NOTA
Leishmaniose tegumentar canina em Morada das Águias (Serra da Tiririca), Maricá, Rio de Janeiro, Brasil
Canine tegumentary leishmaniasis in Morada das Águias (Serra da Tiririca), Maricá, Rio de Janeiro, Brazil
Cathia M. B. SerraI; Cristianni A. LealII,V; Fabiano FigueiredoIII; Tânia M. SchubachIII; Rosemere DuarteII,V; Cláudia M. A. UchôaIV; Roger Magno M. SilvaII,V; Maria de Fátima MadeiraII,V
IFaculdade de Veterinária, Universidade Federal Fluminense. Rua Vital Brasil 64, Niterói, RJ 24230-340, Brasil. cathiaserrra@bol.com.br
IIDepartamento de Ciências Biológicas, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Rua Leopoldo Bulhões 1480, Rio de Janeiro, RJ 21041-210, Brasil. fmadeira@ensp.fiocruz.br
IIIDepartamento de Doenças Infecciosas, Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas, Fundação Oswaldo Cruz. Av. Brasil 4365, Rio de Janeiro, RJ 21045-900, Brasil
IVDepartamento de Microbiologia e Parasitologia, Universidade Federal Fluminense. Rua Prof. Hernani de Mello 131, Niterói, RJ 24210-130, Brasil
VDepartamento de Micro Imuno Parasitologia, Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas, Fundação Oswaldo Cruz. Av. Brasil 4365, Rio de Janeiro, RJ 21045-900, Brasil
RESUMO
Descreve-se a ocorrência da leishmaniose tegumentar em cães da localidade de Morada das Águias (Serra da Tiririca), Maricá, Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Foram avaliados 83 cães por meio de exames clínico, sorológico e parasitológico. Os soros de 11 (13,2%) animais foram reagentes à imunofluorescência indireta (IFI) e de 30 (36,1%) ao ensaio imunoenzimático (ELISA). Úlceras cutâneas e ou mucosas foram observadas em 18 (n = 83; 21,7%) dos animais. Leishmania foi isolada de 11 cães. Discute-se a ocorrência da doença e a ocupação da localidade.
Palavras-chave: Leishmania; Leishmaniose; Cães; Zoonoses
ABSTRACT
This is a report of canine tegumentary leishmaniasis in Morada das Águias (in the Serra da Tiririca mountain range), Maricá, Rio de Janeiro State, Brazil. A clinical, serological, and parasitological survey was performed in 83 dogs. Eleven (13.2%) were positive on indirect immunofluorescence (IIF) and 30 (36.1%) on enzyme-linked immunosorbent assay (ELISA). Ulcerated cutaneous or mucosal lesions were observed in 18 (n = 83; 21.7%) dogs. Leishmania was isolated from 11 of the animals. The disease occurrence and local occupational characteristics are discussed.
Key words: Leishmania; Leishmaniasis; Dogs; Zoonoses
Introdução
Nos últimos anos, em diversas regiões do Sudeste brasileiro, a leishmaniose tegumentar americana (LTA) tem ocorrido na forma de microepidemias relacionadas principalmente ao processo migratório com a ocupação de encostas em áreas periféricas urbanas e envolvendo no seu ciclo de transmissão animais domésticos, em especial, os cães (Marzochi & Marzochi, 1994). Tal fato levou o Ministério da Saúde (MS, 2000) a considerar, nessas regiões, um novo padrão epidemiológico dessa zoonose.
O Município de Maricá (Rio de Janeiro) sofreu um processo de urbanização, iniciado na década de 40, por meio da fragmentação da terra das fazendas locais, alterando sua estrutura espacial e transformando-o em um município periurbano. Dessa forma, tornou-se integrado definitivamente à Região Metropolitana do Rio de Janeiro (Martins, 1986). Em Maricá, a ocorrência esporádica de casos humanos e caninos de LTA tem sido associada com a ocupação humana próximo às encostas (Horta et al., 1998; Madeira et al., 2001). Recentemente, foram notificados na Secretaria Municipal de Saúde de Maricá (SMS-Maricá) dois casos humanos de LTA ocorridos no Condomínio Morada das Águias, área situada junto à encosta da Serra da Tiririca, a qual foi considerada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), em 1992, como parte integrante da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, após movimentos sociais de preservação ambiental, que culminaram na implantação do Parque Estadual da Serra da Tiririca. No entanto, apesar de todos esses esforços, sua paisagem natural já havia sido bastante alterada por desmatamentos sucessivos, que ainda acontecem e acarretam importantes desequilíbrios ambientais, favorecedores à instalação do ciclo peridoméstico da LTA.
O presente trabalho objetivou avaliar a ocorrência da LTA na população canina residente nesta localidade.
Material e métodos
Durante o período de agosto a dezembro de 2002, foi realizado um censo da população canina por intermédio da visita domiciliar, casa a casa no Condomínio Morada das Águias.
A área estudada encontra-se situada no loteamento Morada das Águias, junto à encosta da Serra da Tiririca no Município de Maricá (Figura 1). Este localiza-se no Estado do Rio de Janeiro, tendo como limites os municípios de Niterói, São Gonçalo, Itaboraí, Tanguá e Saquarema, abrangendo uma área de 362,94Km2 com uma população estimada em 2002 de 83.938 habitantes. Os indicadores demográficos do censo de 2000 revelaram em Maricá uma taxa de crescimento de 5,71% e uma taxa de migração de 4,49% (Anuário Estatístico do Rio de Janeiro, 2002).
Os cães foram clinicamente avaliados quanto à presença de lesões sugestivas de LTA, e na presença dessas, procedeu-se a biópsia, sendo os fragmentos submetidos à cultura para Leishmania. Amostras de sangue foram coletadas para o diagnóstico sorológico utilizando-se as técnicas de imunofluorescência indireta (IFI) e ensaio imunoenzimático (ELISA).
Diagnóstico parasitológico
Da borda da lesão foi retirado um pequeno fragmento, o qual foi imerso em solução salina contendo 1.000UI de penicilina G potássica (SIGMA), 100µg de estreptomicina (SIGMA) e 50µg de 5-fluorocitosina (SIGMA) por mililitro. Após 24 horas a 4ºC, os fragmentos foram seccionados e semeados em meio bifásico NNN (Novy, MacNeal e Nicolle)/Schneiders Insect Medium (SIGMA) contendo 10% de soro fetal bovino. O material foi incubado a 28ºC por um mês, sendo realizados exames semanais a partir do quinto dia.
Diagnóstico sorológico
IFI: A reação de imunofluorescência indireta para a pesquisa de IgG foi realizada segundo a descrição do kit de IFI para diagnóstico da leishmaniose canina (Biomanguinhos/ FIOCRUZ/MS). Considerou-se como positivas amostras que apresentaram fluorescência em diluições iguais ou maiores que 1/40.
ELISA: O método utilizado teve como princípio a metodologia indireta para pesquisa de Ig total de cão, específico para antígenos de Leishmania (promastigotas de Leishmania braziliensis), previamente fixados em placa de poliestireno de fundo chato com 96 poços. Os soros foram diluídos a 1:20 em duplicata. A determinação de positividade baseou-se em leituras superiores ao cut off.
Resultados
Na área do condomínio, foram observados 72 residências e 116 cães, incluindo dois animais errantes, 14 avistados em casas fechadas e 17 filhotes com idade inferior a três meses, que não foram incluídos no estudo. Cães estavam presentes em 40 residências (55,5%), sendo que dessas, foram visitadas 33 onde 83 cães foram avaliados. Os soros de 11 (13,2%) animais reagiram à IFI e de 30 (36,1%) ao ELISA. Úlceras cutâneas e ou mucosas foram observadas em 18 (n = 83; 21,7%) dos animais, sendo em 12 únicas e em 6 múltiplas, localizadas no pavilhão auricular, focinho, face, membro posterior, bolsa escrotal e mucosa nasal. A cultura dos fragmentos foi realizada em 16 cães, sendo obtido o isolamento de Leishmania em 11. Durante o período do estudo, mais um caso humano foi notificado. A maioria dos casos caninos confirmados pelo isolamento parasitário ocorreu na rua da encosta da referida Serra, bem como os três casos humanos.
Discussão
A transformação de Maricá da condição de um município rural para um município periurbano ocorreu por meio dos loteamentos que foram feitos em seu território, acarretando profundas alterações sócio-econômico-espaciais, com destaque para a dependência econômica desse parcelamento de terras e a introdução de uma nova população de origem urbana (Martins, 1986). Nesse contexto, encontra-se atualmente Morada das Águias, área localizada numa região do município que vem sofrendo expressiva derrubada da mata junto à encosta da Serra da Tiririca para a instalação de moradias de classe média, principalmente com objetivo de veraneio. Verifica-se também, que embora o crescimento populacional do Estado do Rio de Janeiro tenha sido pequeno nos últimos anos, o mesmo não ocorreu em alguns de seus municípios, principalmente naqueles da faixa litorânea, como Maricá, nos quais foram observadas as maiores taxas de crescimento populacional e migratório principalmente relacionadas à expansão da atividade turística e de veraneio (Anuário Estatístico do Rio de Janeiro, 2002). Kawa & Sabroza (2002), ao analisarem a espacialização da leishmaniose tegumentar na Cidade do Rio de Janeiro, verificaram que as taxas de incidência média foram muito mais elevadas onde havia maiores taxas de crescimento populacional e que, portanto, a dinâmica do processo endêmico-epidêmico da leishmaniose tegumentar no Município do Rio de Janeiro estaria associada aos processos particulares de ocupação. Situação semelhante poderia estar acontecendo em Maricá, e o elevado número de casos caninos verificados em Morada das Águias ser conseqüência de uma ocupação desordenada da terra, acarretando abrupta modificação da paisagem original, favorecendo a ocorrência do efeito marginal, com formação do ecótono, permitindo a adaptação de flebotomíneos ao peridomicílio e tornando homens e cães fonte alimentar de fácil acesso. Apesar da ocorrência da doença canina na região, não é possível, ainda, incriminá-los pelos casos humanos. A presença de animais silvestres como gambá, ouriço, rato do mato, cuíca, entre outros, junto às casas foi relato constante dos moradores. Estudos são necessários visando a conhecer a fauna flebotomínica local, bem como elucidar o papel dos diversos animais no ciclo de transmissão da doença.
Referências
ANUÁRIO ESTATÍSTICO DE ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 2002. Demografia. 3 Julho 2003 <http://www.cide.rj.gov.br/produtos/anuario 02/principal.htm>.
HORTA, F. T.; SERRA, C. M. B.; MADEIRA, M. F.; MACEDO, R. M. S.; DUARTE, R. & PACHECO, R. S., 1998. Epidemiological study of Canine Tegumentary Leishmaniasis in Inoã District (Maricá Municipality, Rio de Janeiro, Brasil). Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, 93(Sup. 2):113.
KAWA, H. & SABROZA, P. C., 2002. Espacialização da leishmaniose tegumentar na cidade do Rio de Janeiro. Cadernos de Saúde Pública, 18:853-865.
MADEIRA, M. F.; UCHÔA, C. M. A.; MAGALHÃES, C. M.; DUARTE, R.; MACEDO, R. M. M.; FIGLIOULO, L. F.; LEAL, C. A. & SERRA, C. M. B., 2001. Avaliação da circulação da Leishmaniose no Município de Maricá-Rio de Janeiro. Um estudo de três anos. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, 34(Sup. 1):190-191.
MARTINS, A. M. M., 1986. O Parcelamento da Terra no Município de Maricá, Estado do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado, Rio de Janeiro: Instituto de Geociências, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
MARZOCHI, M. C. A. & MARZOCHI, K. B., 1994. Tegumentary and visceral leishmaniasis in Brazil Emerging anthropozoonosis and possibilities for their control. Cadernos de Saúde Pública, 10:359-375.
MS (Ministério da Saúde), 2000. Manual de Controle da Leishmaniose Tegumentar Americana. Brasília: Centro Nacional de Epidemiologia, Fundação Nacional de Saúde, Ministério da Saúde.
Recebido em 26 de março de 2003
Versão final reapresentada em 21 de julho de 2003
Aprovado em 31 de julho de 2003