DEBATE DEBATE

 

Debate sobre o artigo de Delma Pessanha Neves

 

Debate on the paper by Delma Pessanha Neves

 

 

Maria Odete Simão

Departamento de Neurologia e Psiquiatria, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista, Botucatu, Brasil. modete@fmb.unesp.br

 

 

No artigo Alcoolismo: Acusação ou Diagnóstico?, Neves discute os aspectos antropológicos envolvidos no uso de bebidas alcoólicas. Abordar o uso de bebidas alcoólicas em todas as suas formas (beber recreativo, abusivo, nocivo e dependência) não tem sido uma tarefa fácil e tão pouco possível de um único olhar (social, cultural, biológico). É sabido que existem vários fatores que influenciam o modo do indivíduo beber e o modo como a sociedade o vê, incentivando e/ou reprimindo sua ação.

Neves apresenta uma discussão sob o ponto de vista dos antropólogos, sem, no entanto, deter-se no aspecto da doença alcoolismo. Cabe lembrar que geralmente o início do uso de bebidas se dá sem grandes problemas, e em alguns casos, com o passar do tempo, uma ingestão que começou como "recreativa" passa a trazer problemas, e pode tornar-se a doença alcoolismo.

O uso de bebidas alcoólicas é comum e incentivado na maioria das sociedades atuais por ser considerado um desinibidor, um facilitador de relações, uma forma de diminuir as crescentes tensões do cotidiano. Assim, eventos comemorativos ou ocasiões festivas, entre tantas outras, tornam-se grandes aliados no início do uso de álcool.

Discutir o uso de bebidas alcoólicas não é necessariamente discutir a doença alcoolismo (Dependência de Álcool ou Transtorno de Comportamento decorrente do Uso de Álcool). É necessário avaliar, analisar cada comportamento e suas repercussões na vida global do indivíduo e do grupo social que o cerca (micro grupo ­ família e macro grupo).

O termo "alcoolismo crônico" foi empregado pela primeira vez em 1849 por Magnus Huss, para descrever um conjunto de manifestações patológicas do sistema nervoso, tanto psíquicas como motoras e sensoriais e que se instalavam, de forma progressiva, em pessoas que consumiam quantidades excessivas de bebidas alcoólicas durante muitos anos. Com o passar do tempo, esta denominação "alcoolismo crônico" tornou-se popular, designando tanto um importante fenômeno médico-social, como também de certa forma, estigmatizando seus portadores 1. Além disso, sabe-se hoje que o alcoolismo é uma doença crônica sendo, portanto, redundante o uso desta terminologia.

Paralelamente às mudanças nosográficas ocorreram mudanças conceituais, nas quais a dimensão dos problemas relacionados ao uso nocivo do álcool deixou o plano meramente organicista e passaram a ser abordados, também, como parte de um fenômeno que se manifesta em variadas dimensões, expressando-se ao longo de distintos eixos: físico, psicológico e social 1.

Para Genevieu Knupfer apud Bertolote 1, a gama de problemas associados ao alcoolismo implicaria problemas familiares, legais, no trabalho, de saúde e econômicos.

Voltando à questão do uso de bebidas alcoólicas, Dwight Heath (apud Madrigal 2), um reconhecido antropólogo e pensador americano, comentou sobre a ação de atitudes culturais tolerantes, que fazem do "beber" ou consumir drogas uma conduta ligada ao sexo masculino. Considera, de forma pertinente, que as normas, valores, atitudes e expectativas podem ser tão ou mais importantes que as diferenças biológicas entre os sexos, para definir o padrão de consumo e suas conseqüências.

Na abordagem deste assunto, é obrigatório considerar o nível educacional, social, cultural, a procedência rural ou urbana, além de outros fatores que poderiam influir na forma de as pessoas lidarem com problemas de ordem médica e que implicam também os valores sociais e morais, como é o caso do consumo de álcool e outras drogas.

A literatura enfatiza além dos aspectos clínicos, os aspectos psicossociais envolvidos na doença do alcoolismo. Wilsnack & Wilsnack 3 destacam o fato persistente de que em todas as culturas os homens bebem em maior quantidade e mais freqüentemente que as mulheres. Esse seria um padrão universal e recorrente em diferentes sociedades e culturas, inclusive na África, Ásia, Pacífico, América Latina, Europa e América do Norte. Mesmo com as mudanças sociais e oportunidades educacionais e de trabalho, incluindo as populações de adultos jovens de universidades, essa diferença permanece.

As tendências atuais no consumo de álcool consideram sua ingestão para "alegrar-se" ou o embriagar-se para "ficar bem", como uma conduta amplamente tolerável no homem. Na mulher, essa mesma conduta aparece como socialmente censurável, dependendo de sua origem sócio-econômica e cultural e da faixa etária. No entanto, nos Estados Unidos, a tendência generalizada, a não ser entre os estudantes universitários, é de se beber menos em todos os níveis sócio-econômicos, particularmente destilados. Às informações amplamente disponíveis e a maior conscientização dos perigos da ingestão excessiva são uma possível explicação para esse fato 4.

Alguns autores consideram que o fato de o início da ingestão de álcool ocorrer na adolescência está associado geralmente a questões familiares (condições ambientais e perspectivas sociais ruins), à facilidade de aquisição, ao aumento da oferta, ao incentivo de amigos e ao reforço da mídia 5,6,7,8.

Diante disso, o artigo da autora tem grande importância quando nos faz repensar na amplitude dos termos, suas origens e a implicação cultural em que está envolvido.

 

1. Bertolote JM. Conceitos em alcoolismo. In: Ramos SP, Bertolote JM, organizadores. Alcoolismo hoje. Porto Alegre: Artes Médicas; 1997. p. 17-31.

2. Madrigal E. Patrones de consumo y dependencia del alcohol y de substancias psicoactivas en la mujer. In: Gómez-Gómez E, editor. Género, mujer y salud en las Américas. Washington DC: Organización Panamericana de la Salud; 1993. p. 163-77.

3. Wilsnack R, Wilsnack SC. Gender and alcohol individual and social perspectives. New Jersey: Rutgers Center of Alcohol Studies; 1997.

4. Johnston LD, O'Malley PM, Bachman JG. National survey results on drug use from the monitoring the future study, 1975-1995: volume II. Washington DC: National Institute on Drug Abuse; 1997.

5. Haver B. Female alcoholics I. Psycho-social outcome six years after treatment. Acta Psychiatr Scand 1986; 74:102-11.

6. Henriques Jr SG. Alcoolismo: exclusividade masculina? Jornal Paulistano de Psicossomática 1995; 1:21-2.

7. Pinsky I, Silva MTA. As bebidas alcoólicas e os meios de comunicação: revisão da literatura. Revista APB-APAL 1995; 17:115-21.

8. Oliveira LAC. Aspectos do alcoolismo feminino. Vivência 1998; 54:36-7.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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