ARTIGO ARTICLE
Tendência de cárie dentária em escolares de 12 e 13 anos de idade de uma mesma escola no período de 1971 a 2002, em Florianópolis, Santa Catarina, Brasil
Trends in dental caries rates in schoolchildren 12 and 13 years old in Florianópolis, Santa Catarina, Brazil, 1971-2002
João Luiz Dornelles Bastos; Lincon Hideo Nomura; Marco Aurélio Peres
Departamento de Saúde Pública, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil
RESUMO
Estimar a prevalência e gravidade de cárie dentária em escolares de 12 e 13 anos de uma escola estadual de Florianópolis, Santa Catarina, Brasil em 2002 e fazer comparações com os resultados de estudos anteriores, realizados em 1971 e 1997, no mesmo estabelecimento de ensino. Trata-se de um estudo transversal que envolveu 181 escolares. Os dados clínicos foram coletados segundo critérios propostos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) 1. O examinador passou por exercício prévio de calibração. A taxa de resposta foi de 93,8%. A concordância intra-examinador, medida dente a dente, foi alta (Kappa > 0,73). As prevalências de cárie registradas foram de 98%, 93,7% ou 80,0% e 57,4% em 1971, 1997 e 2002, respectivamente. O índice CPO-D médio variou de 9,2 em 1971, 6,2 ou 3,0 em 1997, para 1,4 em 2002, tomando-se ambas as idades em conjunto. O primeiro valor de 1997 segue o critério de Klein & Palmer 2 e o segundo, o critério da OMS 3. Entre 1971 e 2002, foi constatada redução real na prevalência e gravidade de cárie na população observada, apesar dos diferentes critérios utilizados para medi-las.
Cárie Dentária; Índice CPO-D; Saúde Bucal
ABSTRACT
The goal of this study was to identify dental caries prevalence and severity among all 12 and 13-year-old schoolchildren enrolled in a public school in 2002 and to establish comparisons with the results of studies conducted previously in the same school in 1971 and 1997. A cross-sectional study involving 181 children was performed. Clinical data were collected by one examiner under World Health Organization (WHO) 1 criteria. The examiner had been through calibration training. The project was approved by the Research Ethics Committee of the Federal University in Santa Catarina. The response rate was 93.8%. Intra-examiner agreement, on a tooth-by-tooth basis, was high (Kappa > 0.73). The prevalence rates for dental caries were 98%, 93.7% or 80.0%, and 57.4% in 1971, 1997, and 2002, respectively. The mean DMF-T index was 9.2 in 1971, 6.2 or 3.0 in 1997, and 1.4 in 2002, taking both ages as a whole. The first value from 1997 was recorded under the Klein & Palmer2 diagnostic criterion and the second according to the WHO 3 criterion. Between 1971 and 2002 there was a real reduction in caries prevalence and severity among the schoolchildren, even though different diagnostic criteria were used.
Dental Caries; DMF Index; Oral Health
Introdução
A Organização Mundial da Saúde (OMS) dispõe de informações epidemiológicas que configuram um panorama mundial de queda nos níveis de prevalência e gravidade de cárie dentária em diversos países nas últimas décadas. No Brasil, o mesmo fenômeno tem sido percebido e registrado nas últimas duas décadas 4,5.
Estudos realizados no Estado de Santa Catarina, têm apontado na mesma direção. Dois deles, realizados em escolares de 12 e 13 anos de idade de uma Escola Estadual de Florianópolis, em 1971 e 1997, registraram, por meio de metodologias semelhantes e mesmo critério de diagnóstico, queda da ordem de 32,6% na gravidade da doença 6.
É sabido que, ao analisarmos tendências temporais de experiência de cárie em diversas populações, parte da redução observada pode ser atribuída à mudança dos critérios de diagnóstico para cárie dentária, como foi constatado em outros estudos 7.
Seguindo as recomendações preconizadas pela OMS 1, um terceiro estudo dirigido à mesma população foi realizado em 2002, cinco anos após o último registro.
A partir da observada tendência de redução da cárie na dentição permanente de crianças, torna-se necessária a manutenção de um sistema de vigilância e monitoramento da condição de saúde bucal.
O objetivo deste estudo consiste em conhecer e comparar a prevalência e gravidade da cárie dentária de todos os escolares de 12 e 13 anos de idade, matriculados na Escola Estadual de Ensino Básico Padre Anchieta, em Florianópolis no ano de 2002, com os resultados obtidos nos estudos de 1971 e 1997.
Métodos
A população de estudo consistiu de todos os alunos de 12 e 13 anos completos no momento da pesquisa (n = 181) e matriculados na Escola Estadual de Ensino Básico Padre Anchieta, do Município de Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, em 2002.
Para conhecer a prevalência e gravidade de cárie dentária foram utilizados índices e critérios preconizados pela OMS em 1997 1.
A equipe de trabalho foi composta por um examinador e um anotador. O examinador passou por exercício de calibração prévio ao trabalho de campo, segundo metodologia descrita em outra publicação 8. Para aferir a reprodutibilidade diagnóstica, 10% da população do estudo foi examinada duas vezes. Adotou-se o teste Kappa, tomando-se o dente como unidade de análise para aferir a concordância intra-examinador.
Foram enviados aos pais/responsáveis dos escolares termos de consentimento que explicavam os objetivos da pesquisa e as características do exame. Ao final, constava uma solicitação por escrito para permissão de participação da criança no estudo.
Todos os dados coletados foram digitados e analisados por meio do programa SPSS for Windows versão 10.0. Por intermédio do mesmo, a estatística descritiva dos índices de cárie foi calculada, juntamente com os respectivos intervalos de confiança (95%).
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética para Pesquisas com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina.
Resultados
De um total de 181 escolares, 169 consentiram em participar da pesquisa (93,6% de taxa de resposta). Metade das perdas foram decorrentes de recusas e a outra metade em razão de transferência para escolas de outras localidades.
Os exames clínicos foram conduzidos por um pesquisador, que obteve concordância de diagnóstico intra-examinador alta (menor valor de Kappa igual a 0,73; sendo a maioria dos resultados igual a 1).
A distribuição por idade nos três momentos da pesquisa pode ser observada na tabela 1, a qual aponta em 1971, 127 crianças (62,9%) com 12 anos e 75 (37,1%) com 13 anos de idade. Em 1997, havia 101 crianças (57,7%) com 12 anos e 74 (42,3%) com 13 anos de idade. Em 2002, 88 crianças tinham 12 anos (52,1%) e 81 tinham 13 anos de idade (47,9%).
A distribuição por sexo em 1997 foi de 50 meninos (49,5%) e 51 meninas (50,5%) com 12 anos e 40 meninos (54,1%) e 34 meninas (45,9%) com 13 anos. Em 2002, constavam 77 meninos (45,6%) e 92 meninas (54,4%). A distribuição por sexo referente ao ano de 1971 não estava disponível (Tabela 1).
Devido à inexistência de diferença estatisticamente significante entre a prevalência e gravidade de cárie dentária de acordo com a idade e sexo das crianças (Tabela 2), optou-se por apresentar os resultados em conjunto.
Comparando-se as prevalências de cárie registradas, pôde-se perceber que a mesma apresentou entre 1971 e 1997, os valores de 98% (96% 100%) e 93,7% (90% 98%), segundo o critério proposto por Klein & Palmer em 1937 2. No último período observado, entre 1997 e 2002, declinou de 80% (74% 86%) para 57,4% (50% 65%), segundo os critérios propostos pela OMS em 1986 e 1997 1,3 (Tabela 3).
O índice CPO-D registrado em 1971 foi de 9,2 (intervalo de confiança não disponível), chegando a 6,2 (5,157,35) em 1997, segundo o critério proposto por Klein & Palmer em 1937 2. Este período conta com uma redução da ordem de 32,6% na gravidade de cárie. Se forem considerados os critérios da OMS, o segundo período, entre 1997 e 2002, passou do valor de 3,0 (2,673,33) no primeiro registro, para 1,4 (1,141,64) em 2002. A redução observada no período foi de 53,4% (Tabela 4). A figura 1 nos apresenta a tendência do índice CPO-D ao longo do período.
Com relação à gravidade da cárie, o componente P foi aquele que obteve maior redução, seguido pelo componente C e pelo componente O, quando comparamos com os dados de 1971 (97,4%; 91,7% e 29,0%, respectivamente).
Discussão
O presente estudo registra uma real tendência de declínio da prevalência de cárie e do índice CPO-D na população estudada, entre os anos de 1971 e 2002. Mesmo que analisados segundo critérios de diagnóstico diferentes, a prevalência e o índice CPO-D declinaram cerca de 50% e 85%, respectivamente, no período observado (Tabela 4).
Uma redução anual de cerca de 2,7% foi detectada para a gravidade de cáries. Entre o período de 1971 a 1997, a redução anual observada correspondeu a 1,2%; enquanto que entre o período de 1997 a 2002, foi de 10,7%.
Dentre os componentes do índice CPO-D, o componente C apresentou a redução porcentual mais significativa. Nos dois primeiros registros, preenchia quase totalmente o valor do índice. No último, passa a representar pouco menos da metade do mesmo.
O componente P correspondeu, nos anos de 1971 e 2002, a cerca de 5% do índice CPO-D. Apenas em 1997 participou com valor ainda menor, de 0,5%. Estes dados evidenciam a queda da severidade da cárie e, conseqüentemente, a diminuição das perdas dentárias decorrentes.
O componente O manteve sua participação em torno de 10% nos dois primeiros registros e, no último, passou a ser cerca de 47% do índice CPO-D, o que indica um aumento relativo da cobertura assistencial.
Em âmbito internacional, resultados semelhantes também são encontrados. Alguns deles encontram-se organizados na Tabela 5. Tanto reduções porcentuais para todo o período observado quanto reduções anuais variam entre 45% 77% e 1,5% 4,4%, respectivamente.
No Brasil, um estudo semelhante, que envolveu a faixa etária de 7 a 12 anos de idade de escolas da rede estadual de ensino no Município de Piracicaba, São Paulo, após 25 anos de acompanhamento (1971 a 1996), apontou uma redução da ordem de 77% no índice CPO-D para a idade de 12 anos 9. A redução anual registrada para a mesma idade foi de aproximadamente 3,1%. A prevalência de cáries atingiu 61% em crianças de 12 anos em 1996 9.
Este e outros estudos apresentados na tabela 6, confirmam o padrão relatado na literatura de melhoras significativas no índice de ataque de cárie em crianças de cidades brasileiras durante os últimos anos 5.
Bacabal, no Maranhão, após 11 anos de fluoretação das águas de abastecimento (1976 a 1987), apresentou uma redução de aproximadamente 61% na gravidade de cárie para a população de 12 anos de idade 5. Em Londrina, Paraná, houve cerca de 50% de redução no índice CPO-D em crianças de 12 anos no período de 1981 a 1992 (Ogawa, 1994 apud Pinto 5).
Hipoteticamente, dentre as causas atribuídas à redução da cárie dentária no Brasil estão a fluoretação das águas de abastecimento público, a adição de compostos fluoretados aos dentifrícios, a descentralização do sistema de saúde e a criação e implantação de programas preventivos 9,10.
O desenho deste estudo não permite a avaliação das causas da redução da prevalência de cárie dentária. Para o primeiro período (1971 a 1997), no qual houve menor taxa de redução anual quando comparada com o período 1997 a 2002, esta poderia ser explicada pelo menor período de exposição da população à água fluoretada, implantada no município em 1982, e a disponibilidade de dentifrícios com flúor a partir do final da década de 80. No período estudado houve uma efetiva melhora nas condições de vida da população da localidade. Em 1971, a escola situava-se em uma área caracteristicamente periférica da cidade, a qual tornou-se, em 1997, uma região com perfil residencial de classe média e próxima do centro urbano da cidade 6.
Com relação ao segundo período (1997 a 2002), a comercialização em larga escala dos dentifrícios fluoretados 10, a fluoretação das águas de abastecimento e a melhoria das condições de vida no município concorreram para uma maior taxa de redução anual na gravidade de cáries. Florianópolis, em 2003, ocupava a terceira posição dentre os municípios com menor índice de exclusão social no Brasil 11.
Não houve nenhum outro programa preventivo à base de fluoretos aplicado à população de referência do estudo no período observado. Isto afasta, neste caso particular, a hipotética influência de programas preventivos.
Apesar da existência de grande número de estudos envolvendo a faixa etária de 12 anos, a comparação dos resultados entre si deve ser realizada de maneira cautelosa. Estudos que adotam metodologias diferentes, índices e critérios de diagnóstico diversos, não deveriam ser comparados de maneira desatenta 6,7.
No desenvolvimento do presente estudo e daqueles anteriormente citados (1971 e 1997), tomou-se o cuidado de adotar procedimentos metodológicos semelhantes. A população pôde ser examinada pela mesma pesquisadora nas duas primeiras ocasiões e, somente em 2002, os exames foram conduzidos por um examinador diferente, o qual obteve índice de concordância intra-examinador alto. Entretanto, ambos os examinadores foram calibrados pelo mesmo examinador padrão, um dos autores do presente artigo.
Cabe salientar que os resultados aqui apresentados não podem ser generalizados para toda a população de escolares de 12 e 13 anos de idade de Florianópolis. Ainda assim, a escola pode ser utilizada como sentinela das condições de cárie apresentadas pelo referido município, como ocorre em outros países 12. Novo estudo deverá ser realizado em 2005 para a continuidade da análise de tendência temporal da doença.
Colaboradores
J. L. D. Bastos participou como autor principal, sendo responsável pelo planejamento do estudo, coleta de dados clínicos e não clínicos, digitação dos dados em banco de dados, colaboração na análise dos dados e confecção do artigo científico. L. H. Nomura colaborou nas etapas de planejamento do estudo, registro dos dados clínicos e não clínicos em fichas específicas, digitação dos dados em banco de dados, análise dos dados e revisão crítica do artigo. M. A. Peres contribuiu na concepção e planejou o estudo, analisou os dados, leu criticamente e contribuiu para a redação do manuscrito.
Agradecimentos
J. L. D. Bastos agradece a concessão da bolsa de Iniciação Científica PIBIC-CNPq no período de Agosto de 2002 a Julho de 2003.
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Endereço para correspondência
Marco Aurélio Peres
Departamento de Saúde Pública, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal de Santa Catarina
Av. Antão 353, Florianópolis, SC
88025-150, Brasil
mperes@ccs.ufsc.br
Recebido em 27/Mai/2003
Versão final reapresentada em 29/Ago/2003
Aprovado em 15/Set/2003