ARTIGO
Resiliência e maus-tratos à criança
Resilience and child abuse
Maria de Fátima Pinheiro da Silva Junqueira1; Suely Ferreira Deslandes1
Departamento de Ensino, Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz. Av. Rui Barbosa 716, Rio de Janeiro, RJ 22250-020, Brasil
RESUMO
O artigo propõe discutir o conceito de resiliência a partir de uma revisão crítica. Foram priorizados textos produzidos por órgãos que têm um papel direcionador no campo da saúde da criança e do adolescente (OPAS Organização Pan-Americana da Saúde; ASBRA Associação Brasileira de Adolescência). Discute-se as principais definições de resiliência. São debatidas as contribuições e limitações das leituras vigentes. Debate-se ainda, as possibilidades conceituais e operativas da resiliência frente às situações de maus-tratos contra criança e adolescente, tomando o exemplo do abuso sexual intrafamiliar. Conclui-se que o conceito de resiliência apresenta polarizações em torno de certos eixos: "adaptação/superação", "inato/adquirido", "permanente/circunstancial". Contudo, ele aponta para um ponto comum: a singularidade e a delicadeza das relações microssociais de promoção em saúde.
Palavras-chave: Maus-Tratos Infantis; Maus-Tratos Sexuais Infantis; Saúde Infantil
ABSTRACT
The article discusses the resilience concept from a critical review. It prioritizes texts produced by organizations with leading roles in the field of child and adolescent health (PAHO, Pan-American Health Organization; ASBRA, the Brazilian Association for Adolescence). The main definitions of resilience are discussed, along with a debate on the contributions and limitations of the current literature. Furthermore, the conceptual and operative possibilities of resilience when confronted with child abuse are discussed, specifically using intra-familial sexual abuse as an example. The authors conclude that the concept of resilience presents polarization around certain axes: "adaptation/overcoming process", "innate/acquired", "permanent/circumstantial". However, they all point to a common ground: the singularity and delicacy of micro-social health-promoting relationships.
Key words: Child Abuse; Sexual Child Abuse; Child Health
Introdução
Nos últimos anos, a resiliência tem despontado como conceito operativo no campo da Saúde, especialmente entre a criança e o adolescente. Várias publicações e congressos nacionais e internacionais, têm abordado essa discussão e há uma expectativa em torno das possíveis ações e intervenções orientadas sob essa perspectiva (Estefenon & Souza, 2001).
A resiliência possui várias definições, revelando que o conceito encontra-se em fase de construção e debate. Originariamente, o termo resiliência vem da física e refere-se à "propriedade pela qual a energia armazenada em um corpo deformado é devolvida quando cessa a tensão causadora da deformação elástica" (Ferreira, 1975:1223). A metáfora mais evocada é a de um elástico que, após uma tensão inicial, volta ao mesmo estado. Nesse ponto há uma importante diferença, visto que naquilo que concerne ao humano, a resiliência não significa um retorno a um estado anterior, mas sim a superação (ou adaptação, como querem alguns autores) diante de uma dificuldade considerada como um risco, e a possibilidade de construção de novos caminhos de vida e de um processo de subjetivação a partir do enfrentamento de situações estressantes e/ou traumáticas. Dessa forma, não falamos de resistência, mas de uma capacidade (singular e também socialmente adquirida) de sair-se bem frente a fatores potencialmente estressores (Lindström, 2001; Poilpot, 1999; Vanistendael, 1999).
Desde os fins dos anos 70, através do enfoque da psicopatologia, se discute que algumas crianças, criadas com pais alcoólatras, não apresentavam "carências" biológicas nem psicossociais, mas sim uma "adequada" qualidade de vida. Dos anos 80 em diante, há um interesse crescente por conhecer essa habilidade/capacidade de enfrentar de forma positiva fatores estressores. Nos anos 90, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) publicou dois textos chaves acerca do conceito e propôs formas de promoção da resiliência (Kotliarenco et al., 1997; Munist et al., 1998). Nesses trabalhos há uma preocupação em adequar o conceito de resiliência como um operador para trabalhar "preventivamente sobre os efeitos deterioradores da pobreza" (Kotliarenco et al., 1997:45).
A resiliência pode ser vista como o resultado da interação entre aspectos individuais, contexto social, quantidade e qualidade dos acontecimentos no decorrer da vida e os chamados fatores de proteção encontrados na família e no meio social (Lindström, 2001). Kotliarenco et al. (1997) sintetizam a resiliência como a interação entre atributos pessoais, os apoios do sistema familiar e aqueles provenientes da comunidade.
Esse conceito tem sido invocado como inovador na área da violência contra crianças e adolescentes (Cicchetti et al., 1993; Herrenkohl et al., 1994), trazendo contribuições relevantes particularmente no que se refere ao abuso sexual (Bouvier, 1999; Vanistendael, 1999). Sabemos o quão devastador pode ser um abuso para o desenvolvimento físico, social e psíquico de uma criança (Azevedo et al., 1993). Dentre as conseqüências orgânicas, temos lesões físicas, doenças sexualmente transmissíveis, disfunções sexuais etc. E ainda distúrbios de sono e alimentação, dificuldades de aprendizagem, fugas do lar, uso de álcool e drogas (Azevedo & Guerra, 1988). Para o exercício da sexualidade adulta, Morgado (2001) elenca a desconfiança no sexo oposto, o desconforto e a falta de prazer na relação sexual com parceiros. As conseqüências psicológicas são subdivididas em dificuldades de adaptação afetiva, interpessoal, sexual (Azevedo, 1989).
Entretanto, as clínicas psicológica e psicanalítica há muito constatam que algumas crianças que sofreram maus-tratos passam por esse evento com sofrimento, mas sem apresentar o quadro de conseqüências apontado pela literatura especializada, lhes sendo possível encontrar caminhos de (re)construção de suas próprias vidas. Cabe notar que embora o conceito de resiliência seja uma novidade para a Saúde Pública, o campo psi se debruça exatamente sobre esses aspectos, buscando a elaboração simbólica diante do sofrimento humano, utilizando outros conceitos e definições terminológicas. Por outro lado, o debate que se trava em torno da resiliência, a capacidade de desenvolvê-la, suas potenciais contribuições para as vítimas de maus-tratos e a complexidade que o conceito vem agregando, liga-se a uma discussão sobre tema central na saúde coletiva: a conexão entre o individual, o singular e o coletivo.
O presente artigo busca, portanto, discutir o conceito de resiliência a partir de uma visada crítica, enfocando as contradições, avanços, limitações e eventuais falácias embutidas. Pretendemos refletir as possíveis contribuições desse conceito para os estudos e intervenções no campo dos maus-tratos (especialmente diante do abuso sexual) contra crianças e adolescentes.
Metodologia
Nosso artigo se caracteriza como um estudo de revisão crítica sobre o tema da resiliência, abarcando literatura nacional e internacional. Tomamos como inspiração metodológica as premissas da teoria crítica acerca do caráter ideológico do conhecimento (Cohn, 1986). Para os autores dessa escola sociológica, interesses, conflitos e contradições sociais se expressam na construção do pensamento, sendo produzidos e reproduzidos num sistema de dominação. Numa perspectiva crítica, um determinado discurso (inclusive o científico) pode ser mistificador, apresentando os dados da experiência social como imediatos, desvinculados do processo que os produziu. A análise dessa produção pode contribuir para se construir novas bases de consciência social e de ação (Held, 1988).
Nosso principal critério de seleção da bibliografia, foi o de priorizar os textos produzidos por órgãos que tenham um papel direcionador no campo da saúde da criança e do adolescente. Assim, incluímos as publicações da OPAS e da Associação Brasileira de Adolescência (ASBRA). Contudo, uma vez que a questão da resiliência ainda se configura como uma reflexão recente e em construção, achamos prudente também incluir outros textos, buscando representar as tradições acadêmicas norte-americanas e européias, especialmente as francesas, por se destacarem nesse debate. As definições e os sentidos atribuídos ao conceito/noção de resiliência foram nosso enfoque de trabalho. A análise crítica dessa argumentação conceitual buscou enfocar os antagonismos, ambigüidades e descensos no interior desse debate.
Resultados e discussão
Algumas definições do conceito de resiliência
Como podemos verificar na Tabela 1, a maioria das publicações sobre resiliência é do final dos anos 90. Suas definições nem sempre obedecem a uma descrição conceitual mais detalhada, e certos autores optam por defini-la em termos mais operacionais, embora também não haja um consenso em relação a este fato.
Há as definições que enfocam o sentido adaptativo do indivíduo frente aos traumas e adversidades (Blum, 1997; Herrenkohl et al., 1994; Rutter, 1987; Steinhauer, 2001). Essa capacidade seria adquirida nas relações que restabelecem vínculos afetivos e de confiança, como também seria proveniente das características pessoais dos indivíduos que lidam melhor com as adversidades e extraem algum "aprendizado" diante do problema, conseguindo desenvolver comportamentos "adaptados" ao que é esperado pela sociedade. Outras definições enfocam mais o caráter de "superação" do trauma vivido. Essa experiência não seria "apagada", ao contrário, ela poderia ser "elaborada simbolicamente", fazendo parte da biografia do indivíduo ou grupo e compondo um estoque de vivências que poderiam dar subsídios para seu fortalecimento diante de novas situações (Bouvier, 1999; Cyrulnik, 1999; Guedeney, 1999; Haynal, 1999; Lindström, 2001; Manciaux, 1999; Poilpot, 1999; Silber & Maddaleno, 2001; Vanistendael, 1999).
Diante da polaridade presumível entre os viéses de adaptação e superação, os dois discursos precisam ser relativizados e desmistificados. A resiliência funciona como fator protetivo sem ser, necessariamente, uma experiência agradável. Uma situação de sofrimento ou conflito pode fortalecer o jovem diante de outras situações semelhantes, gerando-lhe um menor nível de estresse (Rutter, 1985, apud Kotliarenco, 1997). Entretanto, desenvolver a resiliência não indica que a pessoa "superou" todos as vivências traumáticas, isto é, não se é resiliente para toda e qualquer situação nem a todo o momento (Cyrulnik, 1999). Entendemos que a resiliência não é um processo estanque nem linear, visto que um indivíduo pode se apresentar como resiliente diante de determinada situação mas, posteriormente, não o ser frente a outra. Nesse sentido, não podemos falar de indivíduos resilientes, mas de uma capacidade do sujeito de, em determinados momentos e de acordo com as circunstâncias, lidar com a adversidade, não sucumbindo a ela. Assim, o aspecto de "superação" de eventos potencialmente estressores, apontado em algumas definições de resiliência, deve também ser relativizado em função do indivíduo e do contexto.
Kotliarenco et al. (1997) definem a resiliência apoiando-se na dualidade entre vulnerabilidade-proteção. Para eles a vulnerabilidade pode ser entendida como uma dimensão contínua do comportamento, que se move a partir de uma adaptação que tem mais ou menos êxito diante do estresse. A proteção seria o conjunto de influências que modificam e melhoram a resposta de uma pessoa a algum perigo que predispõe a um resultado não adaptativo. Slap (2001), nos lembra, entretanto, que a resiliência não é o oposto a risco e não pode ser vista como um fator de proteção específico, pois tal visão a encaixaria num modelo médico de patologia. Munist et al. (1998) ressaltam que, embora o enfoque de risco e a resiliência sejam diferentes, são aspectos complementares. Percebê-los como um conjunto possibilita um enfoque global, permitindo maior flexibilidade e fortalecimento na aplicação dos conceitos na promoção da saúde.
Slap (2001) define a resiliência a partir da interação de quatro elementos (fatores individuais, contexto ambiental, acontecimentos ao longo da vida e fatores de proteção), que comporiam um "banco de recursos" para proteger o adolescente de danos e lhe possibilitar bem-estar. O desafio à pesquisa e às ações de promoção é, portanto, entender como se compõe cada elemento desse "banco" e qual interação entre eles levaria à resiliência em cada situação particular. Entretanto, esse é um ponto não consensual entre os autores: trata-se de uma conjunção absolutamente singular de fatores que produzem a resiliência e que podem não estar presentes em certas situações? Apesar de não ser aleatória, a resiliência seria apenas circunstancial? Ou, trata-se de uma "habilidade" desenvolvida que comporá uma "reserva" de proteção para o indivíduo?
Reflexões críticas sobre o conceito de resiliência
Uma leitura crítica do conceito de resiliência também deve desnudar seus possíveis aspectos ideológicos ou contraditórios. O conceito de resiliência, uma vez lido como a capacidade de "superar fatores de risco e desenvolver comportamentos adaptativos e adequados" (Garcia, 2001:128), pode se transformar num terreno de múltiplas e movediças interpretações. A leitura "adaptativa" pode significar duas coisas: (a) conformidade diante da violência; (b) perspectiva individualista de lidar com o problema.
A capacidade de "adaptação" do indivíduo ao meio social, na visão funcionalista, indica sua adesão e um certo grau de conformidade às regras estabelecidas. Já a "acomodação" é um processo que pode se dar por coerção, compromisso, arbitragem, tolerância ou conciliação visando diminuir uma situação de conflito entre indivíduos ou grupos. Funciona como uma espécie de ajuste a um modus vivendi, garantindo a convivência e a ordem social estabelecidas (Lakatos, 1990). O que pode implicar definir a resiliência como uma forma de se "adaptar" ao trauma da violência? Qual nível de "adaptação" e "acomodação" diante da violência estaremos sugerindo ao valorizar vítimas resilientes? Há ainda que se ponderar, como diz Lindström (2001), que a resiliência não produz adolescentes melhores, somente mais capazes de lidar com condições de vida difíceis, já que o adolescente resiliente não tem, "necessariamente, nenhum interesse em conceitos como humanidade, empatia ou solidariedade" (Lindström, 2001:137).
Em que medida não será fragilizado o foco que privilegia um trabalho árduo e lento visando modificar a cultura familiar, a visão social da infância e o reconhecimento de seus direitos? Por outro lado, ao se enfocar as características pessoais, descontextualizando esse aspecto do jogo necessário das interações de cuidado e proteção à criança e ao adolescente (que é também de responsabilidade da sociedade, de suas instituições e agentes), pode-se reforçar uma leitura de foco individualista (o desenvolvimento da capacidade de cada um superar traumas).
Outro aspecto que merece uma reflexão crítica é tomar a resiliência como um operador de prevenção aos efeitos deletérios da pobreza. Segundo a revisão realizada por Kotliarenco et al. (1997), para a OPAS, as crianças pobres estão submetidas a um duplo risco. Além de estarem expostas com maior freqüência às situações de enfermidade, estresse familiar, apoio social insuficiente e depressão parental, essas crianças e adolescentes estariam também em desvantagem social e econômica, podendo apresentar mais problemas de conduta. A nosso ver, e ao que parece esta também é a visão da OPAS, o conceito de resiliência pode contribuir para transformar concepções ideológicas arraigadas de que os muitos déficits sociais e sanitários seriam determinantes para condenar populações inteiras a uma posição de subalternidade irrevogável.
Contudo, uma incorporação descuidada desse tipo de proposta pode levar a uma leitura ideológica, associando pobreza e violência pelo viés do distúrbio de conduta, além de permitir um discurso de "adaptação" mais feliz à pobreza, ainda que buscando "prevenir seus efeitos". Sem negar que a pobreza gera situações de vulnerabilidade física e emocional, a idéia de romper com as leituras do "determinismo da pobreza" é louvável. Todavia, afirmar a idéia de "superação individual" dos efeitos destruidores pode reforçar uma leitura laica do self-made-man. Promover resiliência não substitui as formas políticas de combate à própria miséria e à desigualdade social.
A resiliência pode ainda ser vista de forma "estigmatizadora", isto é, como uma capacidade desenvolvida somente pelos mais competentes, mais fortes, recaindo sobre os demais o rótulo de "não-resiliente". Concordamos com Morgado (2001:52) que "somos sujeitos com capacidades psíquicas diferenciadas para o enfrentamento das adversidades da vida e também para as violências sofridas". Assim, além de ser diferente o nível de sofrimento individual, esse "grau" dificilmente poderá ser efetivamente mensurado.
Contribuições para a análise dos maus-tratos
As violências e os acidentes constituem, em conjunto, a segunda causa de óbitos no quadro da mortalidade geral brasileira, sendo para a faixa de 5 a 19 anos a primeira causa entre todas as mortes (DATASUS, 2002). Das variadas formas de violência, os maus-tratos constituem uma das principais formas de morbidade entre crianças e adolescentes apontadas pela literatura.
Os maus-tratos contra a criança e o adolescente podem ser praticados pela omissão, supressão e transgressão dos seus direitos, então definidos por convenções legais ou normas culturais (SBP/FIOCRUZ/MJ, 2001). Classicamente os maus-tratos mais conhecidos são: físicos, sexuais, psicológicos e a negligência. Nesse quadro, ponderamos que há, pelo menos, duas contribuições do conceito de resiliência para tal problemática: a possibilidade de re-significação do trauma sofrido e a de fazê-lo em distintas fases da vida (na própria infância, na adolescência e mesmo na idade adulta) (Cyrulnik, 1999; Steinhauer, 2001).
Se a resiliência pode ser desenvolvida através de relações de confiança e de apoio, o foco de atenção na saúde das crianças e adolescentes desloca-se para o cuidar, isto é, para o fato de elas serem cuidadas e acreditadas como sujeitos em desenvolvimento. Assim, esse deslocamento aponta para um poder revitalizador da ação cotidiana. Sugere-se a possibilidade de se estabelecer no dia-a-dia a resiliência a partir da ação de diferentes sujeitos, em seus contextos familiares e culturais, desde que haja fundamentalmente uma relação de confiança, respeito e apoio.
Há um consenso na definição do conceito de resiliência sobre a relevância de se criar espaços de ação protetora no campo das interações, de modo a se promover um suporte na rede de sociabilidade. As ações institucionais só são entendidas como propiciadoras de resiliência desde que efetivadas através de um vínculo com a criança e o adolescente. E este talvez seja um dos grandes ganhos que a resiliência traz para o campo da saúde, ou seja, propõe uma nova praxis pautada em ações personalizadas, nas quais a interação entre sujeitos realmente se estabeleça como vínculo de confiança, como espaço de acolhida e escuta.
O conceito de resiliência reafirma o humano como aquele capaz de superar adversidades e situações potencialmente traumáticas. Vislumbra-se uma transposição de leituras deterministas que ressaltam a existência de um ciclo onde a vítima de maus-tratos tende a ser um agressor, podendo desenvolver seqüelas tais como tentativas de suicídio, abuso de álcool ou drogas, depressão, automutilação e isolamento etc. Embora a literatura ressalte essa questão como uma "probabilidade" (Seabra & Nascimento, 1998), torna-se, no senso comum de muitos profissionais que operam nessa área, um fato inexorável, acarretando possíveis estigmatizações que podem, estas sim, se configurar como situações realmente traumáticas. Em outros termos, a resiliência rompe com uma noção onde o sujeito se vê aprisionado a um ciclo sem saída. Além disso, uma leitura determinista pode levar a um pensamento, segundo o qual, nada adianta ser feito. A possibilidade de resiliência se apresenta como uma esperança e, acima de tudo, reforça uma proposta ética que impulsiona à ação e ao engajamento.
Tomaremos agora a questão do abuso sexual intrafamiliar como exemplo de aplicação do conceito de resiliência à questão dos maus-tratos. Essa violência talvez seja a mais polêmica na aplicação desse conceito, pois se um dos tópicos centrais seria o estabelecimento de uma relação de confiança com um adulto de referência, então como nesses casos a confiança se estabeleceria?
A confiança nos remete ao psicanalista Ferenczi (1992), que aborda o sentimento de culpa experimentado pelo agressor sexual. Nessa circunstância, o adulto que deveria ocupar o lugar de suporte da criança viola um dos tabus mais graves de nossa sociedade. Só que a criança não entende esse sentimento de culpa. Se o adulto está tão culpado é porque algo muito proibido foi realizado. Busca então a compreensão de um outro adulto suporte, de forma a poder elaborar o que se passou. Mas esse outro adulto (ou mesmo o agressor), não admitindo a verdade das palavras da criança, nega, desmentindo-a. Assim sendo, ele não fornece à criança a proteção devida, falhando em seu papel de objeto de confiança. O desmentido incide sobre o desamparo infantil, negando qualquer possibilidade de a criança dar sentido (psíquico) ao que se passou, levando-a a uma cisão onde ela se sente, ao mesmo tempo, inocente e culpada.
A princípio, parece então que nos deparamos com um paradoxo: como uma criança pode desenvolver resiliência se um adulto que deveria ocupar um lugar de referência é aquele que viola a própria "lei" e, acima de tudo, a confiança que lhe foi depositada? O fato de ela ser acreditada e não desmentida é o primeiro grande passo para a elaboração do que se deu, além, é claro, do fator proteção que aí se reflete. O adulto suporte pode ser uma pessoa próxima da criança, mas também um profissional em quem ela possa confiar. Assim, parece-nos possível romper com a idéia de um ciclo sem saída, uma vez que vínculos protetivos podem ser estabelecidos e reforçados, de modo a fornecer o suporte necessário à criança.
Se a resiliência surge como um novo operador para o campo da saúde diante do problema dos maus-tratos, como se relaciona com os modelos de prevenção e promoção, especialmente nos casos de abuso sexual? Em termos de prevenção, Bouvier (1999) acredita que fatores de resiliência podem estar presentes ou ser desenvolvidos antes, durante e após um abuso sexual.
A prevenção primária prioriza programas que buscam aumentar a resistência das crianças em casos de agressão, através de um reforço do conhecimento do problema e da competência das mesmas, visando uma resposta adequada às situações de risco. Nesse sentido, Seabra & Nascimento (1998) e Silva (1996) reafirmam a importância de uma educação que ajude a criança a valorizar seu corpo, a ter a consciência que ele lhe pertence e que ninguém tem o direito de violar seu "território" corporal. Silva (1996) reafirma o lema "meu corpo é meu território", base de muitas campanhas na América Latina. Entretanto, como sinaliza Bouvier (1999), tais programas nem sempre se mostram eficazes visto que não diminuem o risco, centralizam-se em torno da criança (reforçando a idéia de culpabilização da vítima) e podem vir a fomentar um clima social de permanente desconfiança.
Pensamos que a possibilidade de "prevenção primária" pelo viés da resiliência, seria o de trabalhar por um enfoque positivo mais voltado para a lógica da "promoção", ou seja, reforçando o diálogo e a tolerância no seio da família, reafirmando a importância da auto-estima das crianças e adolescentes, da divulgação de seus direitos e do respeito ao seu corpo. Essas são condições que representam o nível de regularidade observado pela literatura como necessárias para o desenvolvimento da resiliência. Contudo, a resposta de cada pessoa seria imprevisível, pois traduz a singularidade de suas características individuais e conexões socioafetivas.
A prevenção secundária tem limitado a gravidade dos abusos e de suas conseqüências, buscando um fim à série de abusos que costumam ocorrer nesses casos, e oferecendo à vítima e à família uma ajuda assim que desvelada e interrompida a violência. A prevenção terciária tem englobado todas as formas de ajuda a uma vítima de violência sexual após o fim da agressão, tais como as diversas modalidades de psicoterapia, de modo a prevenir conseqüências mais desastrosas, auxiliando a criança e sua família a dar sentido e a elaborar o evento. Em ambos os casos a prevenção encontra-se baseada na escuta da criança, onde ouvi-la e acreditar nela fará toda uma diferença no processo de superação do trauma.
Conclusões
Como vimos, o conceito de resiliência não apresenta uma definição consensual. Alguns pólos parecem representar perspectivas que conformam discursos que contêm inegável antagonismo: superação ou adaptação diante de traumas e experiências adversas? Superação como habilidade a ser incorporada de forma "permanente" ou "contextual"?
A neutralidade dos analistas não é possível nem desejada; portanto, tomamos um lugar nesse debate. Defendemos que o conceito de resiliência traduz conceitualmente a possibilidade de superação num sentido dialético, isto é, representando um novo olhar, uma re-significação do problema mas que não o elimina, pois constitui parte da história do sujeito. O caráter contextual e histórico da resiliência se expressa seja do ponto de vista biográfico, seja do conjunto de interações dadas numa cultura determinada.
A abordagem via resiliência, ao enfocar aspectos interacionais de vínculo e de confiança, traz à tona a singularidade e a delicadeza das relações microssociais de promoção em saúde. Claro que isso é fundamental, no entanto não pode ser distorcido para sustentar um discurso de "superação individual" desagregado do suporte social-afetivo e das relações macrossociais.
A promoção da resiliência não substitui a ação do Estado nas questões referentes às situações de risco à saúde e àquelas que interferem negativamente na qualidade de vida, tal como as situações de violência. Promover resiliência não implica abandonar as políticas voltadas para o enfrentamento dessas situações, seja em um sentido preventivo ou na assistência às necessidades e direitos da população. Lançar a responsabilidade sobre o indivíduo seria uma leitura estreita daquilo que os pesquisadores têm refletido acerca do conceito de resiliência.
Logo, a resiliência não pode ser vista como uma nova panacéia para a Saúde, uma saída mágica aplicável inadvertidamente a qualquer situação. A questão que se coloca é uma mudança de olhar em relação às crianças que vivenciam situações adversas. Tal mudança pode significar para o próprio sujeito uma aposta de emancipação diante de um estigma, como o dos maus-tratos.
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Endereço para correspondência
Maria de Fátima Pinheiro da Silva Junqueira
mf.junqueira@terra.com.br
Suely Ferreira Deslandes
desland@iff.fiocruz.br
Recebido em 14 de janeiro de 2002
Versão final reapresentada em 10 de maio de 2002
Aprovado em 19 de agosto de 2002
1 Departamento de Ensino, Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz. Av. Rui Barbosa 716, Rio de Janeiro, RJ 22250-020, Brasil