DEBATE DEBATE

 

Debate sobre o artigo de Maria Andréa Loyola

 

Debate on the paper by Maria Andréa Loyola

 

 

Carlos Eduardo Estellita-Lins

Departamento de Ensino, Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: cefestellita@alternex.com.br

 

 

O artigo da Profa. Dra. Maria Andréa Loyola representa uma oportuna e significativa contribuição para a discussão contemporânea acerca da sexualidade em suas relações com o campo biomédico. A ambição de suscitar novos estudos e a "construção de novas hipóteses" sobre a sexualidade no século XXI, revelam-se extremamente pertinentes embora marcadas por dificuldades intrínsecas ao campo em discussão.

Com base no texto, devem ser mencionados dois aspectos epistemológicos que comparecem na investigação acerca das relações entre sexualidade e medicina. Um concerne à doença e outro à técnica.

O modo com as tecnologias de reprodução assistida compõem uma clínica da infertilidade, por meio da proposta de tratamento ou terapêutica da infertilidade, precisa ser detidamente estudado em suas conseqüências para a racionalidade médica. Normal e patológico parecem redesenhar sua articulação e suas fronteiras, a partir do momento em que a infertilidade torna-se uma doença que pode ser tratada, e onde o resultado do tratamento consiste no nascimento de uma criança. Trata-se indubitavelmente de uma inflexão complexa dentro do rol de intervenções corporais permitidas pela biotecnologia. A cosmetologia, a cirurgia plástica podem constituir outros exemplos de intervenções ­ na imagem corporal ­ mediados pelo alargamento ou enfraquecimento da noção de doença a partir de novos recursos do biopoder. No caso da reprodução assistida assim como da sexologia, percebe-se que a sexualidade opera de modo privilegiado. Talvez seja cabível interrogar a hipótese de Tabet, citada pela autora ­ de uma dissociação entre o reprodutivo e não-reprodutivo ­ em sua capacidade de explicar estes deslocamentos.

Outro aspecto em questão consiste na progressiva interseção de vida e tecnologia, que tende para aproximação e mesmo confusão entre ambas. Isso traz à tona uma paisagem bioética, onde a velha pergunta sobre a técnica no sentido da desconfiança e suspeita de um descontrole perigoso oculto sob toda promessa de controle, modula-se então sobre a própria vida manipulada biotecnologicamente. A vida, conceito preciso ou apenas outra figura para certas concepções de Natureza, traz consigo o risco da hybris, do descontrole e do excesso. Não somente nas aporias bioéticas da reprodução assistida esconde-se o rosto do chamado "imperativo tecnológico", mas evidentemente um otimismo despudorado com a técnica ronda a sexologia, a epidemiologia e a clínica da AIDS. A sexualidade indica certas modalidades de articulação entre tecnologia e vida sob a égide da medicina.

O advento da epidemiologia clínica na medicina contemporânea também responde pela valorização da biotecnologia e por modificações relevantes no domínio conceitual de doença e saúde. A sexologia estabelece um trabalho laborioso e constante a partir das lacunas deixadas pela psicanálise, mas sua condição de possibilidade reside no domínio de experimentação estocástica que a epidemiologia clínica pratica no terreno do patológico.

O texto faz opção pela expressão consagrada "sexualidade", implicando o impasse concernente ao uso da noção/conceito de sexualidade, que traz consigo ressonâncias imprevisíveis. O solo freudiano de onde provém o termo, derivado das investigações quase taxionômicas de Kraft-Ebbing, condiciona o debate a uma tensão necessária entre genitalidade e polimorfia perversa (sexualidade significando então, mais do que contato sexual genital, intercurso, coito, etc., servindo portanto como palavra-valise para indicar tudo aquilo que contornava o padrão procriativo). Mesmo no "imperativo do orgasmo" ou no monismo sexual do padrão-ouro masturbatório (de acordo com André Beijin), podemos adivinhar um certo desenho do corpo com sua espessura histórica, suas injunções e regulações políticas, sua filiação a regimes de racionalidade ainda excessivamente poderosos para que a análise teórica consiga atravessá-los plenamente. Algo paradoxal encontra-se em vias de explicitação, pode-se dizer, desde a História da Sexualidade 1 (Foucault, 1984), pois verdade e sexo articulam-se de modo tal que qualquer discurso que investigue suas relações deva simultaneamente atentar para os impasses ­ efeitos de verdade enquanto efeitos de subjetivação ­ incontornáveis em que qualquer discussão sobre subjetividade e sexo incorrem. A suposta guinada foucaultiana, que investiga a subjetivação implícita na sexualidade por meio do destaque dos enunciados prescritivos, parece responder com um recuo às questões de ordem metodológica onde a própria noção de sexualidade se situa.

A pergunta que fica após o exame dos argumentos da autora concerne ao fato de que se a medicina pode exercer novos e mais sutis controles sobre uma sexualidade desvinculada da reprodução, isso nos motiva a pensar que talvez a própria medicina esteja em profunda mutação, que a noção de biopoderes seja realmente útil para analisar estas fraturas e descontinuidades e que haja modulações e injunções complexas nesta estranha aventura que conecta corpo e poder sob o individualismo das sociedades contemporâneas.

 

FOUCAULT, M., 1984. História da Sexualidade 1. Rio de Janeiro: Graal.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br