ARTIGO ARTICLE

 

Estado nutricional e fatores associados ao déficit de crescimento de crianças freqüentadoras de creches públicas do Município de São Paulo, Brasil

 

Nutritional status and factors associated with stunting in children attending public daycare centers in the Municipality of São Paulo, Brazil

 

 

Regina Mara FisbergI; Dirce Maria Lobo MarchioniI; Maria Regina Alves CardosoII

IDepartamento de Nutrição, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil
IIDepartamento de Epidemiologia, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente estudo relata o estado nutricional de crianças freqüentadoras de creches da rede municipal de São Paulo, Brasil. Foi avaliada uma amostra representativa das crianças atendidas, totalizando 827 crianças menores de 84 meses. Características sócio-econômicas, dados de morbidade e o estado nutricional (altura/idade e/ou peso/altura) foram obtidos. Verificou-se que 7,0% (IC95%: 3,60-10,40) das crianças apresentavam déficit de altura. Na análise univariada, os fatores que se associaram ao déficit nutricional foram: idade da criança (< 24 meses), RC = 2,10 (IC95%: 1,11-3,98); relato de diarréia no mês anterior, RC = 2,84 (IC95%: 1,42-5,66); escolaridade do responsável até três anos de estudo, RC = 3,87 (IC95%: 1,10-13,68); número de moradores no domicílio (sete ou mais), RC = 3,02 (IC95%: 1,46-6,22); número de irmãos (dois ou mais), RC = 4,81 (IC95%: 1,72-13,44). Na análise multivariada, a ocorrência de diarréia no mês anterior e número de irmãos mantiveram-se associados ao retardo de crescimento (RC = 2,54; IC95%: 1,20-5,38 e RC = 7,40; IC95%: 2,20-24,93, respectivamente).

Estado Nutricional; Creches; Insuficiência de Crescimento; Criança


ABSTRACT

This study reports the nutritional status of children attending daycare centers in the Municipality of São Paulo, Brazil. A representative sample of 827 children under 84 months of age was evaluated. Anthropometric measurements and information on socioeconomic characteristics and morbidity were collected. The most prevalent nutritional deficit was stunting (7.0%; 95%CI: 3.60-10.40). Univariate analysis showed a significant association between stunting and age (< 24 months), OR = 2.10 (95%CI: 1.11-3.98); diarrhea one month prior to the data collection, OR = 2.84 (95%CI: 1.42-5.66); mother's or caregiver's schooling (< 3 years), OR = 3.87 (95%CI: 1.10-13.68); number of household members (> 7), OR = 3.02(95%CI: 1.46-6.22); and number of siblings (> 2) OR = 4.81 (95%CI: 1.72-13.44). In the multivariate analysis, only diarrhea one month prior to the data collection, OR = 2.54 (95%CI: 1.20-5.38) and > 2 siblings, OR = 7.40 (95%CI: 2.20-24.93), remained associated with stunting.

Nutritional Status; Child Day Care Centers; Failure to Thrive; Child


 

 

Introdução

O conhecimento e acompanhamento da situação nutricional constituem instrumento essencial para a aferição das condições de saúde da população infantil, além de oferecer medidas objetivas das condições de vida da população em geral. A importância da avaliação nutricional decorre da influência decisiva que o estado nutricional exerce sobre a morbi-mortalidade, o crescimento e o desenvolvimento infantil 1.

Dados de vários estudos reiteram a associação do estado nutricional infantil com as condições sócio-econômicas. Dentre as privações sociais associadas à desnutrição estão baixa renda, dieta inadequada, baixa escolaridade materna, precárias condições de habitação e saneamento, famílias numerosas, entre outras 2,3.

No Brasil, um número crescente de crianças dos estratos sócio-econômicos menos favorecidos dos centros urbanos vem sendo atendidas em creches gratuitas. A demanda por estes serviços é grande e tende a aumentar com a participação crescente da mulher no mercado de trabalho 4. A proporção de pré-escolares residentes no Município de São Paulo, Brasil, que freqüentam creches duplicou na última década, passando de 9,3% para 18,8% 5.

Estudos demonstram que crianças freqüentadoras de creches adoecem mais que as cuidadas exclusivamente em casa, sendo as doenças infecciosas as mais prevalentes, podendo estar associadas com a desnutrição, principalmente entre as crianças menores de 24 meses 6,7.

A rede municipal de São Paulo atende 84 mil crianças na faixa etária de 4 a 84 meses e estas permanecem grande parte de seu dia na creche. Assim, a vigilância nutricional constitui-se num programa essencial para esse importante contingente de crianças.

O presente estudo, portanto, buscou levantar o estado nutricional e identificar fatores associados ao déficit de crescimento dessas crianças.

 

Métodos

Amostragem

Foi selecionada uma amostra probabilística de creches do Município de São Paulo, utilizando-se um procedimento de amostragem por conglomerados em duas etapas 8.

Para garantir a representatividade das regiões do município, o sistema de referência para a primeira etapa de amostragem foi ordenado segundo regiões administrativas. Utilizando-se um procedimento de amostragem sistemática, obteve-se uma amostra de creches estratificada por região.

Na segunda etapa de amostragem foram sorteadas, nas creches selecionadas na primeira etapa, as crianças a serem avaliadas, totalizando 849.

Coleta de dados

Para caracterização da população de estudo foi preenchido um questionário com o responsável pela criança, por meio de entrevista individualizada, para obter informações referentes à identificação da criança, peso ao nascer e morbidade, tal como, ocorrência de diarréia e infecções no último mês, idade, sexo e escolaridade do responsável e a renda domiciliar per capita.

Para a avaliação antropométrica foram realizadas medidas de peso em balanças microeletrônicas portáteis da marca Tanita, com capacidade para 150kg e divisões correspondentes a 200g. Crianças menores de 24 meses foram pesadas no colo do entrevistador e o peso total deduzido do peso do entrevistador. A altura das crianças de até 23 meses de idade foi medida em infantômetro (modelo Arthag). As crianças entre 24 e 84 meses de idade foram medidas em pé, descalças, em um estadiômetro vertical desmontável construído pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde a partir de um microestadiômetro da marca Stanley. O treinamento, padronização e controle de qualidade das medidas antropométricas foram executados mediante as recomendações de Habicht 9 e Lohman et al. 10.

Análise dos dados

O ponto de corte considerado para avaliar tanto o déficit de altura quanto de sobrepeso foram dois desvios aquém e além da mediana do índice antropométrico na população de referência, segundo as recomendações do comitê de especialistas da Organização Mundial da Saúde 11. As prevalências de déficit nutricional e de sobrepeso, com os respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%), foram calculadas considerando-se o desenho amostral.

A medida de associação utilizada foi a razão de chances (odds ratio). Portanto, considerando o déficit de altura para idade como a variável dependente, foram calculadas as razões de chance não-ajustadas e ajustadas, com os respectivos intervalos de confiança de 95%, para as variáveis independentes de interesse usando-se o programa Stata (versão 7.0). Um modelo de regressão logística múltiplo foi constituído incluindo-se as variáveis que apareceram como estatisticamente significantes na análise univariada e aquelas que a literatura aponta como associadas ao déficit nutricional de crianças.

 

Resultados

Dentre o total de crianças selecionadas para o estudo, em 1999, 22 (2,7%) foram excluídas pela ausência de dados antropométricos ou por apresentarem valores extremos (peso ou altura superior a cinco desvios padrão do valor mediano para idade e sexo segundo o padrão de referência National Center for Health Statistics). Portanto, foram incluídas 827 crianças nesta análise, sendo que 49,5% eram do sexo feminino.

A distribuição das crianças por faixa etária foi de 14,0% menores de dois anos, 61,0% com idades entre dois e cinco anos e 24,0% maiores de cinco anos. Oitenta e seis por cento das crianças nasceram a termo e 9,5% apresentaram baixo peso ao nascer. Os problemas de saúde ocorridos no último mês mais referidos foram infecções de vias aéreas superiores (26,4%) e diarréia (10,2%).

Em relação às variáveis demográficas e sócio-econômicas dos responsáveis pelas crianças, 82,0% possuíam idade entre vinte e quarenta anos; 88,0% eram do sexo feminino, sendo que para 84,0% das crianças estudadas a mãe era a responsável; 61,0% possuíam menos de oito anos de estudo; 17,0% estavam desempregados e 77,0% tinham renda familiar per capita inferior a um salário mínimo.

A prevalência do déficit de altura (7,0%) foi 2,3 vezes superior ao esperado pela distribuição da população de referência, apontando a existência de desnutrição entre o grupo de crianças estudadas. Por outro lado, a prevalência de sobrepeso (3,5%) ultrapassou ligeiramente o percentual esperado pela distribuição de referência (Tabela 1).

 

 

Na análise univariada, os fatores que se associaram ao déficit nutricional foram: idade da criança (< 24 meses), relato de diarréia no mês anterior, escolaridade do responsável, número de moradores no domicílio (sete ou mais) e número de irmãos (dois ou mais). Na análise multivariada, entretanto, observou-se associação de retardo de crescimento apenas com os seguintes fatores: idade das crianças, relato de diarréia no mês anterior e número de irmãos (Tabelas 2 e 3).

 

 

 

 

Discussão

O déficit de altura para idade neste estudo foi superior ao esperado em populações bem nutridas nos Estados Unidos (2,3%) 11, ao observado por Silva 12 em crianças atendidas por creches públicas no Município de Niterói, Rio de Janeiro (5,3%) e por Monteiro & Conde 13 em crianças menores de cinco anos pertencentes às famílias de menor renda per capita do Município de São Paulo (3,9%).

Nas crianças freqüentadoras de creches municipais o déficit de altura para idade foi o índice nutricional menos satisfatório. Este resultado corrobora com o trabalho de Silva et al. 14 conduzido em creches das diferentes macrorregiões brasileiras (n = 10.667), que também verificou um déficit maior no índice altura para idade (12,6%) quando comparado aos outros índices avaliados de peso para altura (1,9%) e peso para idade (7,6%).

A prevalência de sobrepeso encontrada neste estudo indica risco reduzido de obesidade neste grupo de crianças. O resultado observado é semelhante ao descrito por Monteiro & Conde 13 em análise da tendência secular da obesidade em crianças menores de cinco anos no Município de São Paulo.

Foi observada uma associação importante entre a idade da criança e o déficit de altura, afetando especialmente as menores de 24 meses. É importante notar, entretanto, que estas representam o menor percentual de atendimento nas creches estudadas. Silva et al. 15 também observaram que de forma geral os programas de creches no Brasil favorecem as crianças acima de dois anos. Essas informações indicam, portanto, que uma parcela substancial de crianças mais vulneráveis são excluídas desse tipo de benefício.

A ocorrência de infecções respiratórias nas crianças foi mais relatada que episódios de diarréia no mês anterior, destacando-se, porém, que estas informações podem apresentar viés de recordação. Episódios freqüentes de infecções, principalmente diarréia e doenças respiratórias, podem influenciar o crescimento infantil 2. Benício et al. 5 identificaram uma ocorrência 2,5 vezes maior de doenças respiratórias em crianças freqüentadoras de creches.

Embora os episódios de diarréia ou doenças respiratórias no mês anterior não reflitam a experiência de morbidade da criança ao longo do tempo, a presença de diarréia neste estudo esteve associada ao déficit de estatura. Tal fato pode sugerir que talvez esta variável seja um indicador da ocorrência de diarréia de repetição, interferindo assim no estado nutricional.

No entanto, a questão que se levanta é se o atendimento nessas instituições pode propiciar cuidados de saúde para as crianças provenientes de população de baixa condição sócio-econômica. Silva et al. 15, em estudo transversal no Município de Embu, São Paulo, comparando crianças atendidas em creches com aquelas não-atendidas pertencentes à mesma comunidade, verificaram que a creche é fator de proteção para o estado nutricional e a melhora é observada quando o tempo de freqüência é superior a um ano.

Os fatores associados ao déficit de altura em nossas crianças foram semelhantes aos descritos em estudo realizado em pré-escolares no Estado de São Paulo 16,17. Estes achados são consistentes com a literatura, que mostra que grupos populacionais com condições sócio-econômicas desfavoráveis, número de irmãos no domicílio e episódios de diarréia, são determinantes das condições de saúde das crianças.

Este estudo avaliou o estado nutricional das crianças freqüentadoras de creches da rede Municipal de São Paulo e encontrou prevalência de retardo de crescimento 2,3 vezes superior ao padrão de referência, destacando a importância do acompanhamento destas para reverter o quadro de déficit nutricional.

 

Colaboradores

R. M. Fisberg foi responsável pela coordenação do estudo participando no delineamento, coleta, análise e interpretação dos dados e redação do artigo. D. M. L. Marchioni colaborou na interpretação e discussão dos resultados. M. R. A. Cardoso contribuiu na análise estatística.

 

Agradecimentos

À Wolney Lisboa Conde, Eduardo Alves, Marta Regina Queiroz, Inês Hiromi Hendo e Eneida S. Ramos Vicco. À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo pelo suporte financeiro (Processo 98/08095-9).

 

Referências

1. Monteiro CA. Velhos e novos males da saúde no Brasil: evolução do país e sua doenças. São Paulo: Editora Hucitec; 1995.        

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3. Victora CG, Barros FC, Vaughan JP. Epidemiologia da desigualdade. São Paulo: Editora Hucitec; 1998.        

4. Barros ADJ, Halpern R, Menegon AE. Creches públicas e privadas de Pelotas, RS: aderência à norma técnica. J Pediatr (Rio J) 1998; 74:397-403.        

5. Benício MHA, Cardoso MRA, Gouveia NC, Monteiro CA. Tendência secular da doença respiratória na infância na Cidade de São Paulo (1984 ­ 1996). Rev Saúde Pública 2000; 34 Suppl: 91-101.        

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9. Habicht JP. Estandarización de metodos epidemiologicos cuantitativos sobre el terreno. Bol Oficina Sanit Paname 1974; 76:375-84.        

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11. Organización Mundial de la Salud. El estado físico: uso e interpretación de la antropometria. Geneva: Organización Mundial de la Salud; 1995. (Série de Informes Técnico 854).        

12. Silva JV. Estado nutricional de ferro de crianças menores de 5 anos assistidas em creches públicas no Município de Niterói, Rio de Janeiro [Tese de Doutorado]. São Paulo: Universidade Federal de São Paulo; 1999.        

13. Monteiro CA, Conde WL. Tendência secular da desnutrição e da obesidade na infância na Cidade de São Paulo (1974-1996). Rev Saúde Pública 2000; 34 Suppl:52-61.        

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15. Silva MV, Ometto AMH, Furtuoso MCO, Pipitone MAP, Sturion, GL. Acesso à creche e estado nutricional das crianças brasileiras: diferenças regionais, por faixa etária e classes de renda. Rev Nutr 2000; 13:193-9.        

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17. Guimarães LV, Latorre MRDO, Barros MBA. Fatores de risco para ocorrência de déficit estatural em pré-escolares. Cad Saúde Pública 1999; 15:605-15.        

 

 

Endereço para correspondência
Regina Mara Fisberg
Av. Dr. Arnaldo 715
São Paulo, SP
01246-904, Brasil.
rfisberg@usp.br

Apresentado em 12/Ago/2002
Versão final reapresentada em 20/Ago/2003
Aprovado em 15/Dez/2003

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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