OPINIÃO OPINION

 

Ensaios clínicos pragmáticos: uma opção na construção de evidências em saúde

 

Pragmatic clinical trials: an option in the construction of health-related evidence

 

 

Evandro da Silva Freire CoutinhoI, II; Gisele HufIII; Katia Vergetti BlochIII

I Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Rua Leopoldo Bulhões 1480, Rio de Janeiro, RJ 21041-210, Brasil. E-mail: evandro@ensp.fiocruz.br
II Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rua São Francisco Xavier 524, Rio de Janeiro, RJ 20550-013, Brasil
III Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Edifício do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, Av. Brigadeiro Armando Trompowsky s/n, Ilha do Fundão, Rio de Janeiro, RJ 21941-590, Brasil

 

 


RESUMO

Os autores apresentam e discutem o potencial dos ensaios clínicos pragmáticos como uma alternativa aos ensaios clínicos explanatórios e aos estudos observacionais (Ex.: coorte, caso-controle) para obtenção de evidências que justifiquem o uso de intervenções terapêuticas. Argumentam que tal estratégia, quando utilizada num contexto adequado, constitui uma poderosa ferramenta para a identificação de medidas não viesadas de efetividade, com logística mais simples e custo inferior ao dos ensaios clínicos hoje utilizados.

Palavras-chave: Ensaios Clínicos; Efetividade; Estudos Epidemiológicos


ABSTRACT

The authors present and discuss the potential of pragmatic clinical trials as an alternative to both explanatory trials and observational studies to support the use of therapeutic interventions with good evidence. They argue that this strategy, when properly applied, can be a powerful tool to obtain unbiased measures of effectiveness, with simpler logistics and lower costs than in current clinical trials.

Key words: Clinical Trials; Effectiveness; Epidemiologic Studies


 

 

Introdução

A cada dia um número maior de intervenções em saúde são propostas, ainda que nem sempre com base em evidências de boa qualidade quanto aos seus benefícios e danos. Fatores como intuição, bom senso, experiência acumulada, embora importantes, devem ser tratados com cautela no que tange às recomendações de intervenções voltadas para a saúde. Num artigo publicado em 1901, no British Medical Journal, um médico inglês afirmava ter sido bem sucedido em todos os casos de enxaqueca em que implantara um dreno sob a pele da parte posterior do pescoço (Whitehead, 1901). Apesar do sofrimento causado pela enxaqueca, é possível que poucos pacientes optassem por este tratamento 100 anos após ter sido proposto. A seu favor, o médico inglês contava com a inexistência de uma metodologia bem desenvolvida para a investigação de práticas terapêuticas, o que não é o caso dos profissionais de saúde de hoje.

Os estudos experimentais, como os ensaios clínicos randomizados, constituem uma ferramenta essencial na construção de evidências científicas para a prática clínica e para a saúde pública. No entanto, sua execução, em geral, é tida como complexa e cara, o que faz com que muitas práticas em saúde sejam baseadas em estudos não experimentais (como de coorte e caso-controle), ou mesmo na observação não controlada de um conjunto de casos. Ao longo do texto não faremos distinção entre ensaios terapêuticos e ensaios profiláticos, isto é, aqueles voltados para intervenções curativas e para intervenções preventivas. Os pontos de vista aqui expostos aplicam-se a ambos os casos.

 

A necessidade de ensaios clínicos randomizados

Nem sempre os resultados de estudos randomizados e não randomizados na saúde pública estão em consonância. Durante as décadas de 70 e 80, uma série de estudos observacionais mostraram uma relação inversa e forte entre o número de consultas pré-natal e o risco de baixo peso e mortalidade perinatal (Quick et al., 1981). Todavia, ensaios clínicos em diversos países não sugerem uma influência do número dessas consultas sobre o risco de baixo peso ao nascer e mortalidade perinatal (Villar & Khan-Neelofur, 2001). Tal conclusão pode ter implicações importantes na organização e nos custos da atenção pré-natal, sobretudo nos países não desenvolvidos. Outro exemplo de achados discrepantes é ainda o da terapia de reposição hormonal. Há cerca de 30 anos esta prática foi recomendada por um best seller (Wilson, 1968), tendo sido apontada como benéfica para reduzir o risco de doença coronariana com base em alguns estudos observacionais. Ao contrário do efeito protetor que estudos observacionais haviam sugerido, um grande ensaio clínico publicado no Journal of the American Medical Association (Writing Group for the Women's Health Initiative Investigators, 2002) encontrou um aumento do risco de câncer de mama, embolia pulmonar, acidente vascular cerebral e da própria doença coronariana. A principal razão para a diferença que geralmente se encontra nas estimativas do efeito dos tratamentos entre estudos observacionais e experimentais deriva do fato de que os primeiros não utilizam a alocação aleatória dos indivíduos. Se a designação do grupo de tratamento não é randomizada, vale dizer, semelhante a um sorteio, os conjuntos de indivíduos que compõem os grupos de tratamento podem não ser comparáveis com relação a características prognósticas, justificando assim, as diferentes estimativas de efeito. Se, por exemplo, pacientes mais graves são predominantes em um grupo, a comparação das intervenções (não) poderá ser feita de uma maneira (não) viesada.

O primeiro ensaio clínico nos moldes que hoje conhecemos foi publicado no final da década de 40 (Medical Research Council, 1948). Frente à reduzida disponibilidade de estreptomicina, assim como pela incerteza quanto à sua utilidade no tratamento da tuberculose pulmonar, o estatístico Sir Austin Bradford Hill convenceu um conjunto de médicos ingleses a alocarem aleatoriamente seus pacientes em dois grupos: os que receberiam e os que não receberiam o medicamento. Essa forma, além de propiciar uma distribuição justa do medicamento disponível, possibilitava uma avaliação não viesada da eficácia do tratamento.

 

A necessidade de grandes ensaios clínicos randomizados

Diferente da magnitude do efeito da estreptomicina sobre a tuberculose pulmonar, a maioria das intervenções atualmente sob investigação apresentam efeitos pequenos ou moderados (Duley & Villar, 2002; MacMahon & Collins, 2001). Assim, é necessário que os estudos sejam grandes o bastante para serem capazes de identificar efeitos que, embora de pequena magnitude, sejam relevantes do ponto de vista clínico e da saúde pública. Uma pequena redução na ocorrência de óbitos numa condição bastante freqüente é de extrema importância. Collins et al. (1996) argumentam que reduzir a mortalidade de pacientes infartados de 10% para 8 ou 9%, mediante uma intervenção barata e de baixa toxicidade como a aspirina, representa um volume imenso de mortes evitadas, dada a elevada incidência do problema.

Mas existe ainda outro aspecto, além daquele relacionado à magnitude dos efeitos, que aumenta a necessidade de grandes ensaios randomizados. É possível que os benefícios de muitos tratamentos estejam confinados a categorias muito particulares de pacientes. A inclusão ou exclusão seletiva destes pacientes pode levar a resultados distintos num ensaio clínico de pequeno tamanho. Portanto, a investigação de intervenções em saúde exige cada vez mais a realização de ensaios terapêuticos com amostras maiores do que aquelas usadas inicialmente.

No final da década de 90, alguns artigos resgataram uma abordagem de ensaios clínicos proposta há 35 anos, cujas características parecem oferecer algumas soluções para essas limitações. Esta abordagem, denominada de ensaios pragmáticos, ficou praticamente esquecida, ou subtilizada, por quase 25 anos.

 

Ensaios clínicos explanatórios e ensaios clínicos pragmáticos

A distinção entre ensaios clínicos explanatórios e pragmáticos parece ter sido feita pela primeira vez por Schwartz & Lellouch (1967) para diferenciar dois propósitos. Ensaios explanatórios teriam como objetivo entender precisamente os efeitos de dois tratamentos alternativos, quando administrados sob condições ideais ­ uma intenção de estabelecer uma base científica rigorosa para cada intervenção terapêutica. Ensaios pragmáticos seriam conduzidos em condições menos rígidas, mais próximas àquelas encontradas na prática, com o objetivo de estabelecer uma base científica adequada para tomada de decisão.

No entanto, parece que só na década de 90 autores começaram a discutir as vantagens da abordagem pragmática. Livros clássicos sobre desenho e análise de ensaios clínicos escritos na década de 80 não tratam desta questão. Meinert (1986) não faz qualquer menção a esta tipologia, enquanto Pocock (1983) a restringe à forma de analisar os pacientes que não aderiram ao protocolo do estudo, num alcance que nos parece muito aquém do proposto originalmente por Schwartz & Lellouch (1967).

Os termos eficácia e efetividade são geralmente usados para caraterizar os objetivos desses dois tipos de abordagem (Armitage, 1998; Roland & Torgerson, 1998). Ensaios explanatórios avaliam a eficácia da intervenção, quando a pergunta do ensaio é "se" e "como" ela funciona naqueles que a recebem. Já os ensaios pragmáticos procuram descrever a efetividade da intervenção, ou seja, seu resultado em condições que mimetizam a prática clínica. Ou ainda, os ensaios explanatórios estão voltados para a questão do conhecimento dos mecanismos de ação, já os ensaios pragmáticos estão preocupados com problemas de decisão.

Esta distinção nos objetivos do estudo tem implicações em vários aspectos do desenho e da análise dos ensaios clínicos. Nos ensaios explanatórios, os participantes tendem a formar um grupo mais homogêneo de indivíduos, seguindo esquemas terapêuticos rígidos. Já os ensaios pragmáticos incorporam uma população mais heterogênea de pacientes, os regimes de tratamento tendem a ser mais flexíveis, acomodando assim as necessidades individuais dos pacientes. Procura-se, desse modo, uma representação mais próxima das características dos pacientes e do modo como a intervenção se dará na prática. Quanto aos desfechos, a abordagem explanatória enfatiza medidas de significado mais biológico, como redução do tamanho tumoral ou alterações bioquímicas, enquanto a abordagem pragmática enfatiza medidas práticas como capacidade funcional, redução de sintomas, tempo de sobrevida (Armitage, 1998). Para Jadad (1998) essas duas abordagens correspondem a dois extremos de um espectro de possibilidades passíveis de coexistência em qualquer ensaio.

Para conceder registro a um novo medicamento, as principais agências regulamentadoras (Food and Drug Administration ­ FDA ­, nos Estados Unidos e The European Agency for the Evaluation of Medical Prodructs ­ EMEA ­ na Comunidade Européia) exigem dos laboratórios fabricantes a prova de sua eficácia em apenas dois ensaios clínicos de modelo explanatório. Uma vez que esses estudos utilizam critérios de inclusão geralmente restritivos, intervenções altamente padronizadas e procedimentos complexos para medir o desfecho, a conseqüência é a realização de estudos caros e com número de participantes freqüentemente inferior às necessidades. Em algumas áreas da prática médica, isso é tudo do que se dispõe para a avaliação das intervenções. Um exemplo de situação em que a qualidade dos estudos existentes desafia os limites toleráveis se refere ao manejo da esquizofrenia. Adams (1998) investigou 2 mil ensaios clínicos em esquizofrenia, sendo a maioria publicada em revistas psiquiátricas. O tamanho amostral médio foi de 65 participantes e, ainda que a esquizofrenia costume ser uma doença de longa duração, mais da metade desses estudos acompanhou os pacientes por menos de seis semanas. Setenta e cinco por cento dos ensaios em esquizofrenia usaram um total de 640 escalas diferentes para avaliar o desfecho, das quais 369 foram usadas somente uma vez.

A grande vantagem dos ensaios pragmáticos, como o MAGPIE (The Magpie Trial Collaboration Group, 2002), CRASH (Crash Trial Management Group, 2001) e TREC (TREC Collaborative Group, in press) é sua grande generalização: os investigadores podem basear suas análises em amostras mais representativas dos pacientes encontrados na rotina de atendimentos. A pouca modificação das condições de atendimento, buscando reproduzir ao máximo aquelas encontradas na rotina, favorecem uma avaliação da eficácia da intervenção em seu "habitat natural", isto é, a sua efetividade. Além disso, os procedimentos simplificados, porém frutos de elaboração complexa, resultam em pouca ou nenhuma alteração das rotinas de trabalho, permitem a colaboração dos profissionais e diminuem o custo dos estudos.

 

Conclusão

É possível que um dos motivos para a não-realização de ensaios clínicos randomizados de tamanho adequado para avaliar práticas terapêuticas ou preventivas seja a identificação de inúmeras dificuldades operacionais e o custo desses estudos. Entretanto, os ensaios pragmáticos oferecem um boa alternativa para profissionais que questionam suas práticas e desejam avaliá-las, na ausência de evidências sólidas.

Obviamente seria ingênuo acreditar que os ensaios clínicos são sempre os mais úteis para qualquer avaliação. Estudos observacionais são fundamentais para identificar efeitos adversos de magnitude elevada, mas pouco freqüentes (MacMahon & Collins, 2001). Contudo, é difícil imaginar, no momento, um método superior na busca de evidências sobre benefícios de intervenções terapêuticas/profiláticas.

As abordagens explanatória e pragmática não devem ser consideradas antagônicas, mas sim complementares na produção de evidências sobre intervenções em saúde. No entanto, pelo seu caráter mais simples e por permitir que se avaliem os benefícios das intervenções quando aplicadas no mundo real, o desenho pragmático tem sua maior utilidade no campo da saúde pública e da clínica, para basear em evidências científicas a tomada de decisão.

 

Referências

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Recebido em 25 de outubro de 2002
Versão final reapresentada em 3 de abril de 2003
Aprovado em 25 de abril de 2003

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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