DEBATE DEBATE
Debate sobre o artigo de Delma Pessanha Neves
Debate on the paper by Delma Pessanha Neves
Elizabeth S. Palatnik
Núcleo de Estudos e Pesquisas em Atenção ao Uso de Drogas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. bethpalat@bol.com.br
"As considerações aqui apresentadas visam (...) também criar um diálogo com pesquisadores de outras disciplinas que se voltam para o tema em questão. O saber interdisciplinar não se confunde com um ponto de encontro de caminhos diferenciados. Opera pelo diálogo respeitoso das especificidades e dos limites de cada disciplina". Cito aqui a Dra. Delma Pessanha Neves autora do artigo Alcoolismo: Acusação ou Diagnóstico? na medida em que suas palavras traduzem a intenção de minha participação neste debate: fazer uma troca em forma de diálogo, entre saberes e experiências diferenciados, mantendo sempre as suas especificidades e limites. O seu artigo me suscitou alguns questionamentos construídos, justamente, com base em minha experiência profissional (realizando trabalho clínico de apoio a mães e outros familiares de dependentes de drogas) e do meu trabalho de pesquisa (que situa esse trabalho clínico na perspectiva de gênero) 1.
O artigo apresenta estudos a respeito de como é visto o ato de beber enquanto um ato social, como o alcoolismo se constrói enquanto objeto da antropologia e enquanto um fenômeno não natural mas socialmente construído. O bar é evocado como "templo consagrado à alcoolização controlada", sendo um dos lugares onde se realiza a pesquisa empírica da autora. Os homens que freqüentam o bar são citados como sendo "os" usuários de álcool, seja o uso em excesso ou controlado, em grupo ou individualmente. Ao falar em homens, fica nítido que não se toma este termo como sinônimo de seres humanos e sim como representantes de gênero. É claro que o eixo central do artigo não se constitui pela questão de gênero (e isso já pode ser lido no próprio resumo do mesmo). Por isso, a princípio, pareceria não haver necessidade de apontar se vai ou não se falar deste ou daquele gênero. Porém, o fato de todos os exemplos de usos e abusos (e o modo como diferentes culturas os constituem e controlam), apontarem para homens usando ou abusando, deu ênfase na minha leitura do texto a uma falta: a falta de mulheres que bebem ou, talvez seja mais propício dizer, a um silêncio com relação às mulheres que bebem.
E, então, surgiram estes questionamentos: a diferença de gênero, na questão do abuso de álcool, não coloca dificuldades metodológicas ou dilemas éticos e epistemológicos para o pesquisador? A sociedade não trata ou considera de modo diferente o homem alcoólatra e a mulher alcoólatra? Não falar sobre mulheres que bebem em excesso (ou seja, não dar exemplos que as contemplem) e não explicitar que se fará um recorte pelo qual somente homens alcoólatras serão pesquisados, nos permite deduzir que as mulheres não usam álcool na nossa cultura? Isso nos autoriza a pensar que não há mulheres alcoólatras ou que elas não se reconhecem enquanto tais? Ou o silêncio explícito com relação ao uso/abuso de álcool por mulheres estaria refletindo o silêncio ao qual as mulheres se encontram relegadas na nossa cultura, se considerado este tema baseando-se na ótica da dominação masculina 2?
A escolha do bar, como lugar de desenvolvimento de pesquisa empírica, poderia estar operando um recorte "silencioso" de gênero, na medida em que é um espaço basicamente freqüentado por homens. Há que se considerar, também, que no campo da dependência de substâncias (embora não exclusivamente nele) é notória a procura de ajuda por parte de mulheres quando essa ajuda é para "curar" ou "resolver" problemas dos filhos ou maridos: muitas vezes, é difícil o pedido de ajuda ser explicitado quando se trata de um tratamento para elas próprias (não somente quando elas são usuárias de substâncias, mas também quando são familiares de alguém que faz uso: não há um reconhecimento de necessidade de ajuda para si e sim de uma orientação para ajudar os outros) 1. Isto também remete à construção do papel da mulher na cultura ocidental enquanto "cuidadora" e responsável pela saúde, educação e comportamento dos filhos (e com os "outros", em geral) 3.
Ao se silenciar com relação ao alcoolismo feminino, corre-se o risco de repetir uma certa "naturalização" operada pelo uso do termo "dependência química" que (além de negar a complexidade própria da questão das drogas, sejam elas lícitas ou ilícitas, por dar ênfase ao produto como causador da dependência, negligenciando concepções contemporâneas que apontam para a sua complexidade), reproduz um olhar não apenas do senso comum que considera os dependentes ou alcoólatras como sendo "todos iguais".
1. Palatnik ES. Aborto e toxicomania: a descoberta e construção de um problema [Dissertação de Mestrado]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2002.
2. Bourdieu P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 1999.
3. Badinter E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1985.