sociedade envolvidos com o problema da mortalidade materna, como, por exemplo, Conselhos de Saúde, Conselho de Profissionais, entre outros – as dificuldades no desempenho de suas atribuições permaneceram e ainda estão a merecer um equacionamento que o leve a sair dos impasses que o aprisionam em limites que não só empobrecem sua atuação como lhe subtraem a autoridade institucional necessária para o cumprimento das funções que lhe foram atribuídas.

No que concerne à implantação e manutenção dos Comitês Estaduais de Morte Materna no Brasil, a situação apontada no Relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito da Mortalidade Materna sugere trajetórias oscilantes como aquela observada no Comitê de Estado de São Paulo. O referido relatório, apresentando dados do Ministério da Saúde (MS) para o ano de 1998, informa que dos 27 comitês estaduais de morte materna implantados apenas 14 permaneciam em atividade; 9 estavam em fase de reestruturação; e 4 desses Comitês encontravam-se desativados (Brasil, 2001).

Quanto ao grau de conhecimento da real situação da mortalidade materna nos estados, os dados de análise preliminar de Relatório da Área Técnica de Saúde da Mulher do MS (1998) intitulado "Atuação dos comitês estaduais e dos setores de Vigilância Epidemiológica na investigação da mortalidade materna: relatório preliminar", com base em levantamento realizado no período de maio a junho de 1998, destaca os Comitês como estratégia importante de diagnóstico da mortalidade materna, já que o número de óbitos informados pelos CMM estão acima daqueles registrados pela Coordenação Nacional de Epidemiologia (CENEPI) (MS, 1998).

Vale lembrar que tanto o Relatório do MS (1998) quanto o Relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito da Mortalidade Materna (2001) referem como outros resultados do trabalho dos Comitês de alguns estados: campanhas educativas sobre prevenção dos óbitos maternos; aumento de cobertura de pré-natal; controle das taxas de cesárea; apoio à campanha de parto "normal"; menor subnotificação; prioridade do governo no tocante a medidas de assistência perinatal; apoio à implantação do partograma padronizado nas maternidades; diminuição de óbitos por doenças específicas da gravidez; redução das taxas de mortalidade materna; cursos e treinamentos de parteiras e de agentes comunitários de saúde.

Por outro lado, a precariedade do funcionamento; a ausência do trabalho sistemático de investigação do óbito materno na maioria dos estados brasileiros; os entraves que debilitam a capacidade operacional dos Comitês, entre outros aspectos mencionados nos relatórios referidos acima, indicam que, em que pesem os resultados até agora alcançados, a sua atuação encontra ainda dificuldades que demandam uma maior análise para superação.

Sobre alguns significados da experiência do Comitê de Mortalidade Materna do Estado de São Paulo

A emergência do Comitê de Estudos de Morte Materna do Estado de São Paulo representou, sem dúvida, um avanço nas conquistas para melhorar a saúde materna. Sua trajetória, mesmo tendo sido oscilante, foi marcada, nos tempos iniciais (1988-1989), pelo vigor das iniciativas para sua implementação e alvissareira quanto ao seu percurso. As circunstâncias favoráveis dos primeiros tempos do Comitê estavam provavelmente relacionadas às conquistas sociais importantes no campo da saúde, na década de 80. Vale situar que tais conquistas foram, por sua vez, resultantes de um processo social mais amplo que vinha ocorrendo na sociedade brasileira, de transformação do quadro político-institucional (Osis, 1994; Teixeira, 1988).

Desse modo, é possível pensar a emergência do Comitê de Estudos da Morte Materna do Estado de São Paulo como evento que fala de um momento histórico particular, marcado pelos ecos da participação social nas definições das políticas públicas. Provavelmente, tal circunstância traçou o seu perfil conferindo-lhe uma dimensão que, extrapolando seu caráter técnico-científico, o colocou como dispositivo político, ou seja, o inscreveu na cena onde tem se dado o exercício da cidadania (Rodrigues, 2000).

Nesse sentido, é cabível conjecturar igualmente sobre essas contingências como elementos intervenientes na dinâmica da evolução do CMM de São Paulo. Essa interferência parece ser uma circunstância que permanece presente no campo sócio-institucional, repercutindo continuamente e afetando, assim, em graus e intensidade diferentes, os diversos setores da sociedade, em geral, e as instituições diretamente vinculadas à estrutura organizacional estatal, em particular. O Comitê enquadra-se neste grupo e, ainda que sua composição conte amplamente com entidades da sociedade civil, a execução daquelas atividades subsidiárias e fundamentais ao desempenho de suas funções, é, em larga medida, dependente da infra-estrutura do aparato estatal.

A sujeição às conjunturas político-institucionais – e as vicissitudes daí decorrentes – poderia ser compreendida como um desafio que está, ainda, por ser equacionado.

A conturbada trajetória do Comitê reflete essa sujeição e assim também sucede com as condições de desenvolvimento de seu trabalho. Tais condições trazem à tona questões que já se colocavam no início de seu funcionamento e dentre essas, a temática de sua institucionalização ou sua incorporação ao Sistema de Vigilância Epidemiológica. É possível articular essa temática com uma de suas contrapartidas que é o trabalho de "voluntariado", no lugar da não-disponibilização de uma equipe técnica responsabilizada formal e funcionalmente para a execução dos trabalhos requeridos pelo Comitê, notadamente aquele referente à operacionalização da investigação das mortes maternas. Outra das contingências da precária inserção institucional do Comitê são os obstáculos no plano do suporte infra-estrutural como, por exemplo, transporte e recursos financeiros (Rodrigues, 2000).

Sobretudo pode-se dizer, ainda, que a fragilidade de sua posição ou de seu status reflete-se, também, na relação com a rede pública e privada de serviços de saúde no que tange à coleta de informações sobre os óbitos ocorridos nessas instituições, visto que não conferindo autoridade institucional ao Comitê, nem para a obtenção dos dados necessários à investigação nem, tampouco, para discuti-los, coloca-o na dependência da "boa vontade" da autoridade hospitalar em colaborar.

Entretanto, convém argumentar que tal compreensão aponta para a necessidade do aprofundamento da discussão sobre o papel que se atribui ao Comitê. As concepções e definições a esse respeito parecem situá-lo na fronteira entre um serviço rotineiro de vigilância epidemiológica e um fórum de interlocução dos setores sociais envolvidos com o combate à mortalidade materna – instâncias governamentais e sociedade civil.

É preciso ponderar que não se trata de optar entre um ou outro desses campos. Por suposto, estes não são incompatíveis nem conflitantes, podendo ser, até mesmo, complementares, em princípio. A questão que aqui pode ser levantada diz respeito à clareza das responsabilidades das instituições envolvidas com o seu trabalho e, em decorrência, à construção das condições exigidas para o desempenho eficaz na realização do diagnóstico da situação real da mortalidade materna e, igualmente, a construção das condições para o desenvolvimento da sociedade civil como co-participante desse processo.

O alargamento da participação social ocorrido a partir de 1995 no Comitê do Estado de São Paulo e também no Comitê do Estado do Paraná – mas implantado desde 1992 no Comitê do Município de São Paulo – poderia estar significando que o fortalecimento da participação social no Comitê deveu-se não só a uma maior consciência de que a morte materna é um problema relevante de saúde, mas também que as circunstâncias dessa morte envolvem problemas cujo enfrentamento passa, também, pelo controle social da qualidade dos serviços de saúde prestados às gestantes e parturientes detentoras dos direitos da cidadania.

Apesar dos avanços, a frágil posição institucional do Comitê converteu, muitas vezes, a dimensão política de sua trajetória em dificuldades que parecem lançar o seu trabalho em impasses que, por isso mesmo, demandam uma discussão mais aprofundada.

Alguns desses impasses situam-se no campo das relações entre a confidencialidade das informações, ética médica e controle social. A relevância dessas questões como elementos intervenientes no processo de trabalho do CMM poderiam remeter, no limite, ao problema da sua eficácia na tarefa de contribuir para a prevenção e redução da mortalidade materna.

As dissensões presentes nesse campo indicam uma polaridade conflituosa entre segmentos sociais específicos na defesa de seus interesses como, por exemplo, de um lado, o grupo familiar das mulheres que foram a óbito, segmentos do movimento social ligados à área de saúde como os Conselhos Populares de Saúde locais, grupos feministas e, de outro lado, a corporação médica (Rodrigues, 2000). Nesse âmbito verifica-se uma marcação nítida dos pontos de vista que colocam, em um pólo, a necessidade de salvaguardar a corporação médica da função fiscalizadora ou de denúncia que o trabalho do Comitê poderia assumir. Argumenta-se que esse caráter poderia trazer mais dificuldade à já difícil coleta dos dados necessários sobre os óbitos ocorridos em instituições de saúde, gerando indisponibilidades na prestação das informações e até mesmo recusas. E como o Comitê depende da boa vontade da autoridade hospitalar, o impasse está anunciado.

No outro pólo, a defesa não só da fiscalização, mas da intervenção e até da punição. Invoca-se, nesse caso, a reivindicação de um status ao trabalho do Comitê que não o circunscreva a um serviço de levantamento dos óbitos, mas que tenha a autoridade institucional de propor medidas onde elas sejam necessárias.

As divergências existentes parecem carecer de um equacionamento que resgate outras dimensões do problema. Uma delas seria uma maior clareza na compreensão dos objetivos, alcances e limites do trabalho específico do Comitê, de sua identidade enquanto instância interinstitucional e, conseqüentemente, com relações peculiares com os setores sociais envolvidos. Isto implica pensar essas questões na perspectiva política, a saber, no campo das interações e do exercício do poder entre esses vários segmentos, colocando a discussão no contexto da relação entre as políticas públicas e as demandas sociais.

Por fim, o reconhecimento da relevância das funções que o situam para além de uma estratégia de vigilância epidemiológica demanda o seu reposicionamento político e institucional que o conduza, mais fortalecido, ao reencontro com o projeto que o deu à luz. O projeto de uma maternidade sem perdas nem danos.

 

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Recebido em 8 de fevereiro de 2001
Versão final reapresentada em 11 de junho de 2002
Aprovado em 31 de julho de 2002

 

 

1 Departamento de Saúde Materno-Infantil, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Av. Dr. Arnaldo 715, São Paulo, SP 01246-904, Brasil

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