RESENHAS REVIEWS

 

 

Marlene Braz

Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil braz@iff.fiocruz.br

 

 

ABORTO POR ANOMALIA FETAL. D. Diniz & D. C. Ribeiro. Brasília: Letras Livres, 2003. 149 pp.

ISBN: 85-901938-4-5

O livro é pequeno e de fácil leitura, mas não se engane porque, com argumentos muito bem fundamentados, trata de um assunto bastante polêmico para a sociedade brasileira, ou seja, fala não somente do aborto nos casos de anomalia fetal incompatível com a vida, como o título indica, mas também trata deste tema de forma mais geral, apontando para o dogmatismo presente quando se tenta alterar a lei vigente em nosso país.

O livro é dividido em duas partes com o mesmo título ­ Antecipação Terapêutica de Parto, sendo que a primeira tem como subtítulo Uma Releitura Bioética do Aborto por Anomalia Fetal no Brasil, escrito por Débora Diniz, e o segundo Uma Releitura Jurídico-penal do Aborto por Anomalia Fetal no Brasil, escrito por Diaulas Costa Ribeiro.

Diniz faz uma reflexão atual, necessária e inovadora do tema no campo da Bioética. Ela inicia sua argumentação a partir do dogmatismo e intolerância daqueles que se dizem protetores da vida, grupo que se denomina Pró-Vida e que pregam, muitas vezes, como nos Estados Unidos, a intolerância contra as clínicas de aborto legalmente constituídas.

Sabemos bem onde se pode chegar na defesa de idéias que se acreditam ser as únicas verdadeiras e que por isso sua verdade é a verdade e em nome dela pode-se tudo, desde impô-la por meio de pressões, constrangimentos, humilhações ou pelo extermínio. A idéia de um pensamento único produziu o holocausto, os gulags, genocídio e terrorismo e, infelizmente, ainda hoje não estamos livres de tais tragédias. Cada uma destas ideologias, baseadas em grandes narrativas, veiculadas por um pequeno grupo, são impostas, com violência, para uma maioria que se vê sem poder e aterrorizada.

Apesar de, na nossa pós-modernidade, este tipo de ideologia não ser mais aceita porque finalmente se aceita a idéia da diversidade humana, da multiculturalidade, do respeito ao diferente, dos vários modos de pensar e estar no mundo, ainda restam alguns poucos que nela persistem. Há que se ter cuidado. Cabe ressaltar que estes dois autores têm sido perseguidos e prejudicados por suas idéias. Diniz foi demitida de uma universidade católica e Ribeiro é vítima de um ataque via Internet do Pró-Vida.

Entretanto, ao se ler este livro, cuja premissa central dos dois autores se baseia num fato clínico, isto é, eles defendem o que denominam de antecipação terapêutica do parto nos casos em que o feto, portador de anomalia fetal, não tem condições de sobreviver após o nascimento, fica difícil entender o argumento principal utilizado pelos que são contra o aborto, nestas circunstâncias.

Há um crescente consenso, nos quais participam o movimento de mulheres, profissionais de saúde, juristas e religiosos, no sentido da inclusão na lei de mais uma permissão para o aborto que seria o caso da anomalia fetal incompatível com a vida extra uterina. Lembramos que, no Brasil, só é permitido o aborto nos casos de risco de vida materno ou nos casos de estupro.

Em 1991, foi concedido o primeiro alvará para a realização do aborto num caso de anencefalia, quadro incompatível com a vida pela inexistência de hemisférios cerebrais. De lá para cá já passam de 200 os procedimentos outorgados por juízes e promotores, segundo Diniz. Estes dados referem-se ao serviço público, não se tendo informações sobre os abortos realizados em clínicas privadas, pelos próprios médicos, sem apelarem para a justiça.

A premissa mais importante dos autores se baseia, na realidade, numa contra-argumentação da utilizada pela corrente contrária ao aborto, mesmo nas circunstâncias defendidas neste livro. O principal argumento contra o aborto é o da Sacralidade da Vida, ou no dizer de Diniz, da premissa da Santidade da Vida, isto é, "a idéia de que a vida é um Dom ou um bem divino e que não deve ser objeto de intervenção humana" (p. 67). Se a vida é sagrada, qualquer atentado a ela é visto como moralmente inaceitável.

O outro argumento é o da "ladeira escorregadia", bastante utilizado em bioética, porém fraco, porque parte da suposição de que se permitirmos alguma coisa, outras começarão a ser igualmente permitidas. Neste caso, se a Lei permitir o aborto por anomalia fetal incompatível pela vida, mais adiante esta permissão poderia ser concedida aos casos de fetos portadores de outras más-formações que não ameaçam a vida, como por exemplo, o lábio leporino ou mesmo a Síndrome de Down.

Um outro argumento é o da potencialidade, quer dizer, haveria um continuum entre o feto, a criança e o adulto. O embrião já portaria todas as potencialidades de se desenvolver e se tornar um indivíduo se lhe forem concedidas condições para tal.

Estas três premissas, segundo Diniz, podem ser agrupadas em uma: elas se fundamentam no pressuposto da existência da vida e no direito absoluto do feto à vida. Uma das questões mais controversas na Bioética refere-se ao estatuto do feto, no sentido de afirmarmos ser ele uma pessoa ou não. Existem algumas visões mas destacaremos duas: a visão concepcional e a evolutiva.

Para a postura concepcional, o momento da concepção dá origem ao ser humano como pessoa, ainda que esta característica seja potencial e que se desenvolva ao longo do tempo. Este momento é o da união dos gametas e pressupõe ser humano e pessoa em uma unidade ontológica desde a fase de ovo e, desta maneira, já teriam status moral pleno no processo de desenvolvimento do ser.

A visão evolutiva define o começo da vida humana e o correspondente estatuto moral a partir do aparecimento de alguma expressão morfológica ou evolutiva do embrião, ou em um momento específico da gestação, tais como: nidação, individuação, aparição da crista neural, mobilidade fetal, viabilidade extra-uterina, o nascimento e a aquisição de competência racional na infância 1.

Seguindo Diniz, pessoa é tudo aquilo que não é coisa e, portanto, capaz de viver. Neste sentido, nos casos de anomalia fetal incompatível com a vida não existiria vida nem potencialmente e, portanto, não haveria uma pessoa. Após outras fundamentações, Diniz conclui que "somente alguém vivo ou potencialmente vivo é pessoa e tem direito à vida [e sendo assim, o] feto inviável não tem potencialidade de viver [ logo o] feto inviável não é pessoa e não tem direito à vida" (p. 77). A autora conclui que os argumentos contrários à prática do aborto nestes casos não são aplicáveis e que, de fato, não se trata de aborto, e sim de antecipação terapêutica do parto. Isto seria um procedimento médico e não um subterfúgio para legalizar o aborto no Brasil.

Ribeiro, em relação aos aspectos jurídico-penais afirma que a "interrupção voluntária de gravidez de um feto inviável é uma questão de pouca relevância jurídica; e considerada como uma decisão privada da mãe (...). A interrupção voluntária da gravidez de feto inviável nunca esteve e não está proibida no sistema constitucional brasileiro" (p. 121).

Os dois autores, uma utilizando a bioética e o outro as Leis que regulam a matéria sobre o aborto por anomalia fetal incompatível com a vida, chegam à mesma conclusão. Não se trata de aborto, mas tão somente de uma antecipação terapêutica do parto que não seria eufemismo e que, ao mesmo tempo, preserva a mulher de danos psicológicos que poderiam ocorrer com o uso da palavra aborto.

Isto posto resta comentar um tópico aqui abordado e que merece uma reflexão melhor dos autores. Trata-se exatamente de um certa incongruência entre o nome do livro: Aborto por Anomalia Fetal e o subtítulo: Antecipação Terapêutica de Parto. Esta incongruência fica mais evidente ainda quando eles propugnam a inclusão de mais um item na Lei que regulamenta a matéria sobre a permissão do aborto. Ora, se não é aborto e sim um procedimento médico, não haveria por que inclui-lo nesta exceção dos abortos permitidos por Lei. A proposta mais correta seria considerar a possibilidade de uma discussão com os médicos para que restasse claro que é uma indicação puramente médica, como ocorre nos casos em que o feto já se encontra morto dentro do útero, onde a antecipação do parto é realizada e recomendada sem nunca ter passado pela juridicidade do ato. A questão, parece, deve ser focalizada no âmbito da Medicina, porque, de fato, fetos anencéfalos não sobrevivem, sequer a maioria deles nasce respirando ou permanece respirando sozinho. A tecnologia utilizada nestes casos dá uma sobrevida pequena, de no máximo três semanas, porque não se pode viver só com o tronco cerebral como é o caso dos anencéfalos.

Com isto não se quer dizer que a postura deva ser contrária ao proposto e mais, os bioeticistas deste país devem ter uma posição mais firme a respeito da discriminalização do aborto no Brasil em outras circunstâncias que não só a defendida pelos autores, porque se deve conceder às pessoas o direito de escolher se querem ou não terem filhos. Só se pode falar em autonomia e respeito à dignidade da pessoa humana sob o ponto de vista moral se a opção for garantida. Se não há opção, não há escolha e, portanto, não há o exercício da autonomia. A sociedade brasileira tem de avançar no sentido de garantir mais liberdade neste campo, sem o que fica difícil falarmos em Direitos Humanos num país que realiza clandestinamente algo em torno de 1.200 mil abortos por ano e que leva à morte milhares de mulheres pela precariedade com que os fazem.

 

1. Kottow ML. Bioética del comienzo de la vida. ¿Cuántas veces comienza la vida humana? Bioética 2001; 9:25-42.

 


 

 

Leandro Castro Oltramari

Universidade do Vale do Itajaí, Biguaçu, Brasil. leandro@cfh.ufsc.br

 

 

CIÊNCIA, PODER, ACÇÃO: AS RESPOSTAS À SIDA. Cristiana Bastos. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2002. 258 pp.

ISBN: 972-671-088-X

O trabalho de Cristiana Bastos bem poderia se chamar "Os Bastidores da AIDS". O seu texto faz uma minuciosa radiografia da constituição da AIDS como fenômeno científico, discutindo o estatuto desta patologia e centrando sua análise nas questões que envolvem a política científica e sua relação com os movimentos sociais.

A AIDS tem propiciado esta discussão desde seu surgimento. A briga político/científica entre Estados Unidos e França sobre o descobrimento do HIV, os testes com placebos realizados por empresas de medicamentos em países africanos e, mais recentemente, a quebra das patentes dos medicamentos, tudo isso tem tornado a Aids, além de um problema epidemiológico, um fato e um fenômeno político.

O livro de Cristiana Bastos propõe e realiza uma importante análise sobre esta que tem sido, para muitos, uma das mais rigorosas epidemias do século XX e que inicia o atual século com a mesma fúria. O trabalho ganha ares interdisciplinares entre Antropologia e outras ciências que centram a discussão sobre o "poder social da ciência" e sua produção na sociedade contemporânea.

O trabalho também ultrapassa a dimensão do local. Partindo de uma experiência etnográfica transnacional, faz uma antropologia política, promovendo um importante diálogo entre o local e o global. A própria autora expõe dificuldades pelas quais passou, pois seu trabalho é por vezes fugidio à disciplina, transitando entre política científica internacional, movimentos sociais e relações de poder. Seu objetivo é perceber como têm sido produzidos saberes sobre a AIDS no contexto contemporâneo de globalização, além de revelar, com base nisto, como se tornaram complexas as redes de ações antiAIDS no mundo.

O livro se divide em seis capítulos, cada um abordando aspectos das políticas científicas que pesquisam e intervêm no campo da AIDS. O primeiro deles se refere à A Pesquisa Médica, à SIDA e às Clivagens da Ordem Mundial. Neste capítulo, a autora ressalta como a AIDS veio questionar o otimismo da ciência médica logo após a Segunda Grande Guerra. Aqui há uma clara presença do campo de estudos interdisciplinares em saúde e ciências sociais, necessários para a intervenção com relação à AIDS. E esta necessidade, segundo Bastos, vem da falta de diálogo dos diversos atores sociais que antes não se comunicavam, mas que passaram a perceber a necessidade de dar respostas à epidemia.

O advento da AIDS foi um grande retrocesso na supremacia do saber médico especializado. Esta doença desafiou a ciência e foi um empecilho aos avanços da medicina que, até então, estava concentrada na guerra contra o câncer, passando com o surgimento da AIDS, a se deparar com uma síndrome tão perniciosa e que, além disso, possuía um agravante: era contagiosa.

No segundo capítulo, intitulado A Política da Produção do Conhecimento: O Ativismo de SIDA como Novo Movimento Social, a autora revela que o ineditismo da AIDS está no entrelaçar de variáveis que cruzam elementos médicos, de ordem social, motivações políticas, simbólicas e culturais. Este capítulo revela a importância dos movimentos de reação à epidemia, organizados principalmente pela comunidade gay norte-americana, e o impacto destes na produção científica. O fato de homossexuais jovens apresentarem óbito em decorrência de uma doença não comum, como o Sarcoma de Kaposi, fez com que os médicos e a ciência ficassem em alerta. Este alerta passaria a estar presente na medicina a partir de então.

Cristiana Bastos ressalta que a categorização "homossexual" é recente e no caso da AIDS, é usada quase sempre como uma forma de discriminação. Este determinismo, em consonância com uma não identificação de pessoas que não se enquadrariam nem na homossexualidade, nem na heterossexualidade, fez com que as campanhas e as políticas preventivas tenham se tornado falhas.

Em relação ao terceiro capítulo, Patrocinando a Ação Global o Papel da OMS", a autora analisa como se constituiu a relação de combate à AIDS em nível internacional, fazendo uma brilhante descrição da relação entre ciência médica e globalização. Este capítulo aponta que o debate centro-periferia teve um importante papel no novo direcionamento da epidemia.

No Brasil, o trabalho de crítica aos modelos epidemiológicos tradicionais norte-americanos foi realizado pela Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), importante organização de pesquisa e combate à AIDS. A participação desta organização foi de grande contribuição para que o país pudesse superar as epidemiologias importadas, as quais consideravam ainda os grupos de risco como categorias importantes para a prevenção.

No capítulo quatro, a autora versa sobre a Ação Local: Respostas à Sida no Brasil. Ela afirma que o fim da ditadura e a afirmação dos movimentos sociais marcaram as respostas sociais à AIDS no Brasil. As ONGs foram estratégias montadas pelas agências internacionais para combater a doença, e estas foram escolhidas devido a maior agilidade em relação às respostas para a epidemia.

A autora faz uma retrospectiva de algumas das campanhas de prevenção da AIDS no início da epidemia, as quais causavam ainda mais tensão entre ONGs e governo. Isto fez com que, junto com problemas sociais e econômicos de todas as ordens e o pouco envolvimento do Estado, a AIDS, no Brasil, fosse, como afirma a autora, "a pior AIDS no mundo", devido principalmente às exigências das ONGs e à ineficiência do governo.

No capítulo cinco "Sida, Clínica e Ciência no Hospital Universitário", Bastos faz uma breve descrição da razão pela qual escolheu o Brasil para sua pesquisa, realizada em um hospital geral. Esta escolha ocorreu devido à situação de desigualdade social observada no país. De um lado, há tratamentos com as mais avançadas formas de tecnologia, enquanto, por outro, há pessoas sem acesso à saúde básica e preventiva.

A autora observa algumas características muito fortes nos hospitais do Brasil. Estes são os únicos a se responsabilizar pela pesquisa, e isto aconteceu também com relação à AIDS, que foi um evento que surpreendeu os trabalhadores da saúde e pesquisadores. Esta epidemia foi promotora de renovação dos saberes sobre ela própria, com base na prática clínica dos profissionais dentro do hospital.

Sua pesquisa demonstra o papel importante que teve a ABIA na crítica à importação dos modelos teóricos e metodológicos dos organismos internacionais, por estes não darem conta da realidade brasileira. Esta importação revelava a dependência que os médicos brasileiros tinham das revistas médicas dominantes e o quanto se sentiam pouco à vontade para fazer pesquisas e publicar nessas revistas especializadas. A ABIA, assim, tornou-se um importante canal de comunicação, produção e publicação desses profissionais no Brasil.

Quanto ao capítulo seis, Metáforas de Guerra em Bacteriologia e Imunologia: Em Busca de um Novo Paradigma, nele a autora revela tentar não utilizar em seu trabalho as metáforas da guerra, tão comuns no combate às epidemias. Mas não resiste e acaba supervalorizando-as, quando por diversas vezes também se refere ao combate à AIDS como uma batalha e/ou uma guerra. Ao fim da obra, descreve que não percebeu nenhuma mudança conceitual digna de nota nas pesquisas com AIDS. Ainda faz uma crítica a esta forma de compreender a doença e suas metáforas bélicas, citando um autor chamado MacFarlane Burnett, que afirma que, na verdade, esta metáfora bélica não tem sentido, apesar de ser muito utilizada.

Pode-se perceber, por meio do vasto trabalho de pesquisa presente nesta obra, assim como nas suas mais diversas fontes, o grande campo de conhecimento sobre AIDS. O caminho percorrido pela autora é de dar inveja a qualquer pesquisador experiente, ou mesmo apavorar os iniciantes. É um trabalho de revisão exaustiva.

Ficam algumas questões depois de ler este trabalho. Seria a AIDS não mais que um evento político que se produziu pelo viés da saúde, que tem no vírus um bode expiatório poderoso? As questões político/científicas em relação à AIDS se fazem presentes de maneira tão intensa porque os primeiros a se mobilizarem foram os militantes dos movimentos sociais, principalmente gays norte-americanos e posteriormente, brasileiros? As políticas de produção de conhecimento em relação à epidemia seriam diferentes se os organismos internacionais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS), não tivessem sido pressionados por estes movimentos sociais? Será possível pensar na prevenção e tratamento sem as metáforas de guerra, vivendo em um período tão fortemente marcado pelos confrontos armados?

Estas questões ficam sem respostas, mas com a vasta revisão da autora fica mais fácil tentar encontrá-las.

 


 

 

Mirian Ribeiro Baião

Instituto de Nutrição Josué de Castro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

 

 

AGONIA DA FOME. Maria do Carmo Soares de Freitas. Salvador: EDUFBA/Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2003. 281 pp.

ISBN: 85-8906-004-7

A obra em questão ­ Agonia da Fome ­ de Maria do Carmo Soares de Freitas, é muito oportuna, representando uma significante contribuição para a saúde coletiva.

O momento atual é marcado pelo combate à fome enquanto prioridade de governo. Muitas tentativas têm sido feitas no sentido de contar os famintos e há algumas controvérsias quanto aos números. Em direção oposta às estatísticas, Freitas tenta compreender quem são e como vivem os famintos, num bairro da periferia de Salvador ­ o Péla, e que significados atribuem à fome, adotando a etnografia para adentrar em seu objeto de estudo.

No primeiro capítulo, a autora parte de uma discussão sobre as teorias da fome e os aspectos históricos, sociais e econômicos que se associam com esse fenômeno, notadamente em sociedades marcadas pela exploração e dominação.

No caso do Brasil, dependente de empréstimos do capital estrangeiro, o país sujeitou sua política interna, visto que vem ao longo de governos adotando um tipo de desenvolvimento econômico que pouco investe em setores sociais, culminando em concentração de renda e desigualdade social, refletidas nas distintas condições de vida da população brasileira.

Freitas constata a importância de se compreender a fome por uma outra perspectiva, o referencial socioantropológico, lembrando que Josué de Castro foi o primeiro, no Brasil, a interpretá-la enquanto uma questão biológica e social.

Ainda no primeiro capítulo apresenta o método de estudo, justificando a utilização da etnografia. Apoiada pela fenomenologia, pela hermenêutica de Paul Ricoeur e os recursos da semiótica para interpretar as falas e os sinais não-verbais dos sujeitos, busca uma maior aproximação com a realidade, trazendo a dimensão sociohistórica, procurando articular o saber e o "vivido", a correspondência entre o macro e o microssocial, considerando os aspectos não lingüísticos para desvelar a fome. Assim, exerce uma interpretação crítica ao encontro de seus pressupostos de pesquisa, visando o aprofundamento e o diálogo entre a percepção e a experiência cotidiana sobre a fome.

No segundo capítulo a autora descreve seu vínculo com os moradores, decorrente de um trabalho acadêmico anterior, de sete anos atrás, e sua "forte emoção" (p. 65) ao voltar à comunidade, pela constatação da degradação das condições de vida e das relações sociais. Nesse novo encontro, que culminou em sua tese de doutoramento, tendo como produto essa original obra, a autora elabora mais que uma descrição da vida no bairro e nos leva a pensar sobre essa realidade. Embora justifique o fato de ter ficado impossibilitada de fotografar, seu texto nos propicia emoções e imagens desse mundo, que normalmente nos chegam pelos noticiários.

O livro é um "mergulho" na vida do bairro, onde as pessoas enfrentam a fome de alimentos. Porém, à semelhança de outras comunidades, principalmente em grandes centros urbanos, parece que a fome transcende a questão alimentar. Os moradores têm fome de vida, pois a fome de comida não está desvinculada da fome de trabalho, educação, saúde, habitação, saneamento, transporte, vestuário, lazer e outros, gerando violência, conforme evidenciado na fala de seus informantes.

A presença constante da violência dentro e fora dos domicílios, influenciada pela miséria, que gera tensões, relações conflituosas e de poder, torna os moradores vítimas temerosas das agressões físicas e da morte. Os informantes de Freitas associam a violência e o aumento do narcotráfico à falta de empregos e oportunidades, à fome e à falta de compromisso dos governantes, tendo de se calar e não chorar frente à morte de seus filhos, maridos, mulheres, parentes, vizinhos. No "inferno", como o bairro é visto pelos moradores, existe a lei do silêncio.

Revela, ainda, a solidariedade entre os moradores, compartilhando necessidades e festividades, necessárias para superar o sofrimento diário, embora essa solidariedade seja quebrada quando existe qualquer possibilidade de se ganhar algum dinheiro.

A autora provoca a reflexão sobre o uso dos indicadores antropométricos, que classificam indivíduos em normais, com desnutrição (leve, moderada ou grave) ou sobrepeso/obesidade, enquanto critério de seleção de beneficiários dos programas de suplementação alimentar. No caso das crianças, somente as desnutridas graves são acompanhadas pelos referidos programas. No entanto, a desnutrição leve ou moderada também pode ser um indicativo de fome, de privação; desnutrição e obesidade podem coexistir numa mesma família de famintos.

O modelo biomédico transforma a fome em desnutrição. Ao focalizar a doença como objeto das práticas terapêuticas, termina por padronizar procedimentos e condutas. No entanto, as interpretações sobre os processos orgânicos podem variar segundo a experiência de vida dos grupos sociais e a inserção no modo de produção.

No terceiro capítulo do livro, os informantes relatam que existe uma "força" dentro de cada um que os impulsiona a encontrar estratégias de sobrevivência. Porém, a obra vai revelando como, de maneira geral, as pessoas sentem vergonha de falar da fome. "A fala em geral é acompanhada de suspiros ou do olhar que se torna dominante, ora em direção às alturas ou ao chão, ora ao próprio corpo quando uma mulher se encolhe e entra em seu próprio silêncio" (p. 178).

Mesmo diante do constrangimento, apreendem-se das falas as diferentes formas em que a fome se apresenta aos moradores: "a dor no peito é a dor da fome", "um beco escuro", "mulher doida", "uma fera doida", "Romãozinho" e outras. Essas metáforas são construções simbólicas que expressam os efeitos provocados pela fome sobre aqueles que a experimentam em seu viver.

Para concluir, pode-se dizer que a autora cumpre com seu objetivo, indo muito além da denúncia, pois descreve a fome na intersubjetividade, dentro do mundo compartilhado e vivido pelos famintos, recorrendo, para esse fim, às ciências sociais. Percorre um movimento interpretativo sobre seu objeto, decompondo-o em partes, fazendo combinações que interessam, sem que o mesmo perca sua identidade para, posteriormente, evidenciar o significado que emana dos sujeitos do estudo.

Enfim, a obra de Freitas exerce um fascínio pela sua narração e representa um avanço para o estudo da fome, a qual vai além das sensações e repercussões no corpo biológico, atingindo o corpo simbólico de todas as pessoas que com ela convivem.

A leitura do livro é essencial para alunos de graduação, pós-graduação e profissionais da saúde, pois ao entrar no mundo dos famintos, Freitas nos chama à responsabilidade e ao inconformismo frente à fome e, sobretudo, suscita a reflexão sobre as políticas públicas e a prática assistencial prestada à população mais pobre.

 


 

 

Everardo Duarte Nunes

Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil

 

 

CAMINHOS DO PENSAMENTO: EPISTEMOLOGIA E MÉTODO. Maria Cecília de Souza Minayo & Suely Ferreira Deslandes (org.). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2002. 380 pp.

ISBN: 85-7541-011-3

Com este livro, a Editora Fiocruz abre uma coleção dedicada à saúde da mulher e da criança; porém esta obra transcende a peculiaridade temática e se lança em um universo ampliado que tem como tônica a própria construção da pesquisa. Os textos estendem-se aos pesquisadores que se dedicam à epidemiologia e à atenção à saúde.

O livro é constituído por quatro partes e treze capítulos, precedidos por uma apresentação analítica dos seus conteúdos e por uma sensível Introdução de M. C. Minayo, que orientam de forma precisa o leitor para o interior das complexas questões teóricas e metodológicas. Sem dúvida, o entendimento deste livro passa pela forma como Minayo retoma a questão da prática científica na pós-modernidade, lembrando que nas ciências humanas esta prática passa pela compreensão e pela crítica, e nada melhor para isso do que lançar mão da hermenêutica e da dialética. Estas reflexões constituem ponto fundamental na problemática metodológica abordada por Minayo, e neste capítulo aborda com erudição e sensibilidade, como no jogo entre a intersubjetividade e a objetivação da captação do real há lugar para a liberdade ­ aquela que conduz o pesquisador na busca da compreensão e explicação da vida vivida. Nisso é que se expressa o que considero um dos pontos-chave de sua exposição ­ a discussão metodológica exige uma reflexão teórica referida, com muita procedência, na posição assumida por Bourdieu de uma "prática teórica pensada". Minayo reflete tanto sobre os aspectos internos quanto externos da construção do conhecimento científico, quando vai se dissolvendo a dicotomia entre ciência básica e ciência aplicada, que avança em direção à "pesquisa estratégica", que se complexifica na visão transdisciplinar, mas que solicita cada vez mais um posicionamento frente às exigências estruturais ­ as econômicas e as tecnológicas.

No Capítulo 1, Helena de Oliveira & Maria Cecília Minayo trabalham a questão da mortalidade infantil sob o paradigma da complexidade. Nesta direção, busca-se retirar o tema do reducionismo da análise dos indicadores tradicionais, pois o viver e o morrer das crianças inscrevem-se em uma rede extremamente complexa de relações sociais, psicológicas e biológicas.

Na seqüência dos textos, retoma-se a discussão sobre a complexidade em denso trabalho assinado por Ana Maria Aleksandrowicz. Baseando-se em Morin, passando por Atlan, a autora chega em Espinosa, na proposta que caminha do projeto humanista da transdisciplinaridade do primeiro, à teoria da auto-organização do segundo, e à hierarquia de valores do último. São elementos que fundamentam uma intensa reflexão sobre a saúde e o feminino, numa trajetória histórica e conceitual.

No Capítulo 3, Minayo irá aprofundar um tema que fora desenvolvido em seu livro O Desafio do Conhecimento, situando a hermenêutica como a arte da compreensão e a dialética como a arte do estranhamento e da crítica, colocando-as em sua relação articulada, como método-chave para a análise qualitativa. Impossível detalhar a intensidade teórica deste capítulo. Ficarei com as palavras da autora, ao anotar que a hermenêutica, ao realizar o entendimento dos textos, dos fatos históricos, da cotidianidade e da realidade em que ocorrem, tem suas limitações, que podem ser compensadas pelas propostas do método dialético. De outro lado, o método dialético ao sublinhar a dissensão, a mudança e os macroprocessos, pode ser fartamente beneficiado pelo movimento hermenêutico. A afirmação de que a hermenêutica e a dialética apresentam-se como momentos necessários da produção da racionalidade em relação aos processos sociais, embora como concepções que se desenvolveram em movimentos filosóficos diferentes, faz com que sejam retomadas quando se tem como objeto de estudo a saúde em suas múltiplas dimensões históricas e simbólicas.

O Capítulo 4, de autoria de Romeu Gomes e Eduardo Alves Mendonça, discute dois núcleos centrais da socioantropologia da doença: o representacional e o da experiência no adoecer. Os autores após revisarem os conceitos fundamentais, apresentam aspectos sobre a análise de narrativas da doença como uma forma de acesso e compreensão das representações. Ao rever as principais correntes teóricas que orientam os estudos sobre as representações da doença, assumem ser de fundamental importância a retomada da categoria habitus, de Bourdieu, que, ao articular os pólos estrutural e subjetivo das representações sociais, oferece amplas possibilidades para o estudo das representações do adoecer. Abrindo a questão das representações para o campo das práticas, avança a discussão, incluindo as estratégias e as experiências humanas (no caso, a experiência com a doença) como passagens necessárias para a modelagem dos significados representacionais. Destaque especial é dado à narrativa em seus aspectos estruturais e de construção interativa e do seu papel para a compreensão da experiência do adoecer.

No Capítulo 5, Maria Helena Cardoso estabelece como os campos da Medicina e da História referem-se a dois tipos de atividades interpretativas. Ao final do texto, a autora deixa consignada a forma exemplar que adota para estabelecer a relação história/medicina, quando escreve: "tanto historiadores quanto médicos são investigadores; suas proposições se assemelham às histórias de detetives e compreendem surpreendentes e inesperados enredos". Para melhor entendermos esses enredos, ilustra com a síndrome de Down, não somente pelo que ela tem de semiótica e indiciária, mas como uma doença que necessita ser compreendida, a fim de que não se transforme o paciente simplesmente na "região topográfica" no embate entre o médico e a doença.

Carlos Eduardo Estelita-Lins, oferece um cuidadoso tratamento acerca da metodologia que pesquisa a temática da saúde mental de crianças. Oferece um extenso panorama das questões do desenvolvimento psíquico do bebê e das relações mãe-filho. Recupera algumas áreas que vêm construindo esse conhecimento, notadamente a clínica, as neurociências, a psicologia e a psicanálise. Aponta os problemas das pesquisas com bebês e salienta que o campo é heteróclito, mas coeso, embora podendo dispersar-se em inúmeras direções.

Um tema que se tornou presente nas discussões que se travam no campo da saúde é o referente às pesquisas quantitativas e qualitativas. Sentia-se, porém, a falta de um trabalho que deixasse de lado as formas estereotipadas e maniqueistas de tratar o assunto. Nesse sentido, o capítulo escrito por Suely Ferreira Deslandes & Simone Gonçalves de Assis desvenda as qualidades, possibilidades e fragilidades de ambas as metodologias. Destaca-se a reflexão feita em relação aos critérios de cientificidade (validade e confiabilidade) nos referenciais da epidemiologia e da etnografia, assim como a forma de construir a interpretação nas pesquisas qualitativas e quantitativas. Desenvolvem elaborada argumentação sobre os modelos de prevalência de um dos pólos, de justaposição, e o modelo dialógico.

Dois trabalhos aprofundam a discussão sobre os estudos epidemiológicos. O primeiro, de Michael E. Reichenheim & Claúdia L. Moraes, trata as questões da validade operacional e de mensuração. Se a validade operacional busca um modelo teórico, a validade da mensuração discute a construção dos instrumentos. Ponto importante no trabalho é o da adaptação de instrumentos quando elaborados em outros contextos socioculturais, que os autores desenvolvem de forma detalhada. O segundo texto é de Edinilsa Ramos de Souza que traz uma reflexão crítica sobre o processo de construção da informação ilustrada pelas referências à mortalidade e à morbidade. Com base no trajeto da informação, a autora lembra que há inúmeros fatores estruturais, culturais, institucionais e subjetivos que interferem no processo de produção da informação e que o seu conhecimento "possibilita à sociedade ter maior visibilidade e compreensão da magnitude e do impacto dos acidentes e da violência".

A quarta e última parte do livro é formada por um conjunto de textos que, embora tratem de temas diversos, constituem um momento importante para a reflexão sobre como o método científico coloca-se a serviço da gestão e da atenção à saúde. No primeiro texto, Elizabeth Artmann apresenta as bases teórico-metodológicas da démarche stratégique na gestão hospitalar. O enfoque associa elementos de planejamento ou de gestão estratégica, do campo da estratégia e da política, da área do desenvolvimento organizacional e cultural, com categorias próprias da área da saúde e da epidemiologia. O segundo texto, de autoria de Alvaro Nagib Atallah, situa com clareza e de forma didática esse importante tema da medicina atual. Ilustra a atenção que a medicina baseada em evidências (MBE) dá ao desenho da pesquisa, à sua condução e à análise estatística, associadas à rigorosa revisão da literatura médica, no sentido de conduzir a tomadas de decisões baseadas na "melhor evidência científica existente". O penúltimo texto da coletânea, de autoria de Maria Elizabeth Lopes Moreira, oferece a possibilidade de se completar o texto anterior, considerando-se que ela aborda a "neonatologia baseada em evidências". Para a autora, a MBE não está isenta de críticas, pois a "medicina já se baseia há muito tempo na ciência". Segundo a autora, há controvérsia; para alguns, a base em evidências já é fato na neonatologia e, para outros, isso não se aplica em sua totalidade. Para Moreira, a MBE seria um caminho para reduzir as incertezas nas decisões médicas. No último trabalho do livro, os autores Manoel de Carvalho, Alan Araujo Vieira & Cynthia Magluta abordam os erros no processo e medicação, analisando sua magnitude e apresentando uma proposta de monitoramento. Conceituam erro de medicação, situam os principais erros e as causas de sua ocorrência. Importante no texto é a proposta de como lidar com o erro no processo de medicação.

Muitos são os motivos para que este livro se torne uma leitura obrigatória para os pesquisadores na área da saúde. Parafraseando Minayo, diria que, ao trazer em um só volume tantos e destacados autores, a águia voou muito alto e, assim, pôde mirar novos e férteis terrenos para a construção de uma pesquisa social fortemente amparada na ciência, mas olhando para objetos que não somente desafiam a nossa curiosidade, mas que exigem a nossa atenção como produtores de ciência e cidadãos. Sem dúvida, não foi apenas pela beleza plástica que a composição da capa buscou nas telas de Portinari ilustrar com mulheres e crianças a temática deste livro. A expressiva conotação social que Portinari imprimiu à sua obra está presente neste livro que, como dito acima, torna-se leitura obrigatória aos cientistas e àqueles sensíveis às questões que objetivam trabalhar na melhoria das condições humanas.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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