DEBATE DEBATE
Debate sobre o artigo de Delma Pessanha Neves
Debate on the paper by Delma Pessanha Neves
Marcos Baptista
Hospital Universitário Pedro Ernesto, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. marcosbaptista@hotmail.com
O artigo tenta diferenciar, o que poderíamos dizer, duas séries sindrômicas de apreensão do uso/abuso de qualquer substância psicoativa. O artigo traz o álcool como exemplo porque sem dúvida tem dois principais problemas com o qual se depara a sociedade ocidental. O beber enquanto ato social e o beber enquanto um comportamento culturalmente atributivo (dentro da estrutura da linguagem, atribuir pode significar condensação, deslocamento ou dissociação). Devemos então considerar que o artigo dispõe-se a contribuir sob um binômio que a priori considera díspare a distinção entre a categoria de acusação e diagnóstico. Trata-se, ao nosso modo de ver, de uma desconstrução e conseqüente construção de um mesmo fenômeno, isto é, a adição como se fora algo independente do sujeito, algo da ordem de um construto social.
Neste sentido, apoiamos "as reticências e resistências dos antropólogos ao reconhecimento do alcoolismo como objeto" e "a obrigatória relatividade postural", não somente pelo fato do alcoolismo poder estar ausente em algumas sociedades, mas pela constatação de que as adições são encontradas em todas as sociedades que estudarmos. Não interessa "se os antropólogos negligenciaram a questão do uso inadequado de bebidas". O que o artigo parece relevar está diretamente ligado ao comportamento inadequado, a uma construção de bordas e margens que no sentido da experiência aditiva tem pouco valor. A adição e os efeitos anômicos não nos parece nem causa, nem conseqüência, justamente porque não existe causalidade na intensidade, senão nos manteremos dentro de uma perspectiva funcionalista.
Quando analisamos o bar enquanto "espaço privilegiado de produção e reprodução de convívio rotineiro entre os homens", parece-nos que descrevemos muito mais uma síndrome, um fenômeno do que um fato, o fato é o ato de drogar-se. O fenômeno pode ser estar num bar, numa festa, num vernissage ou solitário no seu próprio quarto. Nenhuma destas averiguações é capaz de reproduzir a experiência do sujeito. Se queremos "restituir o ponto de vista do consumidor sobre o consumo do álcool e o sistema de valores subjacentes", pensamos que deveríamos perguntar-lhes o que eles têm a dizer sobre este modo particular de gozar. Perguntamos se "a impropriedade de isolar o alcoolismo como fenômeno social" não estaria ligado à nossa dificuldade de reconhecê-lo como fato social. Chamaria a atenção que nas sociedades ditas primitivas, pharmakon sempre está presente sob a forma de rito, de reconhecimento do divino ou de algum contato com o sagrado. Poderíamos dizer que pharmakon seria um contato com Deus, e isto é um fato, uma experiência da ordem do inefável, uma experiência com o Outro (no sentido hegeliano). É neste ponto de dissociação que um alcoolista ou um toxicodependente se dá conta de sua adição, isto é, no ponto onde ela falha. A adição se revela quando ela falta, falta em suprir a existência de algo que ele próprio denomina como paixão. Citando Huizenga 1 (p. 125), quando diz: "drogar-se é uma ação livre executada dentro de um 'como si' e percebida como situada fora da vida corrente, mas que pode absorver completamente o jogador, sem que ele encontre algum interesse ou obtenha algum proveito: uma ação dentro de outra ação [grifo nosso], que se estabelece em um tempo preciso e num espaço determinado, que se desenrola em uma ordem submissa a regras, que permite associações onde reina uma propensão ao mistério e à fantasia, a fim de permitir ao homem separar-se do seu mundo habitual e do seu mal-estar do dia-a-dia".
Neste aspecto, não interessa se o bêbado está sozinho no bar e dorme escornado pelas calçadas. O ponto de pivotamento (pivotar tem origem no verbo francês "pivoter", cuja conjugação no particípio presente "pivotant" quer dizer por sobre pivô. Em mecânica diz-se de peça que gira em torno de um ponto fixo 2, e de comunicação é o momento onde ele descreve sua experiência e neste sentido ela é auto-erótica. Colocaríamos esta paixão, não no nível dos psiquiatras do século XIX (Pinel, Esquirol, Magnam etc.), mas sim com base em Foucault 3, quando ele ressalta que a experiência da droga produz uma transformação radical no segredo e no sagrado. Algo que, por vezes, não é traduzível pela linguagem. É o que se observa, quando se pede aos toxicodependentes para falar do que vivenciaram na sua viagem com a droga. Eles não conseguem descrever nada no que concerne ao afeto, mas são capazes de descrever durante horas a fio o filme alucinatório que produziram a partir de seu próprio imaginário, tal qual Diógenes falava de sua experiência cínica (cinismo enquanto posição filosófica de viver).
É claro que o alcoolismo é inseparável dos alcoólatras e a desqualificação está ligada ao outro, enquanto outro interno/externo, produtor de laço social. Quanto ao Outro, que é também social, ele está ligado a uma experiência que é dita pelos toxicômanos como da ordem do para-além, entretanto, como não verificamos modificação de personalidade nesses sujeitos, pensamos que eles são os implicados no laço social. Simplesmente porque se apresentam como o produto final da ciência, ou melhor dizendo, o melhor exemplo de consumo, mercado e capitalismo, a saber: eles são fiéis aos seus objetos, eles consomem todos os dias o mesmo objeto.
Quando o artigo fala de desqualificação social do alcoolismo, é verdade que são fatos atribuídos às regras do jogo social, da mesma forma que os bêbados bem sucedidos chegam a governar países. Nenhum destes comportamentos referentes constituem histórias que falam da experiência do sujeito.
Concluiria esta abordagem crítica, dizendo que nos parece um construto científico o ato de catalogarmos as formas, as implicações, as jurisprudências e as conseqüências do comportamento relativo ao ato de drogar-se compulsivamente, entretanto, gostaria de colocar em relevo que o ato de drogar-se é um gesto psicoativo. No final, independe da opinião do outro, como também do Outro. Diógenes apregoava o caos e o suicídio, Bacos o sair de si mesmo. No final, nos parece que a questão da dependência de drogas tem muito mais relação com a dor de existir do que com o mal-estar na civilização.
1. Huizenga R. Confluences. Paris: Galimard; 1946.
2. Houaiss A. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva; 2001.
3. Foucault M. Naissance de la clinique. Paris: PUF; 1978.