DEBATE DEBATE

 

Debate sobre o artigo de Maria Andréa Loyola

 

Debate on the paper by Maria Andréa Loyola

 

 

Elisabeth Meloni Vieira

Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, Brasil. E-mail: bmeloni@fmrp-usp.br

 

 

Sobre a revolução do século XX

O artigo de Loyola traz importante contribuição ao tema da medicalização ao explorar a questão da construção da sexualidade em sua articulação com a Medicina. Para a autora a ruptura radical entre o sexo e a reprodução, verificada no século XX, trouxe condições para novas formas de relacionamentos entre os sexos no contexto de uma sexualidade horizontalizada, que veio substituir a sexualidade hierárquica entre os sexos. Será esta nova sexualidade, que floresce no contexto da alta tecnologia médica, que permitirá as novas relações no âmbito da reprodução, inclusive aquelas de caráter mercantil, transformando o seu significado. Neste aspecto o artigo aborda a importante questão da naturalização da sexualidade, que se apóia tanto na construção que a sexologia faz da sexualidade, quanto realça a contribuição da epidemiologia nos estudos recentes de sexualidade, em particular, após o advento da AIDS.

Gostaria aqui de enfatizar algumas dessas questões brilhantemente discutidas pela autora.

A mudança que ocorre em relação à sexualidade entre os gêneros, no contexto de uma sexualidade hierárquica, transformou a idéia da medicina do século XIX, de que o orgasmo feminino seria indispensável à reprodução ­ provavelmente na analogia do modelo animal do estrus (cio) ­ em um outro entendimento, no qual o corpo feminino é concebido como oposto/contrário ao masculino sendo, portanto, o feminino a imagem espelhar negativa do homem. Nesse sentido à sexualidade feminina restou o espaço "da sexualidade sem paixão". Esta concepção pode, junto com muitas outras, ainda estar presente no imaginário social, é comum pensar que o homossexual masculino "nasceu com alma de mulher". Obedecendo a seguinte lógica, se não tem comportamento de homem só lhe resta ser mulher, se não é mulher no corpo, só lhe resta ser na alma. Para a autora, este modelo de dois sexos não hierarquizados permitirá a construção de uma sexualidade horizontalizada, a democracia sexual, a idéia de prazer único, se não igual, equivalentes, para homens e mulheres, advogado pelos sexólogos.

Para Giddens (1992), a "democracia sexual" seria o que o autor chama de sexualidade plástica: desvinculada da reprodução e da morte, mas que trouxe mudanças profundas e irreversíveis, tanto que permitiu a autonomia sexual feminina, quanto o florescimento de outros estilos de vida sexual, particularmente, da homossexualidade tanto masculina como feminina.

A construção dessa nova sexualidade feminina, que pode desvincular-se da reprodução e ultrapassar a idéia (e o fato), parafraseando Hawkes (1996), do "sexo como um perigo" para "o sexo como prazer", se deu às custas da incorporação da contracepção como objeto médico, de um lado, e do desenvolvimento das novas tecnologias de reprodução, por outro. Para medicalizar é necessário naturalizar o objeto, pois este é o caráter da medicina. Esta se apóia no conhecimento da biologia e disciplinas correlatas, que tomam o corpo isolado do contexto social e seus significados para poder compreendê-lo isolado, enquanto objeto somático, e lhe dar novo sentido para o estabelecimento da intervenção.

Interessante destacar que a autora ressalva, referindo-se às novas formas de reprodução, que prescindem das relações institucionais tradicionais como o casamento, que talvez seja cedo para compreender o sentido e o alcance real destas mudanças, pois mesmo transformadas as relações de reprodução não transformaram as relações entre homens e mulheres. De fato, Hawkes (1996:128) chama a atenção para isto quando reporta-se às mudanças ocorridas na década da liberação sexual: "vivendo e experimentando uma 'eqüidade' sexual, as mulheres estavam simultaneamente experienciando as tensões que derivavam de uma condicional liberdade no contexto ainda intacto de dominação de gênero".

Não menos importante, destaca-se no texto a contribuição da epidemiologia para a medicalização. Baseados em uma sociologia que adota o modelo naturalista, os estudos quantitativos nesta área ainda parecem deixar intocada a complexidade das idéias e práticas envolvidas na questão da sexualidade, e como observa a autora tendendo "a isolar cada vez mais a sexualidade de suas outras dimensões".

O texto induz a pensar sobre os efeitos reflexivos dessa medicalização, que entre outras coisas, pretende e valoriza o papel maternal da mulher em sua forma mais tradicional, criando uma demanda cada vez maior por tecnologias novas e caras. Também nos leva à reflexão sobre qual espaço restará para a questão política da diversidade sexual. O que é sempre bom nessas horas é lembrar que a medicina nem sempre cumpre o que promete. A medicalização em seu projeto de expansão, por meio da produção de idéias e criação de práticas, precisa trazer para si cada vez mais a discussão da ética, e esta seria precisamente a grande contribuição das ciências humanas para enfrentar o desafio do século XXI.

 

GIDDENS, A. A., 1992. Transformação da Intimidade: Sexualidade, Amor e Erotismo nas Sociedades Modernas. 2a Ed. São Paulo: Editora UNESP.

HAWKES, G. A., 1996. Sociology of Sex and Sexuality. Buckingham: Open University Press.

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