DEBATE DEBATE

 

Debate sobre o artigo de Delma Pessanha Neves

 

Debate on the paper by Delma Pessanha Neves

 

 

Margarita Antonia Villar Luis

Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, Brasil. margarit@glete.eerp.usp.br

 

 

No artigo Alcoolismo: Acusação ou Diagnóstico?, Neves discorre sobre o uso de bebidas alcoólicas registrando a indevida atenção que tem sido dada a esse fenômeno ao mesmo tempo em que evidência a limitação da perspectiva tradicional, explicativa da questão do beber problemático, que embora utilize o conhecimento de várias disciplinas (biologia, psicologia, sociologia), ao contrário de fazer surgir um conhecimento integrado a respeito, fornece uma visão fragmentada que tornou secundários aspectos importantes. Ressalta a ênfase na imagem negativa do bebedor e do desenvolvimento da concepção do alcoolismo enquanto doença, ideário esse consolidado no movimento de Temperança (século XIX), ocorrido com mais intensidade nos Estados Unidos, num momento de profundas transformações sociais. Nesse contexto, o álcool passou a ser o responsável pelos problemas sócio-econômicos do país e a abstinência do mesmo, a solução. Lideranças mobilizaram a população em movimentos de massa contra o álcool, num processo de radicalização que culminou com a aprovação da Lei Seca que permaneceu em vigor de 1919 a 1933 1.

Era de se esperar que o foco das investigações fosse a embriaguez enquanto doença, doença da vontade do indivíduo, e como bem coloca a autora do artigo, de certa forma, isso foi direcionando o interesse dos pesquisadores para a produção de conhecimento dando prioridade ao aspecto da patologia individual e descuidando do ato de beber em si, enquanto um comportamento socialmente construído, estimulado e controlado segundo padrões culturais das sociedades.

O artigo discute, dentro de uma perspectiva etnográfica, o beber, o espaço onde ele geralmente se dá e a embriaguez, partindo das visões dos próprios atores sociais nos locais por eles freqüentados: o bar e o grupo alcoólicos anônimos, instância essa que os acolhe e dá suporte quando outras, de alguma maneira, negam-lhes o ingresso.

Sem a intenção de esgotar a complexidade dos tópicos abordados pelo artigo, cabe refletir sobre a análise feita no texto a respeito do beber como um ato social, pois cada sociedade vai transmitindo às sucessivas gerações, num processo de aprendizado, o padrão do beber, as condições e o contexto no qual é aceito esse ato, portanto, o próprio meio estabelece as estratégias de controle definindo a forma, o como e o momento de beber, priorizando os espaços e situações do coletivo. Assim, há necessidade de adaptar o beber a algumas pautas sociais que são consideradas em maior ou menor grau por aqueles que bebem substâncias alcoólicas. Esse diferencial vai gerar os diversos significados dos termos utilizados para distinguir o usuário (bêbado, bebedor, alcoolista) e os estados em que se apresenta (alcoolização, embriaguez) revelando a maior ou menor tolerância do meio às atitudes presentes nas diferentes situações, decorrendo daí a condenação do comportamento desviante e a valorização daquele que demonstra "competência" no beber: não se alcooliza e consegue manter a produtividade. Da mesma forma, valoriza-se o que bebe em grupo, pois o consumo individualizado, conforme assinala o artigo, não é um hábito construído pela sociedade, ele surge e se acentua à medida em que o individualismo se instala como um valor no âmbito da sociedade urbana que dificulta o encontro humano e oferece uma variedade de alternativas de acesso rápido à bebida. É esse contexto que faz emergir a concepção de alcoolismo.

O artigo de Neves remete a uma análise do alcoolismo feita por Berne 2, fundamentada num modelo sistêmico social em que, baseando-se em jogos, partiu da premissa de que não existe o alcoolismo ou o alcoólico, mas um papel chamado "o alcoólico, num determinado jogo".

Esse autor não centrou a questão beber em excesso como uma anormalidade bioquímica ou fisiológica, mas por meio da análise de jogos, focalizou seu interesse nos tipos de transações sociais vinculadas ao beber excessivo. Numa experiência criou o jogo do "alcoólico", desenvolvido com cinco personagens (que podem concentrar-se no início ou fim em dois).

Nesse jogo, o protagonista é o "alcoólico", destacando-se, também, o "perseguidor" ilustrado pela figura da esposa, o "salvador" papel representado pelo profissional. O quarto ator é o "bobo" ou "ingênuo", referindo-se a personagens que o apóiam financeiramente (a mãe ou o dono do armazém que lhe dá crédito). Também pode estar presente no quarto papel, a figura do "incitador", o bom sujeito, que oferece bebida sem que lhe seja pedida. Nesse jogo há, ainda, um "profissional auxiliar", que é o dono do bar ou o balconista, que desempenha o quinto papel: a "conexão", fonte direta de provisão de álcool. A diferença entre este e os demais "jogadores" é que ele pode e sabe quando interromper o jogo, ou seja, no momento em que ele se nega a servir bebida ao alcoólico. Com isso cessa a fonte provedora, a menos que ele vá em busca de outra "conexão" mais tolerante.

Por meio desse estudo, Berne 2 procurou mostrar que a dinâmica do alcoolismo está menos relacionada a motivações e características do alcoólico do que às interações entre aqueles que ocupam as cinco posições interpessoais descritas no jogo. Para esse autor, o comportamento do alcoólico é possível de ser compreendido apenas quando é percebido como parte integrante de um sistema interpessoal.

Considerando o conteúdo do artigo em análise, percebe-se que esse sistema interpessoal desenvolve-se no espaço cultural dos indivíduos de uma dada sociedade.

A breve síntese das principais colocações da autora no artigo, juntadas a outros dois autores, compõem um contexto propício à reflexão.

Direcionando o olhar do interno para o externo, ou seja, da discussão teórica para o usuário de álcool, inevitavelmente surge a questão: considerando a existência de estudos evidenciando que o beber pressupõe um contexto sociocultural indo além da situação de embriaguez e do indivíduo que bebe em excesso, por que então o foco permanece sobre o indivíduo e o estado patológico? Alguns podem dizer: mas a família está sendo incluída nas propostas de tratamento. Está mesmo? E se tal acontece, de que forma?

O artigo é instigante no sentido de que faz pensar em que medida, quando se sugere ou ministra o cuidado a esse e a outros grupos da população, é considerada ou valorizada a visão do cliente a respeito do fenômeno vivenciado: sua percepção, explicações, as estratégias consideradas viáveis para o enfrentamento e os personagens que julgam ser de ajuda nesse propósito.

A relação profissional com o indivíduo que bebe pressupõe um encontro de saberes (o científico com o vivencial) e de culturas, que embora possuam aspectos comuns mantêm suas peculiaridades. Cabe ao profissional ter consciência disso nas intervenções, sejam elas de prevenção do uso abusivo, tratamento ou reinserção na comunidade.

Para concluir o comentário vai aqui a última indagação: dado que o modelo de atenção imperante privilegia a doença e a condição de dependente, e os resultados no enfrentamento das questões relativas ao álcool (adesão do cliente ao tratamento, prevenção da recaída, prevenção do abuso) têm sido pouco animadores, não caberia uma "pitada" de humildade e repensar a prática, centrando desta feita, o foco da investigação e do cuidado no beber como um ato social? Ouvir e olhar o cliente elevando-o à categoria de protagonista, considerar os atores sociais não convencionais (donos de bar, por exemplo) nas ações preventivas do abuso, no tratamento e reinserção social, pode trazer surpresas gratificantes.

 

1. Carlini BC. Movimentos e discursos contra as drogas: o caso da sociedade norte-americana. Revista ABP-APAL 1995; 17:93-101.

2. Berne E. Juegos em que participamos. México DF: Diana; 1966.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br