ARTIGO/ARTICLE

 

Violência contra mulheres: a experiência de usuárias de um serviço de urgência e emergência de Salvador, Bahia, Brasil

 

Violence against woman: clients of emergency care units in Salvador

 

 

Iracema Viterbo Silva

Secretaria de Saúde do Estado da Bahia, Hospital Geral do Estado. Av. Vasco da Gama s/n, Salvador, BA 40240-090, Brasil. iviterbos@ig.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta resultados de uma pesquisa sobre violência contra a mulher, realizada em um hospital de urgência e emergência de Salvador, Bahia, Brasil. Definindo-se uma amostra por conglomerado e utilizando-se de um questionário, foram realizadas 701 entrevistas com mulheres na faixa etária de 15 a 49 anos, sendo que 321 referiram algum tipo de violência: física, sexual e/ou psicológica. Constatou-se que embora a violência contra a mulher ocorra independentemente das características sócio-demográficas, é no espaço doméstico onde o fenômeno mais ocorre. Entre mulheres que referiram violência física foi encontrado um número maior de casos de doenças mentais e comportamentais, problemas decorrentes das causas externas, doenças do aparelho geniturinário e causas mal definidas. Conclui-se que os serviços de saúde têm de ter profissionais preparados para atender essas mulheres, que muitas vezes buscam a unidade para aliviar suas dores sem, no entanto, receber uma resposta concreta às suas reais necessidades.

Palavras-chave: Violência; Mulheres Maltratadas; Gênero


ABSTRACT

This article discusses research on violence against women treated at an emergency care hospital in Salvador, Bahia, Brazil. A total of 701 interviews were conducted in a cluster sample of women ages 15 to 49 years, of whom 321 reported some episode of physical, sexual, and/or psychological violence. Although violence against the women in this sample was not associated with social/demographic characteristics, most cases of violence occurred in the domestic environment. Among women reporting physical violence, there were more cases of mental and behavioral disorders, problems resulting from external causes, genitourinary tract diseases, and ill-defined causes. The article concludes that health services need professionals who are prepared to treat these women, who often come to emergency care units to relieve their pain and suffering but fail to find a concrete response to their real needs.

Key words: Violence; Battered Women; Gender


 

 

Introdução

Nos últimos trinta anos, a violência contra a mulher tem despertado o interesse da sociedade que a partir da pressão dos movimentos sociais feministas tem buscado formas para o enfrentamento do problema, a exemplo da criação das delegacias de defesa da mulher e das casas-abrigo (Schraiber et al., 2002). Embora atingindo a todos, certos grupos acabam sofrendo formas específicas de violência, podendo-se falar numa distribuição social refletida em uma divisão de espaços onde os homens são mais atingidos na esfera pública, enquanto que as mulheres são prioritariamente no espaço doméstico, sendo o agressor alguém da sua intimidade (Gebara, 2000).

Baseando-se em uma perspectiva de gênero, a violência contra a mulher vem sendo entendida como o resultado das relações de poder entre homem e mulher, tornando-se visível a desigualdade que há entre eles, onde o masculino é quem determina qual é o papel do feminino, porém esta determinação é social e não biológica. Assim, para distinguir este tipo de violência pode-se defini-la como qualquer ato baseado nas relações de gênero que resulte em danos físicos e psicológicos ou sofrimento para a mulher, entendendo-se que tal conduta é muitas vezes usada conscientemente como um mecanismo para subordinação, como o que ocorre nas relações conjugais (Watts & Zimmerman, 2002).

Azevedo (1986), ainda na mesma perspectiva, identifica dois grupos de fatores que poderiam "explicar" a violência contra a mulher. Assim, faz referência aos fatores condicionantes representados, entre outras coisas, pelas formas concretas de opressão do regime sócio-econômico e político a que tanto homens como mulheres estão submetidos numa dada formação social e num dado momento da sua história, bem como a posição da mulher neste contexto. Também faz parte desses fatores a ideologia machista que legitima as relações entre os sexos como relações de dominação-subordinação (fatores ideológicos) e a própria educação diferenciada, que possibilita a reprodução da violência pela incorporação dessa ideologia no "mundo da representação" individual (fatores pedagógicos). Já os fatores precipitantes incluiriam o álcool e outros tóxicos ingeridos pelos participantes de episódios de violência, e também as situações de estresse que tanto poderiam ser causadas por problema de solução desconhecida pelos indivíduos, como por problemas de solução conhecida, mas emocionalmente penosa. Com base nessas considerações, a autora acredita poder explicar a violência familiar do tipo físico exercida contra a mulher por meio de fatores de natureza sócio-psico-pedagógica, mediados por um certo padrão de relações sociais de gênero, ou seja, o padrão machista, denominado pela literatura especializada como patriarcal e que se particulariza conforme as determinações concretas de certos modos de produção.

Assim sendo, a violência doméstica é apenas um aspecto da violência contra a mulher que comumente é alvo de outras formas, dentre as quais figura o assédio e o abuso sexual, a violência institucional em que as mulheres são submetidas a constrangimentos nos serviços de saúde e a estrutural que decorre das definições que lhe atribuem um papel secundário, limitando a sua cidadania em todos os níveis de hierarquia social (Deslandes, 1999; D'Oliveira et al., 2002; Gebara, 2000).

Como questão de saúde, a violência contra a mulher passa a ter importância no Brasil na década de 80, com a implantação do Programa de Assistência Integrada à Saúde da Mulher (PAISM), que incorporou a violência doméstica e sexual como parte das necessidades a serem supridas. Entretanto, esta iniciativa não significou, na época, mudanças expressivas na atenção à mulher em situação de violência, pois somente na década de 90 foram tomadas medidas mais efetivas com a criação de serviços de atenção à violência sexual para a prevenção e profilaxia de doenças sexualmente transmissíveis, de gravidez indesejada e para a realização de aborto legal quando necessário (Schraiber et al., 2002).

Atualmente, diversas organizações têm desenvolvido guias para nortear as ações de profissionais de saúde, de modo que possam identificar, apoiar e dar o devido encaminhamento às vítimas. Tais medidas seriam o resultado da compreensão de que a violência representa uma violação dos direitos humanos, consistindo, ainda, em uma importante causa de sofrimento e um fator de risco para diversos problemas de saúde de cunho físico e psicológico.

Entretanto, apesar desses avanços, o setor saúde nem sempre vem oferecendo uma resposta satisfatória para o problema que acaba diluído entre outros agravos, sem que se leve em consideração a intencionalidade do ato que gerou o estado de morbidade. Esta situação decorre da invisibilidade em alguns setores que ainda se limitam a cuidar dos sintomas das doenças e não contam com instrumentos capazes de identificar o problema. O resultado é que as intervenções terminam por mostrar respostas insuficientes dos serviços para as necessidades das mulheres. Uma vez que a situação de violência não se extingue, suas repercussões sobre o adoecimento do corpo ou o sofrimento mental ressurgem e voltam a pressionar os serviços para novas intervenções (Schraiber et al., 2002).

Neste artigo são apresentados resultados de uma pesquisa que teve como objetivo investigar a ocorrência de violência – física, sexual e psicológica – entre usuárias de um serviço de urgência e emergência e a sua distribuição segundo características sócio-demográficas. Trata-se de um estudo descritivo que poderá contribuir para a visualização do problema na área de saúde e, conseqüentemente, poderá gerar ações de atenção à mulher que vive em situação de violência.

 

Metodologia

Trata-se de um estudo de corte transversal que teve como população de referência mulheres na faixa etária de 15 a 49 anos, que foram atendidas em um hospital de urgência e emergência de Salvador, no período de 16 de outubro a 12 de dezembro de 2001. A unidade escolhida para a realização do estudo é referência no Estado da Bahia, sendo uma das responsáveis pelo atendimento da maioria das vítimas de violência de qualquer natureza. Definiu-se uma amostra por conglomerado, tendo como unidade o período do dia (madrugada, manhã, tarde, noite). Assumindo uma prevalência de violência física entre dados levantados durante uma semana (22 a 28 de abril de 2001), em torno de 32 %, erro aceitável de 20 % e confiança de 95 %, o número de conglomerados selecionado ficou em torno de 47. O sorteio dos conglomerados foi feito de forma sistemática onde o intervalo de amostragem foi dado por: K = N/n; K = 240/47> 5.

Foram realizadas entrevistas por assistentes sociais treinadas para este fim, utilizando-se de um questionário estruturado que foi elaborado com base no instrumento Abuse Assessment Screen (Reichenheim et al., 2000). Contendo questões objetivas, estava dividido em três partes que, por sua vez, subdividiam-se em blocos. A primeira parte continha dados sócio-demográficos da entrevistada, seguindo com mais três blocos de questões que visavam a investigar a ocorrência de violência física, sexual e psicológica. Tais variáveis eram levantadas baseando-se em questões como estas: "você já foi maltratada fisicamente ou agredida por alguém? Alguém já fez você passar por algum tipo de humilhação? Fez algum tipo de ameaça? Fez você ficar com medo? Alguém já forçou você a fazer sexo contra a vontade?" A segunda parte do questionário, preenchida apenas com aqueles casos em que foram emitidas respostas positivas às perguntas descritas, pretendia explorar melhor estas situações coletando dados acerca do tipo de violência sofrida mais recentemente e do perfil do agressor. Na terceira parte era realizada uma investigação sobre a saúde da usuária por meio de uma avaliação pessoal e, seguindo com questões que permitissem uma análise do fenômeno sob a perspectiva de gênero. Ainda nesta mesma parte, foram levantados os recursos utilizados pela usuária durante o atendimento na unidade, bem como o diagnóstico dado com base na avaliação médica. Além das questões fechadas, foi reservado um espaço no próprio questionário onde eram realizadas anotações sobre os relatos espontâneos das entrevistadas e das situações observadas durante a entrevista que pudessem servir como complemento do estudo durante o processo de análise.

Elegeu-se como local para seleção dos casos, os serviços de Triagem e de Sutura, que via de regra são as portas de entrada dos pacientes na unidade. Foram elegíveis para a pesquisa as mulheres que eram admitidas e efetivamente atendidas durante cada período selecionado. Era excluída do estudo a usuária que já tivesse sido entrevistada em período anterior do próprio estudo, retornando à unidade para nova consulta.

O estudo foi norteado pelos princípios éticos que regulamentam pesquisas envolvendo seres humanos, sendo o projeto previamente analisado e aprovado por um comitê de ética em pesquisa. Valendo-se do consentimento livre e esclarecido, buscou-se a anuência dos sujeitos que inicialmente foram informados sobre a natureza do estudo, seus objetivos, métodos e possíveis benefícios. Ao mesmo tempo, foram garantidas a confidencialidade e a privacidade das informações. De modo que, em alguns casos, devido às condições físicas e emocionais da paciente e em respeito à sua vontade que preferia não lembrar de episódios vividos no passado, algumas questões do instrumento de coleta deixaram de ser respondidas. Nos casos detectados de violência, era prestado apoio psicossocial pelas assistentes sociais entrevistadoras que também sinalizavam os recursos disponíveis na comunidade para enfrentamento do problema.

Ao final do período de coleta de dados, estes foram armazenados em um banco, utilizando-se do programa Epi Info versão 6.0. A partir daí, ainda com recursos do referido programa, foi possível obter freqüências e estabelecer o nível de significância das variáveis pelo teste de qui-quadrado.

 

Resultados

No total foram 926 mulheres atendidas durante os períodos selecionados, sendo que 14 foram excluídas do estudo porque procuraram a unidade mais de uma vez e numa dessas ocasiões foi entrevistada. Alem disso, foram registradas 205 perdas e 6 recusas. Assim, a amostra final foi constituída por 701 mulheres. Dessas, 83% apresentaram como principal demanda para o serviço algum problema de saúde e apenas 4% procuraram atendimento em decorrência de agressão (Tabela 1). Entretanto, 46% referiram sofrer ou já ter sofrido algum tipo de violência na vida.

 

 

A violência física foi referida por 36,5% das mulheres, enquanto que a sexual foi detectada em 18,6%. A violência psicológica, muitas vezes mais difícil de ser identificada, por não deixar marcas visíveis, foi expressa de maneiras variadas, sendo as mais comuns ofensas com 22,3% e xingamentos com 19,5%. Em todos os tipos de violência, parceiros e ex-parceiros aparecem como principal agressor com percentuais variando de 46,5% até 68,7% dos casos (Tabelas 2 e 3).

 

 

 

 

A maioria das mulheres entrevistadas tinha entre 20 a 29 anos de idade (40%), considerava-se de cor preta (46,5%) e era casada ou possuía um companheiro (51,1%). Quanto ao grau de instrução, 60,5% cursaram alguma série do ensino fundamental e apenas 1,0% chegou à faculdade. A maioria, 29,1%, estava constituída por donas-de-casa e 56,7% declararam-se católicas (Tabela 4).

 

 

Com exceção da ocupação (p = 0,035) e da situação conjugal (p = 0,010), não foram encontrados resultados estatisticamente significantes nas demais variáveis sócio-demográficas, a não ser com relação à idade, quando comparada ao tempo decorrido do último episódio de agressão física (p = 0,000).

Foram encontrados resultados estatisticamente significantes na relação diagnóstico e violência física na vida (p = 0,000). Entre as mulheres que nunca sofreram violência física, os maiores percentuais são de 19,8% para os sintomas e achados anormais, 17,3% para problemas respiratórios e 9,6% para as lesões e conseqüências das causas externas. Entre as que mencionaram violência física na vida, os maiores percentuais são de 23,2% para as lesões e conseqüências das causas externas e 20,1% para sintomas e achados anormais, enquanto que para doenças do aparelho respiratório o percentual é de 15,2% (Tabela 5).

 

 

No que diz respeito à forma em que se praticou a violência física, os empurrões, os socos, os pontapés, tapas e bofetadas, uso de armas e objetos foram maneiras mais comuns, sendo que os socos foram referidos por 49,2% dos casos.

Sobre o enfrentamento da violência, 44% de mulheres que sofreram abuso, deixaram a casa. Dessas, 46,5% acabaram retornando para o convívio do agressor, sendo que 20% disseram ter voltado pelos filhos e 29,6% porque o marido ou companheiro pedira para voltar.

Das mulheres que sofreram algum tipo de violência na vida, 36% admitiram nunca ter reagido diante da agressão fosse de qualquer natureza, enquanto que 32% reagiram todas as vezes e outras reagiram uma ou duas, ou algumas vezes, com percentual de 16% cada.

De 270 mulheres que sofreram algum tipo de violência, apenas 22,5% procuraram a Delegacia da Mulher e 12,5% outras delegacias para prestar queixa.

Questionadas sobre possíveis motivos que justificassem um homem bater em uma mulher, 86,6% declararam não existir nenhum motivo para tal atitude, enquanto que as 13,4% restantes apresentaram como principais motivos a infidelidade por parte da mulher e a não realização dos trabalhos domésticos de forma satisfatória para ele.

 

Discussão

Algumas limitações marcaram a realização do estudo, estando associadas às características da instituição além da própria complexidade que há na abordagem do tema. Constituindo-se em uma unidade de referência em todo o Estado da Bahia para casos de urgência e emergência, a instituição convive com o drama da superlotação, uma vez que a maior parte dos problemas de saúde que atinge a população acaba para lá convergindo. Acostumado a trabalhar com a demanda espontânea, onde os indivíduos só buscam os serviços a partir dos sintomas, o sistema de saúde ainda vigente acaba não garantindo o atendimento ambulatorial para a população que encontra nas emergências o único "porto seguro" para tentar sanar suas dores, resultando em uma situação de risco para o usuário que tem o seu problema agravado pela precariedade do serviço que é prestado. Esta situação gerava uma certa desorganização no atendimento dificultando a localização da usuária na instituição, concorrendo para as perdas. A condição de algumas usuárias que se achavam em sofrimento agudo também dificultou a participação. Por outro lado, nem sempre se contava com um local mais apropriado que garantisse a privacidade da entrevista e uma melhor escuta. Um outro fator que dificultou a localização da usuária refere-se à falha no sistema de comunicação ocorrida no momento da admissão, quando era informado o motivo para o atendimento. Muitos casos registrados como clínico, ao invés de serem atendidos na Triagem, eram absorvidos na Sutura. Em alguns casos porque se tratava de lesão decorrente de algum acidente, que considerado de menor gravidade, era registrado como caso clínico e outras vezes porque o atendimento era preferencial por parte de algum profissional, situação que escapava ao controle das pesquisadoras. Somado a isso, teve o fato de muitos prontuários não terem sido localizados junto ao Serviço de Arquivo Médico da unidade, não permitindo a análise do diagnóstico.

Assim, 11,8% das mulheres não foram localizadas na unidade, 9,0% as condições de saúde não permitiram a participação, 1,18% foram a óbito e 0,64% se recusaram a participar, porém, o perfil dessas mulheres não difere do grupo abordado. Com percentual de 33,1%, a maioria estava na faixa de 20 a 29 anos e o atendimento foi em 71,1% dos casos, decorrente de doença. Entre as mulheres que foram a óbito, uma estava na faixa de 15 a 19 anos, duas na de 20 a 29 anos, três na faixa de 30 a 39 anos e cinco entre 40 a 49 anos. A causa da morte esteve ligada a doenças do aparelho circulatório, doenças endócrinas, neoplasias, doenças do sangue e causas externas.

Apesar das dificuldades, são apresentados elementos que podem contribuir para uma análise e maior compreensão acerca da violência contra a mulher. Observa-se que a violência não se restringe à agressão física que demanda um atendimento médico, mas existem formas mais sutis que, embora não deixando marcas, podem provocar sérios danos à saúde da mulher. A maioria buscou a unidade em decorrência de problemas clínicos e nenhuma delas mencionou ao profissional responsável pelo atendimento viver ou ter vivido situação de violência na vida, até porque a distância que existe na relação médico paciente tornava-se mais aguçada no atendimento de emergência. Durante o estudo, observou-se que embora alguns profissionais percebessem a existência de tais situações em suas pacientes, suas práticas não iam além da abordagem clínica.

Como há uma predominância desses eventos acontecerem no espaço doméstico, a vítima acaba inibida em falar, pois estaria expondo a própria família. Sem falar que muitas situações são consideradas comuns em nossa sociedade e por isso aceitáveis e não reconhecidas como violência. É o caso da violência sexual, em que a maior parte das referências é de mulheres que cedem ao desejo do parceiro para não contrariá-lo ou até porque entendem cumprir uma obrigação na relação marido e mulher. Mesmo entre aquelas que admitiram ter passado por uma situação de estupro, houve quem não considerasse o ato como motivo suficiente para uma punição mais severa contra o agressor, principalmente se a violência aconteceu apenas sob o efeito de ameaças, sem a prática da violência física. Percebe-se nitidamente alguns conceitos que ainda permeiam a vida dessas mulheres, de modo que algumas ainda encontram justificativas para a prática da violência. Desse modo, vão reforçando normas numa sociedade onde mulheres são punidas por atos que se praticados por homens são considerados normais.

O estudo pôde mostrar que a violência atinge mulheres em todas as faixas etárias, porém quando se compara o tempo decorrido da última agressão, observa-se que mulheres mais jovens com idade inferior a trinta anos são as que mais sofreram violência física nos últimos doze meses, enquanto que acima desta faixa a maior parte das ocorrências ocorreu há um ano e mais.

Em nosso estudo o número de mulheres casadas ou unidas foi maioria decorrendo do fato de se ter considerado as uniões não oficiais, o que quase sempre não é feito pela maior parte das pesquisas. Embora os parceiros tenham sido apontados como principal vitimizador, entende-se que a situação conjugal não determina maior ou menor risco de sofrer violência, pois comparando com o tempo decorrido da última agressão física, as solteiras foram as que mais referiram ter sofrido violência nos últimos doze meses, enquanto que separadas e viúvas ficaram com os maiores percentuais para ocorrências de um ano e mais.

Referência de violência foi encontrada em mulheres independentemente do nível de escolaridade e da ocupação, porém é certo que quanto menor o suporte social maior o risco, visto que há uma tendência da mulher submeter-se mais freqüentemente ao vitimizador pela falta de oportunidade de lutar e enfrentar a violência.

Ao considerar a variável religião, optou-se em utilizar uma classificação única para denominar as religiões consideradas protestantes e pentecostais. A diversidade de denominações desta natureza entre as entrevistadas e a não especificação entre algumas, que apenas se denominaram evangélicas, teria sido uma das razões para essa decisão. Entretanto, outros fatores também contribuíram. Pesquisando entre a literatura que trata especificamente sobre o tema religião, identificou-se divergência na classificação de alguns estudos que diferenciam religiões protestantes das pentecostais. Decidiu-se por adotar o termo evangélico que em algumas obras é usado como sinônimo de protestante, mas que também se refere aos pentecostais (Schlesinger & Porto, 1987).

Foi percebida uma associação entre alguns problemas de saúde e a referência de violência, encontrando-se percentuais maiores entre as que sofreram violência na vida quando comparadas com as que não sofreram, a exemplo das conseqüências de causas externas, sintomas e achados anormais, doenças do aparelho geniturinário e transtornos mentais e comportamentais.

Acredita-se que os achados coincidem com o que é mostrado na literatura. É demonstrado que a maior prevalência de mulheres vítimas de violência está na faixa etária de 20 a 30 anos, com pequenas variações de um estudo para outro, todavia é certo, como já foi dito, que as mulheres são vítimas de violência não importando a faixa etária (Azevedo, 1986).

Confirma-se que a violência contra a mulher é geralmente praticada sob a privacidade do lar, vez que a maior parte das ocorrências acontece na própria residência, tendo o marido ou companheiro como principal agressor na maioria dos casos (Deslandes et al., 2000; Rodriguez & Guerra, 1996).

Martin (2001), baseando-se em dados coletados em Salvador, sugere que as mulheres que trabalham recebem menos violência de seus companheiros e por isso seria importante para a mulher aumentar sua autonomia econômica. Em nosso estudo, foi verificado nível de significância entre ocupação e a referência de agressão física na vida.

Com repercussões na saúde das mulheres, estudos têm mostrado que a violência está associada a maiores índices de suicídio, abuso de drogas e álcool, queixas vagas, cefaléia, distúrbios gastrointestinais e sofrimento psíquico em geral. Em relação à saúde reprodutiva, a violência contra a mulher tem demonstrado estar associada a maiores taxas de dores pélvicas crônicas, DST e AIDS, além de doenças pélvicas inflamatórias, gravidez indesejada e aborto. Somado a esses problemas haveria ainda doenças de efeito tardio como a artrite, hipertensão e doenças cardíacas. De forma que, de acordo com a Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar de 1986, comparando com os homens, as mulheres acabam relatando mais problemas de saúde, procurando e utilizando mais os serviços de saúde (Aquino, 1995; Giffin, 1994). Os resultados deste estudo coincidem com o que é mostrado na literatura existente. Após a avaliação médica foi emitido um diagnóstico que recebeu para fins deste estudo uma classificação em grandes grupos de causa, de acordo com a Classificação Internacional das Doenças (CID 10 – OMS, 1995). Em mulheres que referiram violência até um ano, foram encontradas mais ocorrências de doenças mentais e comportamentais, além das conseqüências de causas externas. Entre as mulheres que mencionaram ter sofrido violência há um ano e mais, foram mais freqüentes as doenças do aparelho respiratório, aparelho geniturinário, aparelho circulatório e as causas mal definidas.

Apesar destes resultados, nota-se que a queixa principal que é levada ao serviço de saúde não é a situação de violência que ela enfrentou ou tem enfrentado na vida. Ainda que a demanda pelo serviço tenha sido gerada por um trauma físico decorrente de uma agressão, muitas vezes a mulher é impedida, por meio de ameaças por parte do vitimizador, a falar a verdade e o problema acaba passando por um acidente comum. Observando o fluxo de admissão de pacientes na unidade, encontrou-se uma taxa de prevalência de violência física contra a mulher de 15 casos por mil, porém confirma-se que este resultado apenas expressa os efeitos visíveis do problema.

A determinação do período decorrido do último evento de violência também veio mostrar que as conseqüências ultrapassam os limites do tempo, podendo deixar traumas para o resto da vida e que, muitas vezes, só serão detectados depois de cessada a ação da violência. Algumas mulheres foram capazes de associar os problemas de saúde que enfrentam hoje com a violência sofrida, outras ainda buscam compreender os motivos para determinados comportamentos ou sintomas para elas inexplicáveis.

Considerando o número significativo de mulheres que referiram sofrer ou já ter sofrido alguma situação de violência na vida, percebe-se a necessidade de se ter uma preocupação maior, um olhar diferenciado por parte dos profissionais de saúde, responsáveis pelo atendimento a essas mulheres que recorrem à unidade de saúde em busca de ajuda. É necessário que haja, inclusive, um maior investimento em pesquisas nesta área. Alguns estudos acerca da violência contra mulheres têm sido realizados com base em boletins de ocorrência das delegacias (Amaral et al., 2001; Jong, 2000), porém supõe-se que não têm sido suficientes para expressar de forma ampla a magnitude do problema, pois como se observou por meio deste estudo, muitas mulheres que já sofreram ou ainda sofrem algum tipo de violência, nem sempre recorrem a esse tipo de serviço.

Sem apresentar como queixa principal o ato violento que muitas vezes é o gerador do atendimento, a mulher vítima de violência carrega dentro de si as marcas das agressões que são exteriorizadas por sintomas clínicos, na maioria das vezes indecifráveis pelo profissional que não consegue encontrar um diagnóstico compatível com o problema apresentado pela paciente. Somado à violência, que se constitui em fator desencadeante de vários estados de morbidade, está a sobrecarga de trabalho a que muitas mulheres estão expostas ao assumir a responsabilidade total pelo sustento da família, tendo, ainda, de responder pela educação dos filhos e os afazeres domésticos. É necessário compreender que o atendimento na unidade de saúde não pode resumir-se a uma prática medicalizadora, limitada à prescrição de analgésicos e tranqüilizantes, mas é necessário que haja o compromisso de considerar os aspectos sociais que se acham relacionados com o processo de adoecer, respeitando as peculiaridades de cada ser humano. O uso de instrumentos que sejam capazes de rastrear situações como as que foram relatadas pelas mulheres deste estudo, certamente facilitará a atuação dos diversos profissionais que têm a oportunidade de atender essas mulheres que recorrem aos serviços de urgência e emergência em busca de ajuda.

 

Agradecimentos

Aos estatísticos Carlos Antonio de Souza Teles Santos no planejamento amostral e Maria da Conceição Chagas de Almeida que colaborou na montagem do banco de dados, às assistentes sociais Alessandra de Oliva Milani, Maria da Vitória Mendes Oliveira e Sonildes Ferreira Almeida que atuaram como pesquisadoras auxiliares.

 

Referências

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Recebido em 9 de julho de 2003
Aprovado em 2 de outubro de 2003

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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