DEBATE DEBATE
Debate sobre o artigo de Maria Andréa Loyola
Debate on the paper by Maria Andréa Loyola
Sérgio Carrara
Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: scarrara@uerj.br
A "realidade" e o "sexo"
Como todo trabalho que busca apontar novas perspectivas para os grandes temas das ciências sociais e da saúde, o artigo de Maria Andréa Loyola é bastante oportuno e bem-vindo. Embora alguns pesquisadores questionem ao comparar diferentes sociedades humanas, o caráter de absoluta novidade de que se revestem certos processos contemporâneos relativos à sexualidade e à reprodução "barriga de aluguel", casamento entre pessoas de mesmo sexo, etc. (Heritier, 2000) é inegável que, do ponto de vista de nossas próprias sociedades, vivemos ao longo do século XX, notáveis transformações nessa área. A autora vê uma verdadeira "revolução" Entre as transformações analisadas por Loyola, parecem-me centrais: (a) a crescente autonomização das dimensões não-procriativa e procriativa do sexo, ou seja, a crescente separação entre sexo/prazer e sexo/reprodução; (b) a mais recente e radical separação entre sexo e reprodução com base no desenvolvimento de novas tecnologias reprodutivas e (c) a medicalização crescente do prazer sexual. A autora critica ainda a tendência dos estudos contemporâneos sobre o tema, que abordam a sexualidade a partir de uma "inspiração epidemiológica", reduzindo-a, segundo afirma, à sua dimensão puramente comportamental. Em contraposição a isso, procura analisar os "determinantes sociais" da sexualidade, aspecto que a seus olhos tem permanecido "esquecido" por tais estudos. A discussão que gostaria de levantar a partir da leitura do texto diz respeito ao modo como a autora tematiza a relação entre a autonomização do sexo/prazer, de um lado, e o seu controle cada vez maior e mais invasivo da medicina (representada aqui pelos sexólogos), de outro. Além disso, levanto algumas questões relativas ao impacto das novas tecnologias reprodutivas nesse processo de medicalização do prazer.
Apoiando-se amplamente em trabalho de Tabet, a autora afirma que, principalmente devido ao seu aspecto reprodutivo, durante séculos nossas sociedades regularam a sexualidade, particularmente a sexualidade feminina, por intermédio de todo um aparato institucional e ideológico centrado no casamento, cuja função primordial seria a produção de filhos legítimos. Laço indissolúvel entre papéis sociais complementares e hierarquicamente ordenados, o casamento tinha sua estabilidade garantida por uma ordem social totalizante ou holista, de caráter sagrado, que seria rompida a partir de finais do século XVIII. As transformações estruturais e institucionais particulares à emergência da sociedade capitalista (principalmente as relativas à liberação da mulher enquanto força de trabalho e a conseqüente mudança na divisão sexual do trabalho) e a simultânea difusão do individualismo moderno, racionalista e igualitário, transformariam drasticamente as antigas relações entre os sexos. Entre tais transformações, vemos que, mesmo a reprodução permanecendo função primordial do casamento, o que passa a idealmente fundamentar o estabelecimento e a permanência dos laços conjugais é a existência entre os cônjuges do amor-paixão e do prazer sexual, seu símbolo quase "natural". Ao que parece, teríamos aí (isso não se explicita claramente no texto) uma das mais importantes bases sociológicas para a autonomização do prazer em relação à reprodução.
Olhando o processo como um todo, parece pertinente afirmar que, do ponto de vista da medicina, o prazer sexual crescentemente autonomizado foi ganhando certa importância enquanto fenômeno puramente fisiológico ou orgânico. Nesse sentido, muitos médicos ao longo do século XIX e, sobretudo, no século XX, passaram a defender a idéia de que, mesmo estéril do ponto de vista reprodutivo, o prazer sexual (quando em doses moderadas, é claro) tinha importantes e benéficos efeitos para o organismo como um todo, dada a "descarga" do excesso de energia nervosa que implicava (Bullough, 1994; Carrara, 1996), inclusive no caso das mulheres (Rohden, 2001). Essa idéia, porém, nunca foi consensual entre os médicos e a valorização do prazer sexual desvinculado da reprodução deu-se em grande medida ao largo da medicina, mesmo permanecendo no campo da saúde. Como aponta a autora, a sexologia estrutura sua base epistemológica com base nessa relativa autonomização e da correlata constituição da idéia de "saúde sexual". Porém, gostaria de destacar que essa disciplina sempre apresentou fronteiras extremamente porosas, mantendo relação muito complicada com a medicina. Os sexólogos brasileiros e estrangeiros nunca foram bem vistos pela elite médica e, embora muitos deles procurassem fundamentar suas idéias na biologia, é importante lembrar que a emergência da sexologia ocorre em um contexto de notável desbiologização da sexualidade e não o contrário. Não é à toa que profissionais não-médicos de diferentes feitios (principalmente os psicólogos e psicanalistas) entraram logo em cena e continuam constituindo no Brasil parcela significativa (se não majoritária) dos que se auto-intitulam sexólogos. Mesmo os primeiros médicos que se disseram sexólogos, como Havelock Ellis e Magnus Hirchfeld, na Europa, ou José de Albuquerque e Ernani de Irajá, no Brasil, podem muito bem ser considerados trânsfugas da medicina, dada a heterogeneidade dos "materiais" com os quais trabalhavam e o tipo de atividade que exerciam (Carrara & Russo, 2002). Tão cruciais para a autonomização do prazer sexual em relação à reprodução, esses discursos múltiplos sobre a sexualidade que se colocam além da estrita esfera da medicina se multiplicariam e se difundiriam no âmbito dos movimentos contraculturais dos anos 60. Independentemente de considerações sobre sua função fisiológica, o prazer sexual passa a ser então valorizado como parte de um estilo de vida hedonista e de um ideário libertário, que voltaria sua crítica também à instituição médica. A medicina exercia seu domínio sobre a sexualidade (como continua a fazê-lo), sobretudo, pelo aspecto reprodutivo da atividade sexual e, se é verdade que o recente aparecimento de remédios como o Viagra marca um novo interesse da indústria farmacêutica pelo prazer e sua potencialização (e é urgente que a atenção dos pesquisadores se volte par esse fenômeno), isso tem causado profundo desconforto entre muitos sexólogos de orientação "psi". A produção desses "milagrosos" "afrodisíacos" pela indústria farmacêutica moderna revela sem dúvida uma crescente valorização do prazer sexual, tratado agora como algo sério por agências que anteriormente o encaravam com suspeita. Enfim, o estatuto do processo atual de medicalização do prazer merece, portanto, uma reflexão mais abrangente, evitando-se tomar a sexologia como porta-voz da medicina ou como veículo imediato de medicalização. Poderíamos, por exemplo, pensar a atual medicalização do prazer não apenas como uma intensificação de um processo presente desde o século XIX, mas como parte de uma inflexão mais ampla a que assistimos no campo da saúde como um todo e que tem implicado, como no caso das "doenças mentais", uma biologização mais completa do humano, com o conseqüente deslocamento de outros atores até hoje cruciais nessa área, como os psicólogos e psicanalistas (Russo & Henning, 1999). Tal processo não possuiria uma forte conexão simbólica com a valorização da juventude e com as promessas de superação dos limites biológicos do corpo que vemos emergir um pouco por toda parte?
Além disso, creio que se poderia problematizar a relação entre um crescente controle médico do prazer sexual e as novas tecnologias reprodutivas. Hoje, como ressalta Loyola, estamos assistindo à desvinculação espetacular (como já disse, para alguns autores trata-se mesmo de espetáculo, uma vez que esse tipo de desvinculação sempre esteve presente nas sociedades humanas) do sexo e da reprodução. A reprodução pode se realizar sem qualquer prazer, até mesmo sem qualquer ato sexual. Nesse processo, a ruptura entre o prazer e a reprodução se acentuaria, pois se ao longo do século XX assistimos a um complicado processo de justificação do sexo não-procriativo, agora se busca justificar, com todos os dilemas éticos envolvidos, a procriação não-sexual. Literalmente, a reprodução não teria mais nada a ver com o sexo e com o prazer. Mas porque o prazer sexual, assim radicalmente autonomizado, deveria necessariamente cair sob o controle médico?
Para finalizar, parece-me muito pertinente a posição assumida por Loyola de que se não tivesse havido essa autonomização do prazer sexual os sexólogos não teriam uma base epistemológica a partir da qual pudessem falar. Se é possível quantificar e classificar atos sexuais é porque existe algo a que chamamos de sexo ou sexualidade. É verdade também que, sem a construção desse objeto, os sociólogos, antropólogos, psicólogos também não poderiam falar dele. A questão é que enquanto alguns falam do sexo como entidade natural, outros falam dele sem nunca esquecer de que falam de um certo lugar e que tal lugar e tal discurso só se tornaram possíveis por meio dos complexos processos históricos, sociais e culturais que ofereceram o sexo uma "realidade" para a nossa reflexão.
BULLOUGH, V. L., 1994. Science in the Bedroom: A History of Sex Research. Nova York: Basic Books.
CARRARA, S., 1996. Tributo a Vênus: A Luta Contra a Sífilis no Brasil da Passagem do Século aos Anos 40. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.
CARRARA, S. & RUSSO, J., 2002. A psicanálise e a sexologia no Rio de Janeiro de entre-guerras: Entre a ciência e a auto-ajuda. História, Ciências, Saúde Manguinhos, 9:273-290.
HERITIER, F., 2000. A coxa de Júpiter: Reflexões sobre os novos modelos de procriação. Estudos Feministas, 8:98-114.
ROHDEN, F., 2001. Um Ciência da Diferença: Sexo e Gênero na Medicina da Mulher. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.
RUSSO, J. & HENNING, M. F., 1999. O sujeito da "psiquiatria biológica" e a concepção moderna de pessoa. Antropolítica Revista Contemporânea de Antropologia e Política, 6:39-54.