ARTIGO/ARTICLE

 

Sexualidade e prevenção de DST/AIDS: representações sociais de homens rurais de um município da zona da mata pernambucana, Brasil

 

Sexuality and STD/AIDS prevention: social representations by rural men in a county in the Zona da Mata region in Pernambuco, Brazil

 

 

Maria de Fátima Paz Alves

Departamento de Ciências Domésticas, Universidade Federal Rural de Pernambuco. Rua D. Manoel de Medeiros s/n, Recife, PE 52171-900, Brasil. fatimapalves@hotmail.com

 

 


RESUMO

Neste trabalho analisamos as concepções de homens rurais residentes na zona da mata pernambucana sobre suas práticas sexuais e a prevenção de DST/AIDS. Ele baseia-se numa metodologia de natureza qualitativa, tendo sido entrevistados 22 homens. Os resultados indicam que a primeira relação sexual destes apresenta um caráter de aprendizado, sendo marcada, por vezes, pela violência. Que eles fazem distinção entre mulheres "de casa e da rua", reconhecem o desejo feminino e valorizam a reciprocidade nas relações sexuais, diferenciando o sexo que se faz com distintas categorias de mulheres. Sete homens relatam experiências homoeróticas na adolescência, atribuídas à imaturidade, que não afetam a identidade heterossexual. O uso do preservativo, percebido negativamente, é inconstante e irregular, concorrendo com o conhecimento da parceira. As DSTs são pouco temidas ao passo que a AIDS é associada à morte, não vendo-se os entrevistados sob risco de contraí-la. Ambigüidades presentes no discurso, aliadas a uma atuação pouco eficaz dos serviços de saúde e campanhas de prevenção, evidenciam um elevado nível de exposição ao risco de contrair DST/AIDS por parte dos entrevistados e suas/seus parceiras/os.

Palavras-chave: Sexualidade; Comportamento Sexual; Doenças Sexualmente Transmissíveis


ABSTRACT

This study analyzes the concepts displayed by rural men in the Zona da Mata region in the State of Pernambuco, Brazil, concerning their sexual practices and STD/AIDS prevention. The study adopts a qualitative methodology, having interviewed 22 men According to the interviews, their first sexual intercourse is characterized as a learning experience and is sometimes marked by violence. They make a distinction between the "woman at home" and "street women"; they acknowledge women's sexual desire and value reciprocity in sexual relations, differentiating between the kinds of sex they have with different categories of women. Seven men report homoerotic experiences during adolescence, which they ascribe to immaturity, not affecting their heterosexual identity. Condom use, perceived in a negative light, is inconstant and irregular, inversely proportional to knowing the female partner. STDs in general inspire little fear, while AIDS is associated with death; the interviewees do not see themselves at risk of acquiring HIV. Ambiguities in the men's discourse, together with a basically ineffective approach by health services and preventive campaigns, reveal a high level of exposure to the risk of contracting STDs/AIDS among the interviewees and their female or male partners.

Key words: Sexuality; Sex Behavior; Sexually Transmitted Diseases


 

 

Introdução

Neste trabalho apresentamos e discutimos as representações sociais de homens pobres residentes na zona da mata de Pernambuco sobre suas práticas sexuais e de prevenção de DST/AIDS, destacando a forma como eles concebem as vivências masculinas e femininas neste contexto. O trabalho visa a contribuir no sentido de se obter um conhecimento, ainda que inicial, sobre a cultura sexual deste grupo (Parker, 1994), e tem por base pesquisa realizada num município da zona da mata de Pernambuco. A zona da mata pernambucana é formada por uma faixa de terra que fica entre o litoral e o agreste do estado, suas terras férteis têm sido ocupadas desde o início da colonização portuguesa com o plantio de cana-de-açúcar, embora no século XX tenha havido significativa mudança em sua organização econômica e social (Garcia Jr., 1990).

Os estudos que focalizam homens apóiam-se em geral na crítica feminista e incorporam-se aos estudos de gênero, detendo-se, em grande parte, nas formas e significados do ser homem em diferentes contextos sociais, enfatizando a diversidade de modelos de masculinidade (Connel, 1995, 1997; Kimmel, 1997, 1998; Vale-de-Almeida, 1995).

Neste trabalho, centramo-nos numa concepção plural do masculino, entendido como variável em função de cultura e subcultura, ao longo do tempo, distinguindo-se por raça, etnia, classe social, idade, opção sexual, nacionalidade e posição na ordem mundial. Considerando estas distinções, na análise procuramos identificar os aspectos característicos dos modelos centrais de masculinidade localmente constituídos, que servem de referência para os homens (Connel, 1995, 1997; Vale-de-Almeida, 1995). Neste trabalho nos detemos na análise de homens que grosso modo se assemelham enquanto categoria social, não tomando como objeto de análise a relação entre estes e outras categorias de homens, como patrões ou superiores.

A idéia de que o gênero informa ou mantém relação estreita com a vivência e representação da sexualidade por homens e mulheres tem sido demonstrada em diversos estudos. Eles demonstram que isto se dá desde a formação das identidades, das expectativas em relação ao comportamento sexual, condicionando à trajetória das carreiras sexuais, onde a negociação não se desloca das relações assimétricas entre estes/as (Heilborn, 1996, 1999; Knauth, 1999; Leal & Boff, 1996; Monteiro, 1999; Vilela & Barbosa, 1998).

Abordamos a sexualidade com base no enfoque construtivista, que problematiza a universalidade do instinto sexual, apreendido como uma construção social e histórica de relações que atendem a múltiplos sentidos e finalidades (Heiborn, 1999; Vance, 1995).

Diversos estudos sobre a sexualidade masculina no Brasil destacam que ela é representada por homens e mulheres como instintiva, mais próxima da natureza, o que pede sua satisfação imediata, justificando contatos sexuais múltiplos e extraconjugais. É relacionada à genitalidade, o que se evidencia na importância no ato sexual, do funcionamento na relação sexual, assim como de qualquer distúrbio neste, principalmente para os homens; relação sexual sendo sinônimo de penetração (Heilborn, 1996, 1999; Leal, 1996; Nascimento, 1998; Parker, 1994; Vilela, 1998).

Parker (2000:80) destaca como característica mais marcante da sexualidade latino-americana a "cultura do machismo", definida como "o complexo sistema ideológico que organiza as relações de gênero hierarquicamente, estabelecendo relações de poder e domínio dos homens sobre as mulheres". Estas relações organizam-se com base em noções arraigadas de masculinidade, associadas à atividade, feminilidade e à passividade. Nas classes populares principalmente, segundo ele, não há o reconhecimento social das identidades "modernas", que demarcam as noções de homossexualidade e heterossexualidade.

A difusão da AIDS mais recentemente (anos 90) tem sido vista como produto de fatores políticos, econômicos sociais e culturais (Daniel & Parker, 1991; Parker, 2000). Nesta perspectiva, se ultrapassa a idéia inicial de que as informações sobre a infecção por HIV e as formas de transmissão evocariam uma proteção individual e adoção de medidas eficazes de prevenção.

Destaca-se em diversos contextos a concepção da AIDS como "doença do outro" (Alves, 2001; Knauth 1998, 1999; Loyola, 1994), numa tentativa de auto-exclusão e transferência dos riscos para fora, condizente com uma não preocupação com a prevenção. Enquanto em outros, verifica-se sua banalização (Knauth, 1998, 1999).

Ressalta-se ainda a falta de prioridade dada a homens heterossexuais nas estratégias de prevenção ao HIV (Vilela, 1998), relacionada a uma introjeção da lógica de gênero na abordagem a estes. Para Vilela (1998), os homens heterossexuais não se percebem como minorias, nem se sentem impelidos a lutar por seus direitos, inclusive sexuais. Também não se vêem como "grupo de risco", termo que conduz a se pensar seu oposto: "grupo sem risco", "os normais", cujo modelo é o casal heterossexual, no qual o homem tem ampla liberdade para exercer sua sexualidade.

Neste trabalho, partindo destas reflexões, buscamos uma compreensão do modo como homens rurais do contexto investigado concebem suas práticas sexuais e entendem a prevenção de DST/AIDS. Acreditamos que seus resultados possam melhor subsidiar a abordagem desses homens, levantando questões que suscitem novos estudos com outros grupos.

 

A pesquisa

Para a concretização dos objetivos propostos foram utilizadas técnicas de natureza qualitativa, sendo a principal delas a entrevista semi-estruturada. Segundo Minayo (2001), a abordagem qualitativa em pesquisa responde a questões muito particulares, focalizando um universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, atendo-se a fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de varáveis.

O trabalho tem por base 22 entrevistas realizadas entre outubro e dezembro de 2001, com homens residentes na zona rural do Município de Vitória de Santo Antão, localizado a 45,1km do Recife. Mais precisamente em três localidades da zona rural deste: Cananéia (área de características camponesas, desapropriada para assentamento na década de 60), Engenho Cacimbinha (onde funciona uma usina de açúcar) e Engenho Pirituba (engenho de "fogo morto", onde só se planta cana na atualidade). Foram adotados nomes fictícios para as localidades e para os entrevistados.

Também foi realizada observação participante focalizando o cotidiano e as relações entre os gêneros nestas localidades com objetivo de dar maiores subsídios para a contextualização dos dados obtidos pelas entrevistas.

O Município de Vitória de Santo Antão localiza-se na zona da mata centro de Pernambuco, tem uma população de 121.296 habitantes, residindo na zona rural cerca de 26% de sua população (21.925).

A principal fonte de renda da população provém do setor agropecuário (21,5%), do comércio (21,3%) e da prestação de serviços (18,9%). Quanto à atividade agropecuária predomina a horticultura (44,5%), destacando-se ainda o cultivo da lavoura temporária (24,6%) e da lavoura permanente (18,7%). O município foi escolhido, considerando além do significado do número de casos de infecção por HIV e de contaminação pelas DSTs (Pernambuco, 2000), a facilidade de acesso, sua importância dentro da zona da mata e as características de heterogeneidade de sua economia.

As entrevistas foram realizadas em sua maioria (19) por um pesquisador homem, sendo as restantes (3) feitas pela autora deste trabalho. A impossibilidade momentânea da pesquisadora concorreu no sentido de uma maior presença do pesquisador, o que, aliado a outros elementos relativos ao seu perfil de homem jovem, estudante, favoreceu uma maior abertura e espontaneidade na interação com os entrevistados.

Para efeito da análise nos valemos da noção de representações sociais, entendidas como uma síntese entre o pensamento individual e o coletivo, composta de valores e noções que conferem aos indivíduos as formas de se orientarem no meio social e material, dominando e apreendendo o sistema em que vivem (Guareschi, 1995). Bozon (1995) as concebe como primeira camada da percepção social. Nela encontram-se categorias de classificação, imagens, símbolos que organizam as relações dos indivíduos com a natureza e entre si, traduzindo-se numa visão naturalizada do mundo. Representações sobre práticas sexuais são concepções sobre a concretização do desejo sexual, que incluem atitudes, pessoas, locais e circunstâncias relacionadas à experiência sexual no contexto vivido (histórico, cultural, institucional) (Costa, 1996; Giami, 1998).

Caracterização dos entrevistados

Todos os entrevistados exercem algum tipo de atividade relacionada ao campo ou, quando não, residem no campo e já desenvolveram. Onze deles trabalham como assalariados rurais, oito se identificam como agricultores (dispondo ele ou a família de uma porção de terra para plantio), um é agente de saúde, um é aposentado e um é servente. Cinco dos agricultores e dois dos trabalhadores rurais declaram ter outra ocupação paralela.

As únicas modalidades de trabalho com carteira assinada no campo são as que se relacionam ao trabalho na cana. Mesmo assim, muitos homens trabalham com contrato temporário, principalmente os mais jovens. Na época da safra, entretanto, há uma maior demanda por mão-de-obra, contratando-se homens de outros municípios.

Considerando o desemprego existente nas localidades, há homens que vão trabalhar em outras atividades na cidade. Outros, mais raramente, chegam a migrar temporariamente para trabalhar em Recife, quase sempre na construção civil. Algumas famílias vivem da aposentadoria ou pensão de um familiar mais velho.

A maioria dos informantes são jovens (13), encontrando-se na faixa etária entre os 18 e 30 anos. Sete têm entre 30 e 35 anos e dois mais de 35 e menos de 40 anos. Doze são solteiros, nove são casados (dois homens encontram-se no segundo casamento) e um está separado no momento.

De uma forma geral é baixa a sua escolaridade. Só dois concluíram o Ensino Fundamental II e apenas um chegou a concluir o Ensino Médio, havendo entre eles dois analfabetos. Os mais velhos entre os informantes se ressentem da falta de oportunidade para estudar, considerando que hoje é mais fácil para os jovens. Esforçam-se para que os filhos possam progredir nos estudos e possam ter as oportunidades que eles não tiveram.

Dentre os entrevistados há dez católicos, nove evangélicos e três declaram não ter religião. Entre os evangélicos figura em maior número aqueles que se dizem praticantes. O protestantismo em sua vertente pentecostal cresce nas localidades, sendo grande o número de convertidos recentemente; há também muitos simpatizantes.

A maioria dos entrevistados (19) declaram ter renda, que se situa em torno de um salário mínimo. É deles, quase sempre, a única renda da família. Em sete casos verifica-se a composição da renda por outros membros da família. Dois homens fazem referência ao fato de suas mulheres terem um emprego formal e dois de serem costureiras, apenas um, entretanto, leva em conta esses ganhos ao se referir à composição da renda familiar.

Há uma predominância de pessoas de pele escura, que se declaram morenas, o que aponta para uma remanescência negra na localidade. Historicamente, a zona da mata pernambucana está ligada ao ciclo da cana-de-açúcar no século XVI, tendo sido intenso o tráfico de escravos para esta região pernambucana durante vários séculos. A relação de poder entre senhor de engenho e escravo, posteriormente reproduzida na relação senhor de engenho-morador, ainda parece ter reflexos na atualidade. Isto se evidencia, entre outros aspectos, na forma quase sempre desconfiada do morador de engenho encarar o/a entrevistador/a ou estranho, como se tivesse sempre a temer por algo (para um maior conhecimento dessas relações historicamente construídas, ver: Garcia Jr., 1990; Heredia, 1979).

A família de origem da maior parte dos homens é do município, em geral de algum lugar da zona rural, quando não, do mesmo lugar em que residem atualmente. É comum as residências comportarem parentes de vários níveis, configurando a hegemonia das famílias extensas.

 

Sexualidade

Mais da metade dos homens (13) tiveram a sua primeira relação sexual no cabaré. Os demais, à exceção de um deles que ainda é virgem, viveram a primeira experiência sexual com alguma mulher ou "menina" da localidade ou das circunvizinhanças. Eles tinham entre 14 e 16 anos em média e foram conduzidos pelos amigos ou pelos primos, no caso do cabaré.

Os entrevistados referem-se a esta primeira experiência como um misto de prazer e constrangimento, destacando-se o nervosismo. Eles afirmam ter tido pouca ou nenhuma informação sobre o ato sexual até então, sendo os amigos (especialmente os mais velhos) a principal fonte de orientação naquele momento. Neste sentido, Welzer-lang (no prelo), destaca a importância dos mais velhos na iniciação sexual dos mais jovens. Estes mostram, corrigem e modelam os que buscam acesso à virilidade, que, após os rituais necessários, se tornam também um iniciador. Também Kimmel (1997), discorre sobre a importância dos pares na construção da masculinidade, o que associa a necessidade de prova de virilidade, relacionada também ao medo de serem tidos como efeminados ou pouco homens.

"Praticamente os meninos me disseram na hora.. Olha, tu vai aí ..me ensinaram tudo já na hora que a gente foi mesmo, porque eu não sabia não, inclusive eu fui com medo, as pernas tremiam" (Antônio, 34 anos, casado).

A primeira experiência em geral não apresenta uma conotação romântica, tendo caráter de aprendizagem (apenas uma foi tida como especial). Não foi com a namorada ou alguém de quem gostassem. Da parceira não referem o nome, que parecem nem lembrar. Poderia ter sido melhor com amor, mas este sentimento não era necessário. Isto também foi observado por Heilborn (1996, 1999). Heilborn verificou que no meio popular tende a ser mais precoce a iniciação em relação às camadas médias, associando-se a um processo de integração ao mundo do trabalho e exteriorização em relação ao mundo da casa. Esta associação parece valer para os nossos investigados, apesar das dificuldades em relação ao emprego nas localidades.

A iniciação neste contexto, se configura como uma espécie de vexame que os homens (quase meninos) teriam de passar diante de uma mulher, naquele momento mais poderosa e dona da situação, e dos amigos – no caso do cabaré – esperando ansiosos à porta o veredicto desta.

O cabaré é constituído por bares com quartos anexos onde se dá a prática da prostituição. Esses bares localizam-se próximo ao centro ou na periferia do município. Nas proximidades da área onde realizamos a pesquisa, num bairro popular próximo a PE 45, há uma recente concentração desses estabelecimentos, surgidos com a decadência daqueles que se encontravam na mais tradicional rua de prostituição ("zona") da cidade. Há tempos atrás praticamente interditada para as mulheres e moças decentes, hoje faz parte do centro comercial do município. No cabaré, os homens podem beber, conversar e dançar com a mulher escolhida ou que o escolhe, antes de irem para o quarto, depois de ter pago por este. Na época da pesquisa se pagava R$5,00 pelo quarto e R$10,00 pela relação, custando mais se desejassem outro tipo de relação que não o coito genital.

As falas a seguir demonstram como se dá a primeira vez neste contexto, que pode ser visto como de uma iniciação violenta. Fachel & Leal (1999) qualificam como violenta a iniciação sexual com mulheres mais velhas ou profissionais do sexo, quando os homens se percebem como não tendo escolha. O abuso sofrido pelo homem, contudo, costuma ser percebido como contingência, um desafio ao enfrentamento.

"Com 14 anos eu fui pro cabaré e tive a minha primeira relação. Eu achei bom logo do início, não sabia nada, nunca tinha chegado perto de uma mulher. Aí ela, eu todo acanhado, a gente começou a tomar uma cerveja e tal. Aí meu primo foi e chamou uma menina aí disse: esse menino é meu primo e você tire a virgindade dele que ele é virgem. Aí quando a gente chegou lá eu fiquei com medo pensando no que ela ia fazer comigo, aí me botou dentro do quarto mesmo, aí eu me sentei no espelho da cama assim, tirei o sapato, a meia, tirei a calça, quando eu olhei assim ela já estava deitada na cama. Eu nem tirei as peças toda, eu menino novo eu nem sabia como era. Aí depois ela começou a me acarinhar, tudinho ali, a gente transando e chegamos lá..." (João, 32 anos, separado).

"Pra ser sincero, rapaz, na hora foi bom, né? Mas depois sempre que eu terminava assim que eu olhava, eu ficava com raiva porque é uma coisa que é feita sem amor, você faz só para o prazer mesmo, sexo para mim, sexo é bom não é fazer sexo é fazer amor, mas lá ia porque tinha que ir mesmo, porque em nossa época não tinha mulher aqui, aí eu freqüentava...era praticamente uma obrigação prá mim, bom não é fazer sexo, é fazer amor" (Antonio, 34 anos, casado).

Na fala acima verifica-se a separação entre sexo e sentimentos apreendida negativamente pelo entrevistado, e que parece representar mais uma prerrogativa do ser homem – que precisa exercitar o sexo, aprender, praticar – ficando entre "a necessidade e a obrigação". No contexto vivido por ele não havia alternativa, considerando os valores tradicionais vigentes e a presença de uma dupla moral de gênero. Na atualidade, apesar das transformações, especialmente no que diz respeito a uma maior vivência da sexualidade pelas mulheres, e conseqüentemente um maior acesso a parceiras, esta representação em grande medida ainda persiste.

Verifica-se uma distinção na forma como os homens denominam as mulheres com quem ficam para transar ou "pegam para quengar", ora denominando-as de "negas" – embora não tenhamos feito um recorte analítico que focalize a raça, entendemos que esse termo apresenta uma alusão clara à desvalorização da mulher negra. Embora nem sempre ele designa uma mulher considerada de cor/raça negra –, uma mulher de pouco valor: "uma prostituta" ou uma mulher fácil; ou "uma menina", vista em geral como uma moça não virgem (mãe solteira ou separada) que mantém relações sexuais sem pagamento. Contudo, diferencia-se da namorada, em princípio não pensando-se nela para uma relação estável.

Os homens apresentam uma visão negativa, em especial, da mulher do cabaré por cobrar pelo sexo, ter vários homens, fazer um sexo apressado, pensando já no próximo cliente, e por ser arriscado transar com elas, que representariam o maior perigo de adquirir doenças sexualmente transmissíveis. Mais ainda, ao que parece, pelo fato de precisarem delas, sentindo-se dependentes. Melhor mesmo é quando conseguem uma "pessoa certa" com quem ficam regularmente, estabelecendo uma relação com mais afeto. Por outro lado, a mulher de cabaré é vista como "mais carinhosa" – carinho na linguagem dos homens representa, a depender do contexto, tanto a demonstração de afeto quanto a prática de carícias mais ousadas na relação sexual –, no sentido de ser "safada", fazendo coisas que as outras meninas e negas não fazem "para conseguir o dinheiro do homem".

"As de lá são melhores, porque as de lá têm mais safadeza, na cidade elas é mais puta mesmo...Fui lá a semana passada" (Sebastião, 27 anos, solteiro).

A referência ao cabaré é feita em geral pelos homens solteiros ou casados em relação ao tempo de solteiros, e pelos evangélicos quando eram solteiros e/ou não eram crentes. Os homens casados devem preferencialmente ter relações com as suas mulheres, podendo eventualmente vir a se relacionarem com outras, de modo discreto, para não comprometer o convívio no núcleo familiar. Isto pode se dar pela ocorrência de gastos excessivos, por tornar explícito para a comunidade, ou ao "trazer doenças" para a mulher de casa, aspecto que preocupa bastante os entrevistados. Isto aparece no discurso deles especialmente quando se referem à possibilidade de virem a ter filhos doentes ou deficientes.

Os homens afirmam que a virgindade não é fundamental em sua escolha para o casamento, entretanto, a mulher não-virgem ou separada corre grande risco de ser vista como "de um e de outro". Cabe-lhe um comportamento bastante exemplar para que tenha chance de ser vista como uma mulher "direita", passível de compromisso sério.

Os critérios de escolha de uma moça para namorar evidenciam uma distinção na forma como concebem as mulheres com quem namoram ou estão casados e aquelas com quem ficam, ou seja, têm relações sexuais fora do casamento ou namoro. Para Sebastião, a moça que ele escolhe para namorar "tem que ser bem direitinha, certinha, quietinha, aquela que o cara sabe que presta". Heilborn (1999) constatou algo semelhante em suas pesquisas verificando que as categorias de classificação que opõem mulheres "fáceis", "que dão mole", e mulheres para casar ordenam o modo como os homens se aproximam das figuras femininas, em relações que são organizadas por um princípio de valorização do masculino, ainda que tendo como contraponto o feminino.

Com a moça "direitinha", o namoro deve ser só em casa, com beijinhos e amassos no máximo, enquanto se fica com as "negas". Com os evangélicos se acentuam as objeções, pois, segundo os ditames da igreja, só podem namorar "moça crente", havendo normas rígidas que devem ser seguidas. Os jovens evangélicos parecem pressionados entre a "necessidade" e os ditames da igreja. Enquanto Agenor transa com a namorada, mas acha errado, Leonardo (19 anos, solteiro), vez por outra fica com "as negas", enquanto namora uma "moça direitinha".

Verifica-se por vezes uma certa ambigüidade no discurso dos homens, pois, se é verdade que fazem separação clara entre categorias de mulheres, dizem não dar importância à virgindade, se casam com mulheres não-virgens e/ou transam com as namoradas. A constante referência a moças de família que transam e engravidam e/ou que transam com o namorado também parece deixar claro que a separação entre distintas categorias de mulheres não funciona exatamente como nos padrões tradicionais, embora estejam presentes no modelo, enquanto representações.

Para os homens, o sexo bom ou a relação prazerosa é aquela que se faz "com carinho", entendido principalmente como a presença de carícias no ato sexual, numa relação em que há reciprocidade. Por vezes o carinho é associado ao amor, expressando-se que o sexo é melhor quando os dois se gostam. Para eles, o que os homens mais gostam no sexo é de carinho, de gozar junto, de saber que a pessoa com quem transam faz gostando e não fingindo.

A relação é ruim ou o sexo não é prazeroso quando a mulher se comporta passivamente "feito uma pedra ou estaca"; quando ele faz só por fazer, sem vontade, sem gostar da pessoa, sem carinho, nem amor. Quando ela está fingindo ou só está ali porque se paga, mas não está a fim.

"Eu já fiquei com uma pessoa e achei péssimo. Ela queria e eu não, ela saiu dizendo que eu era bicha, aí eu saí com ela prá ela não me chamar de mole, mas foi péssima a relação" (Hélio).

Nesta fala verifica-se a necessidade de comprovação da masculinidade com base na sexualidade e a possibilidade de manipulação feminina neste sentido. Especialmente no caso da mulher experiente, capaz de comparar performances masculinas. O termo "mole" no contexto nordestino, para Albuquerque Jr (2000), apresenta uma das acepções mais prejudiciais à identidade de um homem, contrapondo-se à "dureza" que deve refletir sua virilidade e seu caráter.

A ousadia requerida na relação sexual associa-se mais à mulher da rua do que à de casa. O sexo praticado com a mulher de casa é concebido como diferente daquele que se faz com a mulher de fora. A de casa está disponível para atendê-lo, portanto, deve ser preservada, enquanto a da rua, especialmente a prostituta, é uma mulher que não tem significado para o homem, nem compromisso com este, por isso não merece o mesmo tratamento. Isto pode significar tanto a prática de um sexo mais variado ou mecânico, apressado, sem carinho e sem amor. Verifica-se uma representação do espaço da rua e da casa semelhante àquela de que fala DaMatta (1985), inclusive na consideração das categorias de mulheres que ocupam estes espaços e dos distintos significados atribuídos a elas pelos homens.

"Se você for fazer com a esposa, você vai fazer o máximo para não machucar ela, você tá convivendo com ela todos os dias. Agora com a prostituta não, é só ali e depois vai embora. ...Na verdade relação com prostituta nenhuma é boa, elas podem fazer o que fizer (...) porque não é com amor. A gente não tem aquele prazer, o que é mais triste é que a gente compra aquele sexo..." (Agenor, 28 anos, solteiro).

Os homens valorizam o sexo com sentimento embora considerem normal praticá-lo sem, como se fora mais uma atribuição do ser homem, em função da "necessidade", especialmente se solteiros. Para os casados representa a possibilidade de variação representando "um pulo". É comum a analogia entre o homem e "um cachorro" que pega tudo que aparece.

A prática de sexo anal ou oral em geral apresenta uma conotação negativa para os homens, este último, especialmente se for praticado na mulher. Estas modalidades de prática sexual em geral são vistas como "coisas erradas", que não convêm, sujeira e falta de higiene. Quando relatadas são associadas à mulher da rua. Os homens tendem a associar as práticas sexuais permissivas (onde tudo é permitido) às mulheres "de fora", enquanto às de casa estão associadas às práticas tradicionais, semelhante ao que foi visto por Leal & Fachel (1999). Verifica-se também a existência de tabus em relação à menstruação, concebida como doença e associada à propagação de DSTs.

Os entrevistados consideram que o desejo sexual é um atributo tanto dos homens quanto das mulheres, embora eles o tenham em maior intensidade, elas como que por compensação têm a capacidade de ter mais orgasmos, o que é traduzido na afirmação de que as mulheres gostam mais de sexo (dos homens que responderam a pergunta "quem gosta mais de sexo?": seis disseram que eram as mulheres, três os homens e sete os dois).

"A mulher, se você for atrás da cabeça da mulher ela enfraquece você porque a mulher agüenta mais transar do que o homem..." (Sérgio, 37 anos, solteiro).

Para os homens parece difícil aceitar que alguém possa não ter vida sexual. No caso do homem, principalmente, só pode estar relacionado a algum tipo de anormalidade ou doença. Caso contrário, poderá vir a resultar em doença, considerando o acúmulo.

"Eu acho que é uma pessoa doente, que deve procurar cuidar disso, porque se fosse prá o homem não ter sua companheira não existia isso, né? " (Adalberto, 30 anos, casado).

Por outro lado, sexo demais também faz mal, podendo prejudicar o desempenho no trabalho, já que é visto como uma espécie de tarefa pesada. Na relação sexual o homem "se alivia", mas se for demais esvazia-se de sua energia, ficando fraco.

"Porque a mulher ela tem capacidade de a hora que o homem quiser ela quer, agora só que o homem não pode ter aquele interesse somente ali, porque ele enfraquece, ele perde força, os nervos dele fica tremendo, eu digo porque eu passei um mês com uma mulher quase que eu morria, foi, oche, era eu deitando na cama e ela botando a perna por cima de mim...até o serviço eu deixei, eu não agüentava trabalhar, ia para o corte de cana e caía dentro das canas" (Sérgio, 37 anos, solteiro).

A sexualidade do homem solteiro se diferencia da do casado, a primeira sendo caracterizada pela liberdade, pelo desregramento em relação ao número de parceiras e de relações sexuais. A do casado caracteriza-se pela "tranqüilidade" do sexo praticado com amor e não por atração sexual, podendo eventualmente dar "um pulo da cerca".

A aceitação social da infidelidade dos homens relaciona-se à percepção da sexualidade masculina como mais próxima da animalidade, aliada à dependência econômica das mulheres. Ela é vista em geral como um fato banal, um incidente de percurso, ao contrário da feminina, que é vista como natural da condição feminina, ressaltando-se as conseqüências negativas para a mulher que venha a trair.

"A fidelidade é uma coisa boa, uma coisa certa. Porque o homem nem a mulher quer ser traído. Tudo bem que o homem tem mais liberdade porque se o homem trai a mulher ele continua com ela, mas se a mulher trai o homem ele deixa ela..." (Edílson, 26 anos, solteiro).

Apesar de ser considerada um fato grave para homens e mulheres – para elas, principalmente devido às suas conseqüências diretas e para eles por lhes ferir a honra – é freqüente nas localidades a referência à sua ocorrência. Dois entrevistados afirmam ter se separado por terem sido traídos, dois disseram se encontrar com mulheres casadas no momento e três referiram já ter se relacionado anteriormente.

"Morei com uma mulher, mas ela foi falsa, aí eu separei, passei um ano com outra, mas não deu certo, eu separei..." (Eliseu, 34 anos, casado).

"Ela me traiu com o meu melhor amigo, meu velho, meu melhor amigo..." (Cleiton, 23 anos, solteiro).

Enquanto o casado deve ter em média doze relações sexuais por mês, o solteiro não tem limite, "o que aparecer ele pega", considerando também que nem sempre tem oferta, pois não tem uma mulher disponível.

A homossexualidade é representada pelos homens como algo que fere a natureza, já que Deus fez o homem para a mulher e a mulher para o homem. Há diversos termos para denominar o "homossexual típico", sendo o mais comum "fresco" (aparecem ainda os termos frango, boiola, veado e homossexual). O fresco é caracterizado como: efeminado, que fala e anda diferente, é amigo das mulheres, se comporta como mulher e assedia os homens. O homem casado (ou reconhecido como heterossexual) que faz sexo com outro homem é denominado "gilete", porque corta dos dois lados, mantendo entretanto a identidade masculina. Se solteiro seu comportamento pode ser até certo ponto tolerável, atrelando-se à liberdade e a "necessidade de sexo", sendo considerado mais grave se é casado.

"Se ele for solteiro não tem nada a ver. Agora se for casado tem, porque ele tem sua esposa em casa e ele não precisa estar agarrando outro homem, agora se ele for solteiro a vida dele é liberta, ele vai pra onde quer, pegar quem quiser..." (Sérgio, 37 anos, solteiro).

Antes da iniciação sexual "oficial", com uma mulher, sete dos homens afirmaram ter tido experiências homoeróticas, o que justificam pelo fato de serem muito jovens e não terem plena consciência do que faziam. Atribuída à imaturidade, elas parecem não prejudicar a identidade masculina, já que à época eles eram "quase homens" (homens incompletos). Homens de verdade só após a iniciação com uma mulher. Nenhum homem declarou ter permanecido neste tipo de prática, que em geral condenam depois de adultos, sempre apontando outros conhecidos que o fizeram ou fazem, os desqualificando.

Pergunta: "Já teve alguma experiência deste tipo?".

Antônio: "Já, quando criança. Na minha época de criança".

Pergunta: "Foi antes da tua primeira vez?".

Antônio: "Foi antes, bem antes, muito antes mesmo".

Há uma distinção e uma espécie de continuum em relação ao "grau de masculinidade" na perspectiva dos entrevistados. Ele vai do homem maduro, que não deve se envolver com outro homem, se o faz é considerado "cabra safado"; passando pelo homem incompleto, o garoto, com o qual já há maior flexibilidade, indo até "o fresco", quase que desprovido de características masculinas.

A relação homoerótica é tida como diferente e qualitativamente inferior a que se tem com uma mulher. Esta seria menos mecânica, poder-se-ia ter mais intimidade, fazer carícias, beijar, enquanto na relação homossexual o coito teria como objetivo apenas chegar ao orgasmo.

A referência ao sexo com outro homem sugere um comportamento ativo, embora nem sempre isto fique claro nos depoimentos. Verifica-se uma incompatibilidade entre o estereótipo do homossexual passivo apresentado pelos homens e a gama de experiências homoeróticas de que falam. A figura do "fresco" é rara nas comunidades enquanto a referência a relações e relacionamentos homoeróticos aparece com relativa freqüência. Isto sugere que na prática elas se dão entre homens que não se enquadram necessariamente neste modelo. A lógica que orienta as relações homoeróticas revela uma independência entre as práticas sexuais e o processo de construção de identidades (Lago, 1999).

Ser homem parece não significar necessariamente ser ativo, abrindo-se o leque para outros requisitos que podem vir a fortalecer a masculinidade, como por exemplo o status ocupacional mais elevado. Por outro lado, a figura do passivo é reduzida a um estereótipo ou um "tipo ideal" pouco freqüente. Assim, diferencia-se em alguns aspectos, do sentido atribuído por Parker (1994, 1999, 2000), ao discorrer sobre as práticas homoeróticas no contexto brasileiro.

 

Prevenção de DST/AIDS

Todos os homens dizem conhecer o preservativo, identificado principalmente como método preventivo contra DSTs e AIDS. Oito deles declararam já ter usado camisinha, enquanto sete afirmam que usam na atualidade. Seu uso é visto como necessário com mulher de cabaré, pelo fato de que essas transam com muitos homens ou porque lá é obrigatório. Esta questão da obrigatoriedade nem sempre se confirma. Um entrevistado afirmou que a dona do cabaré que ele freqüenta exige que as suas funcionárias usem, mas que lá dentro elas não usam. Cinco homens declararam nunca ter usado o preservativo.

O uso da camisinha aparece como inconstante e irregular, colocando-se como possibilidade em determinadas circunstâncias e não em outras. Não é necessário o uso do preservativo segundo os homens: em casa com a esposa porque ambos são fiéis ou porque se usa o preservativo fora; com pessoa conhecida, em geral uma mulher das proximidades com a qual se fica, sem que se tenha um compromisso efetivo; quando por meio de uma espécie de teste pode-se avaliar se a parceira está saudável, observando-se um sinal, como modo de andar ou a presença de secreção na calcinha, ou fazendo um certo tipo de toque nos órgãos genitais da mulher. Neste caso, em princípio qualquer mulher seria elegível desde que passasse no teste. A idéia sobre o conhecimento da parceira aparece por vezes concorrendo com o preservativo, transa-se com camisinha ou com mulher conhecida. Esta é a representação mais comum em relação à prevenção (ou a seu empecilho) das DSTs e da AIDS. Esta característica aparece como um aspecto recorrente em vários estudos, entre os quais: Guimarães (1996), Loyola (1994) e Berquó & Souza (1994).

"Talvez se você começar a fazer algum carinho assim, como colocar o dedo e aquela pessoa se encolher pode ter alguma coisa...".(Adalberto, 30 anos, casado).

"Não usei ainda não, porque até aqui eu sempre, eu saio com as pessoas, são todas saudável, que eu conheço" (Simão, 34 anos, solteiro).

Embora no discurso se reconheça a importância do uso da camisinha para evitar DSTs e AIDS, há uma percepção negativa desta quando se considera a possibilidade de utilizá-la. Para eles, ela não permite que se sinta o gosto ou tira o prazer; pode favorecer a uma performance ruim ou fraca, levando-o a broxar; prende e retém algo que deveria ser solto e jogado no útero da mulher. Esta parece ser a representação mais forte em relação ao preservativo.

"A camisinha é um produto que você perde com tudo, que chega aquela vontade fica somente ali dentro daquela camisinha, mas se você for experiente aí você fura um buraco nela aí quando você despeja passa por aquele buraco, agora ela não sendo furada, aí fica ali, é somente tirar e jogar no mato e usar outra" (Sérgio, 37 anos, solteiro).

Verifica-se ainda a idéia de que o uso da camisinha faz mal à mulher, deixando seu útero seco, quando deveria se molhado pelo sêmen do homem.

"Também a camisinha pode prejudicar até a mulher, que nem o médico fala que pode prejudicar até a mulher, o útero dela, mas é um método para você evitar de pegar doença" (Leonel, 21 anos, casado).

O preço do preservativo não é visto pelos entrevistados como empecilho à sua aquisição. Eles o consideram barato, embora por vezes se atrapalhem na hora de dizer quanto custa, dada a falta de familiaridade. Vários referem a existência de doação de preservativos nos postos de saúde da cidade.

Alguns depoimentos revelam a existência de um contra-discurso bastante difundido entre os homens a respeito da camisinha, capaz de inibir o uso por parte dos mais jovens. Aliás, parece haver uma significativa circulação de informação, à maneira deles, também sobre DSTs, sua prevenção e tratamento, que pode ser canalizada para se pensar em estratégias de intervenção.

"Eu sei que tira o prazer porque todos me diz" (Sérgio, 37 anos, nunca usou).

Os entrevistados têm conhecimento de diversas DSTs, ou porque já tiveram ou porque conhecem outros que tiveram. Elas são identificadas, por vezes, por nomes conhecidos localmente, que nem sempre foi possível traduzir. Foram citadas: sífilis, gonorréia de sangue e de pus, capim, formigueiro, mula e crista de galo. Para o tratamento das DSTs há referência à consulta a um médico, a um farmacêutico (há um em especial bastante citado pelos informantes) ou utilização de chás ou fórmulas caseiras, comumente indicadas pelos amigos.

Todos os entrevistados já ouviram falar da AIDS. As informações que têm entretanto, nem sempre são verdadeiras ou consistentes, mostrando-se em geral muito genéricas e parciais. Em alguns depoimentos o assento e o beijo aparecem como formas de infecção por HIV. A AIDS é concebida pelos entrevistados como uma doença que não tem cura, que mata aos poucos, faz a pessoa secar, ao passo que as DSTs incomodam, mas têm remédio. Alguns entrevistados sabem que existe medicação para prolongar a vida do portador de HIV, um deles afirma ser muito caro e não estar ao alcance dos pobres.

Pergunta: "Como pega AIDS?".

"Dizem que é no beijo, né? No beijo, seringa de injeção que o hospital aplica na pessoa, no sexo também, né?" (Edécio, 35 anos, solteiro).

O homem é visto como tendo mais facilidade de pegar DSTs e AIDS, principalmente porque se relaciona com qualquer mulher, "não escolhe", "é feito cachorro". Há referência também ao fato dele não se cuidar como a mulher, e penetrar, ficar em contato com a parte interna da mulher. A mulher que tem muitos homens aparece em seguida como mais vulnerável e por último o homossexual, o que pode relacionar-se à própria negação da relação homoerótica, mesmo considerando a referência a esta como de domínio público nas localidades.

A esposa ou companheira nunca é vista como passível de transmitir DSTs ou AIDS. Em geral a prostituta é pensada como fonte de doenças – esta representação assemelha-se àquela de que fala Carrara (1994), ao discorrer sobre a transmissão da sífilis no século passado, quando a prostituta era vista como a fonte do mal –, aparecendo uma fantasia em relação a esta, bastante ameaçadora. Afirma-se que ela ao saber que está com AIDS se vingará de todos, escondendo a doença. O risco é avaliado em função do número de parceiros que se imagina que alguém teve, da quantidade.

"Se ela sentir que está com AIDS, ela não fala, mas já que eu sei que eu vou morrer vou destruir tudinho..." (Luís, 33 anos, casado).

Os entrevistados não se vêem como estando em risco em relação a DSTs e principalmente à AIDS, pois acreditam tomar os devidos cuidados, por se valerem de critérios que consideram confiáveis para a escolha das parceiras. Para eles o risco de contrair DSTs não representa algo tão grave assim, associando-se à virilidade. A AIDS, por sua vez, ainda é vista como "doença do outro" (diversos autores encontraram representação da AIDS como "doença do outro". No contexto brasileiro ver: Guimarães, 1996; Knauth, 1998, 1999; Loyola, 1994; Parker, 1994).

 

Considerações finais

As representações sociais presentes no discurso dos informantes centram-se numa concepção tradicional do lugar de homens e mulheres, destacando-se o significado do casamento e dos filhos na formação da identidade masculina madura, assim como o lugar das mulheres (em suas várias categorias) na construção e vivência desta.

Na representação sobre suas práticas sexuais e de prevenção de DSTs e AIDS, verifica-se a existência de um discurso em certos aspectos ambíguo, que por vezes gera confusão e apresenta-se como um elemento significativo na caracterização de sua vulnerabilidade à AIDS.

Como características desta ambigüidade podemos citar o reconhecimento do desejo feminino e o pouco valor da virgindade, ao mesmo tempo em que persistem estereótipos sobre o feminino e o masculino, sobre a maior intensidade do desejo masculino, visto como relacionado à necessidade. Se por um lado os homens consideram que o que dá prazer na relação é o afeto, vêem como próprio do ser homem a relação sem afeto, imbricando-se a necessidade com a obrigação.

Eles valorizam a reciprocidade e o "carinho" no sexo, ao mesmo tempo em que há uma visão bastante rígida "de com quem se faz o quê", evidente no modo como se relacionam com as várias categorias de mulheres.

Se a vida de solteiro predispõe à vulnerabilidade, a de casado – considerando a distinção de gênero no que diz respeito ao exercício da sexualidade no casamento e a inconsistência na adoção de métodos eficazes de prevenção das DSTS e da AIDS – também não se apresenta como lugar de proteção para os homens e suas parceiras.

As informações sobre a AIDS e as DSTs e sobre suas formas de prevenção e tratamento, baseiam-se num conhecimento impreciso e inconsistente. Verifica-se uma percepção negativa do preservativo, e uma visão distorcida e distante do risco em relação às DSTS e a AIDS, o que parece se relacionar diretamente com o seu não uso.

As campanhas de prevenção parecem não ter um impacto significativo sobre estes homens, talvez pela falta de conhecimento do seu universo cultural, não se utilizando de uma linguagem que os coloque a par do que é a epidemia, para eles representada pela fatalidade, na associação com a morte; estereótipo do qual se afastam. Embora pensem nos homens como aqueles que apresentam maior risco de infecção, não se colocam neste lugar, não se vêem como possíveis infectados ao tempo em que também não se utilizam de mecanismos eficientes de prevenção.

Diversas características presentes no discurso dos homens em relação à construção da masculinidade, sexualidade e prevenção das DSTS e da AIDS, deixa claro que há um elevado nível de exposição ao risco de contraí-las. O que demanda a realização de trabalhos efetivos de informação e intervenção adequados à sua realidade. O conhecimento das culturas sexuais (Parker, 1994, 2000), por meio da análise de diferentes grupos pode trazer substantivas contribuições ao planejamento e implementação de programas de prevenção de DST/AIDS.

 

Agradecimentos

A Johnny Cantarelli, pela sua significativa contribuição para realização deste trabalho, enquanto assistente de pesquisa. A Regina Barbosa e Estela Aquino, pela orientação, paciência e sensibilidade.

 

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Recebido em 16 de setembro de 2003
Versão final reapresentada em 1 de dezembro de 2003
Aprovado em 19 de dezembro de 2003

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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