DEBATE DEBATE

 

Debate sobre o artigo de Delma Pessanha Neves

 

Debate on the paper by Delma Pessanha Neves

 

 

Marluce Miguel de Siqueira

Núcleo de Estudos sobre o Álcool e Outras Drogas, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Brasil. marluce@npd.ufes.br

 

 

O artigo de Delma Pessanha Neves, Alcoolismo: Acusação ou Diagnóstico?, representa uma tentativa de refletir o problema como objeto sociológico, de forma articulada à definição de patologia ou ao desrespeito a regras morais. A autora apresenta a temática à luz dos dilemas éticos e epistemológicos enfrentados por antropólogos, bem como por meio dos seus resultados da investigação empírica sobre o assunto.

A minha resposta ao desafio proposto por Cadernos de Saúde Pública neste debate foi formulada dentro de um quadro teórico e metodológico, o qual sustenta meu trabalho teórico-prático na prevenção e tratamento do alcoolismo, preservando as características interdisciplinar, extra-hospitalar e interinstitucional no nosso cenário prático, o Programa de Atendimento ao Alcoolista (PAA) do Hospital Universitário Cassiano Antonio Moraes (HUCAM) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), ao longo destes 18 anos de enfrentamento da questão 1,2,3,4 e desde sempre assumindo o caráter construtivo na minha reflexão.

Neste sentido, a presente análise crítica não visa a abranger os múltiplos aspectos envolvidos na temática e, alguns deles mencionados por Neves, mas principalmente corroborar com a necessidade de clarificar os conceitos empregados neste artigo uso problemático de bebidas alcoólicas ("abuso do álcool") e alcoolismo ("síndrome de dependência do álcool" ­ SDA) 5,6.

Os problemas relacionados ao consumo de álcool nem sempre foram os mesmos e nem sempre tiveram a mesma dimensão, pois a relação do homem com a bebida vem mudando, principalmente nos últimos séculos 7.

Nunca houve um período de "temperança" absoluta, mas até o final do século XVII o consumo de álcool era visto como uma atividade social. As cidades e vilarejos eram aglomerações de pessoas bem menores; tinham uma estrutura e organização sociais mais simples e, por isso mesmo, menos problemas. Ainda não havia a indústria da bebida, geralmente de produção caseira. Apesar da pouca legislação existente, havia fatores sociais e econômicos suficientes para controlar o uso "inadequado" da bebida, a embriaguez em larga escala. A embriaguez era vista como sendo não um problema da bebida, mas do indivíduo: um defeito moral, de caráter, o levava àquilo, e contra tais casos se levantavam os pregadores religiosos. Mas a bebida ainda era vista como "um néctar divino" pela maioria das pessoas 8. Nas primeiras décadas do século XX, o alcoolismo ganha o status de doença, fornecido pela classe médica e pela associação dos Alcoólicos Anônimos. Os problemas associados ao álcool que mereciam preocupação eram aqueles relacionados ao colapso moral do bebedor crônico. Esses problemas eram vistos como não decorrentes de uma fraqueza moral do bebedor nem do poder aditivo do álcool em si, mas de alguma "química" pouco compreendida que ocorria entre a substância e certos bebedores. O álcool é inócuo para a maioria das pessoas, mas uma minoria não pode usá-lo sem sucumbir ao alcoolismo ­ uma doença para a qual não se espera cura além da completa abstinência. O problema é que tal concepção permite apenas "tratar" daqueles que são dependentes do álcool, deixando-se de lado a vasta maioria que bebe e que também apresenta diversos problemas relacionados ao consumo de álcool 9.

A partir da última década do século XX, o consumo de álcool começa a ser visto como uma questão de saúde pública, devido a extensão dos danos que acarreta, constituindo uma séria ameaça à segurança pública (danos à família, violência e crime, e segurança no trânsito, por exemplo). Políticas do álcool passam então a ser vistas como algo que diz respeito a todos os cidadãos cuja segurança possa estar em risco 10. Também a partir da última década, diversos estudos vêm demonstrando que é possível combater tais problemas por meio de políticas públicas adequadas 11.

As políticas públicas em relação ao álcool geralmente partem de uma concepção equivocada, fruto da idéia de alcoolismo do século anterior, que não encontra fundamento epidemiológico: a de que efeitos adversos do consumo de álcool afetam apenas a pequena minoria da população que bebe de maneira particularmente pesada. Esta minoria é vista como uma população à parte, em relação àqueles que não bebem pesadamente. Também existe uma tendência de focalizar apenas os problemas crônicos causados pelo consumo de álcool, negligenciando suas conseqüências adversas agudas.

Na verdade, há um amplo espectro de problemas relacionados ao consumo de álcool que vão muito além do conceito médico restrito de alcoolismo. Problemas podem surgir a partir de um único episódio de ingestão alcoólica ou de uma repetida ingestão pesada. Tais problemas podem ser de natureza física, psicológica ou social 12.

Finalmente, agradeço a Neves a oportunidade que proporcionou-me de repensar a temática considerada, bem como o estímulo que este seu artigo oferece a quem se interessa pela pesquisa do alcoolismo no âmbito das ciências sociais.

 

1. Macieira MS, Gomes MPZ, Garcia MLT. Equipe interdisciplinar. Informação Psiquiátrica 1992; 11:130-1.

2. Macieira MS, Gomes MPZ, Garcia MLT. Programa de atendimento ao alcoolista do HUCAM-UFES. J Bras Psiquiatr 1993; 42:97-109.

3. Macieira MS, Gomes MPZ, Garcia MLT, Nakamura-Palacios EM. Núcleo de estudos sobre o álcool e outras drogas ­ NEAD. Revista HUCAM 2002; 11:10-4.

4. Garcia MLT, Gomes MPZ, Macieira MS, Couzi CM, Gonçalves PL, Silvestre J. Programa de atendimento ao alcoolista: 15 anos de ensino, extensão e pesquisa. Revista HUCAM 2001; 9:12-5.

5. Organização Mundial da Saúde. Classificação de transtornos mentais e de comportamento ­ CID-10. Descrições clínicas e diretrizes diagnósticas. Porto Alegre: Artes Médicas; 1993.

6. American Psychological Association. DSM IV ­ Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. 4a Ed. Porto Alegre: Artes Médicas; 1995.

7. Ministério da Saúde. A política do Ministério da Saúde para atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília: Ministério da Saúde; 2003.

8. Moore MH, Gerstein DR, editors. Alcohol and public policy: beyond the shadow of prohibition. Panel on alternative policies affecting the prevention of alcohol abuse and alcoholism. Washington DC: National Academy Press; 1981.

9. Laranjeira R, Romano M. Políticas públicas para o álcool. São Paulo: Universidade Federal de São Paulo; 2001.

10. Holder HD. Alcohol use and a safe environment. Addiction 1997; 92 Suppl 1:S117-20.

11. Casswell S. A decade of community action research. Subst Use Misuse 2000; 35:55-74.

12. World Health Organization. A summary of alcohol policy and the public good: a guide for action. Eurocare ­ Advocacy for the prevention of alcohol related harm in Europe. Geneva: World Health Organization; 1995.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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