Debate sobre o artigo de Maria Andréa Loyola
Debate on the paper by Maria Andréa Loyola
Helena Altmann
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: helenaalt@uol.com.br
Sexualidade e reprodução: novas configurações biopolíticas
No artigo Sexualidade e Medicina: A Revolução do Século XX, Maria Andréa Loyola mostra como a sexualidade no século XX sofreu uma interferência crescente da medicina. Aliada a outros campos, como a sexologia e a epidemiologia, a medicina afetou as formas de relacionamento, os sistemas de reprodução, nosso modo de conceber o corpo, entre outros, configurando um intenso processo de medicalização do social.
Ao analisar as relações entre sexualidade e reprodução, a autora chama a atenção para seus determinantes sociais contrapondo-se assim a uma perspectiva de análise comportamental da sexualidade, a qual teria se multiplicado com o advento da AIDS e cujos efeitos precisam ser analisados. Seu artigo nos mostra que as normas que comandam as relações entre sexualidade e reprodução estão relacionadas com as formas de organização social, de divisão sexual do trabalho, com os sistemas de representação e, em particular, com as relações entre os sexos. Em outras palavras, poderia dizer que ela nos mostra mecanismos sociais que penetraram nos corpos, nos comportamentos, nas relações sexuais e reprodutivas ao longo do século XX.
Dialogando com a antropologia, oferece ao leitor diversos exemplos que mostram transformações, mas também permanências, nas relações conjugais e nos sistemas de reprodução. Desse modo, suas análises trabalham sempre na tensão entre a ruptura e a continuidade, mostrando que as transformações graduais ocorridas nas relações conjugais e de reprodução no século XX não foram simultâneas, correlatas, nem uniformes.
O processo de medicalização do social, do qual nos fala a autora, está diretamente relacionado ao surgimento da medicina moderna. Ao analisar o nascimento da medicina social, Michel Foucault (1979) afirma que com o capitalismo não se deu uma passagem de uma medicina coletiva para uma medicina privada, mas justamente o contrário. Para ele, a medicina moderna é uma medicina social, fundamentada em uma certa tecnologia do corpo social. O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo. O corpo é uma realidade biopolítica e a medicina é uma estratégia biopolítica. Curioso notar que esse termo foi utilizado pela primeira vez por Foucault justamente nesta conferência, proferida no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro em 1974 (Michaud, 2000).
Como fala Loyola, o modelo de controle social consolidado durante o século XX é denominado por Foucault de biopoder, o qual é marcado por um forte investimento político na vida, para o qual o controle da sexualidade é fundamental. Utilizando o mesmo autor como referência, pode-se acrescentar que a importância do sexo como foco de disputa política deve-se ao fato de ele se encontrar na articulação entre os dois eixos ao longo dos quais se desenvolveu toda a tecnologia da vida política: o sexo faz parte das disciplinas do corpo permitindo o exercício de micropoderes e pertence à regulação das populações. Assim, a sexualidade foi investida e tornou-se chave da individualidade, dando acesso à vida do corpo e à vida da espécie, permitindo o exercício de um biopoder sobre a população.
Destarte, o texto Sexualidade e Medicina: A Revolução do Século XX nos mostra transformações produzidas pelo exercício do biopoder nas relações entre sexualidade e reprodução. Alguns exemplos analisados pela autora são o rompimento da associação entre sexualidade e reprodução, ou a autonomização da sexualidade, a fragilidade e descontinuidade dos laços conjugais, em que a noção de tempo longo é substituída por tempo fugaz. Essas transformações estão apoiadas em mudanças estruturais, institucionais e tecnológicas, para as quais a medicina é uma peça chave.
Adiciono aqui mais um dado, além dos fornecidos pela autora, que corrobora sua tese sobre a interferência da medicina e da epidemiologia no controle da sexualidade. Trata-se da rede escolar como um dos espaços privilegiados para o exercício do biopoder, buscando expandir o impacto populacional no controle da sexualidade de crianças e, principalmente, adolescentes. O trabalho educacional atualmente desenvolvido sobre este tema sofre forte influência dos campos da medicina e da epidemiologia. Dados estatísticos e demográficos sobre a epidemia de AIDS entre jovens, sobre crescimento de casos de gravidez entre adolescentes e sobre comportamento sexual são apontados como justificativas e fundamentam a realização de trabalhos de orientação sexual (a expressão "orientação sexual" vem substituindo, nos últimos anos, a de "educação sexual" e tem sido mais freqüentemente utilizada no campo da Educação) nas escolas. Esses trabalhos deixam de ser ações isoladas e disseminam-se nas redes de ensino, inclusive integrando, na forma de tema transversal, os Parâmetros Curriculares Nacionais documentos que estabelecem uma referência curricular nacional. O controle estatístico e pela informação da sexualidade, do qual nos fala Loyola, também é operado na escola, geralmente por professores ligados, na maioria, à área de biologia ou, por vezes, por outros especialistas, como médicos, sexólogos ou psicólogos.
Partindo da constituição do dispositivo de sexualidade no século XIX, passando pelas principais configurações que este recebe no século XX como tecnologia política, este artigo já aponta os vetores que anunciam o século XXI, com seu imaginário calcado nas tecno-ciências, cujos imperativos sociais e individuais tendem à ordem de uma racionalidade instrumental. Desse modo, a sexualidade continua a jogar seus dados com a história.
FOUCAULT, M., 1979. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal.
MICHAUD, Y., 2000. Des modes de subjectivation aux techniques de soi: Foucault et les identités de notre temps. Revue Cités, 2:11-39.