ARTIGO ARTICLE
A hipertensão arterial sob o olhar de uma população carente: estudo exploratório a partir dos conhecimentos, atitudes e práticas
High blood pressure from the perspective of a low-income population: an exploratory study of knowledge, attitudes, and practices
Márcia Theophilo LimaI; Julia Sursis N. Ferro BucherII; José Wellington de Oliveira LimaIII
IAssessoria de Comunicação e Educação em Saúde, Coordenação Regional do Ceará, Fundação Nacional de Saúde, Fortaleza, Brasil
IIMestrado em Psicologia, Universidade de Fortaleza, Fortaleza, Brasil
IIIDepartamento de Saúde Pública, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, Brasil
RESUMO
Este trabalho investiga conhecimentos, atitudes e comportamentos para hipertensão arterial entre adultos de uma comunidade de baixa renda, situada em Caucaia, Ceará, Brasil, e as razões que norteiam as suas atitudes com relação aos fatores de risco comportamentais tabagismo, hábito de ingerir bebidas alcoólicas, ingestão de sal e gorduras na dieta e a prática de exercícios físicos. Foram entrevistadas 228 pessoas, utilizando um questionário estruturado e feitos 13 grupos focais de discussão para aprofundar as atitudes manifestadas. Os achados revelam que as razões norteadoras dos comportamentos e atitudes investigadas estão ligadas a emoções, a questões sociais e econômicas. As mudanças comportamentais representam o abandono de alguns prazeres para pessoas que lutam para sobreviver em condições de vida de pobreza. Viver em situação de pobreza interfere nas possibilidades de mudança de comportamentos.
Palavras-chave: Hipertensão; Comportamento; Fatores de Risco; Grupos Focais
ABSTRACT
Knowledge, attitudes, and behaviors related to high blood pressure among adults in a low-income community in Caucaia, Ceará, Brazil, as well as factors influencing their attitudes toward behavioral risk factors (smoking, alcohol consumption, salt and fat consumption, and lack of physical exercise) were studied. A total of 228 individuals were interviewed using a structured interview protocol. Thirteen focus groups provided a more in-depth analysis of attitudes. According to the findings, the reasons behind behaviors and attitudes are linked to emotions and socioeconomic issues. Behavioral changes involve giving up certain pleasures, for people who are struggling to survive in living conditions imposed by poverty. Living in poverty interferes with the possibility of behavioral change.
Key words: Hypertension; Behavior; Risk Factors; Focus Group
Introdução
A hipertensão arterial (HA), associada a fatores do estilo de vida, é um fator de risco importante para a ocorrência de doenças cardiovasculares como doenças isquêmicas do coração, insuficiência cardíaca a acidente vascular cerebral 1.
No Brasil, alguns estudos de base populacional estimaram a prevalência da HA entre 20,0% a 30,0%. Um estudo feito na região urbana de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, para avaliar a prevalência de HA e sua associação com fatores biológicos, sócio-econômicos e de exposição ambiental encontrou uma prevalência de 19,2% pelo critério de 160/95mmHg, incluindo os indivíduos que usavam medicamentos anti-hipertensivos, e, pelo critério de 140/90mmHg, a prevalência foi de 29,8% 2. Um outro trabalho feito no Rio de Janeiro, na Ilha do Governador, encontrou como resultado uma prevalência de 24,9% pelo critério de 160/95 mmHg 3.
São atribuídos como riscos ou causas para elevação da pressão arterial fatores constitucionais (idade, sexo, raça, obesidade); fatores ambientais (ingestão de sal, cálcio e potássio, álcool, gorduras e tabagismo); fatores ambientais ligados ao trabalho (estresse, agentes físicos e químicos) e fatores ligados à classe social a qual o indivíduo pertence 4,5. Dessa forma, para o seu tratamento, além da medicação prescrita, os profissionais de saúde recomendam a adoção de práticas que possam minimizar os fatores de risco acima citados. Assim sendo, o indivíduo hipertenso, para tratar ou prevenir-se das complicações da HA, deve, além de medicar-se, ter atitudes para mudar antigos comportamentos ou adotar novos hábitos.
A importância da relação entre conhecimentos, atitudes e práticas para o planejamento e elaboração de intervenções educativas junto a pacientes portadores de doenças cardiovasculares é reconhecida por pesquisadores, porém os mesmos consideram a relação entre essas variáveis complexa porque envolve fatores sociais, ambientais e emocionais 6,7,8.
Serão apresentados, a seguir, os resultados de um estudo empírico, realizado no Estado do Ceará, Brasil, que foram analisados à luz de outras pesquisas sobre o mesmo tema. Dessa forma, discutiremos os resultados de uma investigação sobre os conhecimentos, as atitudes e os comportamentos de risco para a HA em uma amostra de indivíduos moradores de uma comunidade carente, que tem uma prevalência de 23,96%, pelo critério de 140/90mmHg, para a HA na população adulta a partir de trinta anos 9. Além disso, também investiga os motivos norteadores das atitudes dos indivíduos pesquisados com relação aos comportamentos de risco para HA: o sedentarismo, a ingestão de sódio e gorduras na dieta, o uso do álcool e o tabagismo.
O método
Trata-se de um estudo exploratório sobre a HA, realizado em uma população urbana de baixa renda do Conjunto Habitacional Metropolitano, situado no Município de Caucaia, em uma área da periferia de Fortaleza, Ceará. Buscou-se, através da articulação das metodologias quantitativa e qualitativa, levantar conhecimentos sobre a doença hipertensiva, identificar comportamentos de risco e conhecer atitudes com relação a esses hábitos. Além disso, foram acrescentados à investigação das razões sentimentos e crenças que envolvem o comportamento das pessoas com relação ao tabagismo, ao consumo de bebidas alcoólicas, à ingestão de sal e gorduras na dieta e à prática de exercícios físicos.
A escolha dos participantes da pesquisa foi feita através de uma tabela de números aleatórios. Para tanto, buscou-se o cadastro individual dos indivíduos moradores do Conjunto Habitacional Metropolitano, com idade acima de trinta anos, utilizado na pesquisa Epidemiologia da Hipertensão Arterial em uma População Urbana de Baixa Renda 9 realizada na mesma população cuja publicação encontra-se no prelo. Foram entrevistados 118 mulheres e 110 homens, fazendo um total de 228 pessoas. Os critérios de inclusão para entrevista foram os seguintes: ser morador do Conjunto Habitacional Metropolitano, ter idade igual ou superior a trinta anos e igual ou inferior a sessenta anos.
A coleta de dados ocorreu em duas etapas. Na primeira, os dados foram coletados a partir de entrevista individual, por meio da aplicação de um questionário composto com questões fechadas e abertas, caracterizando uma pesquisa quantitativa. Nesse momento, foram investigados aspectos sócio-demográficos, os conhecimentos sobre a doença hipertensiva, a prática dos comportamentos anteriormente citados e as atitudes dos indivíduos com relação aos mesmos.
Para verificar as atitudes, usamos a escala de Linkert 10 com pontuação variando de um a cinco. Através de respostas a itens que apresentavam graus diferentes de reação positiva ou negativa frente ao comportamento esperado, verificou-se a atitude. Foram elaboradas questões compostas por uma série de afirmações, relacionadas ao comportamento que pretendíamos investigar. Cada item era seguido de cinco alternativas, indo desde o muito de acordo ao total desacordo.
Os dados obtidos através da aplicação do questionário foram arquivados e analisados para obtermos uma descrição da população quanto aos aspectos sócio-demográficos, conhecimentos, práticas e atitudes. Esses resultados nos permitiram aprofundar a investigação sobre os comportamentos de risco porque nos subsidiaram com informações importantes que nortearam os roteiros de entrevistas nos grupos focais.
Na segunda etapa, usamos, como meio de coleta de informações qualitativas, a técnica de grupos focais de discussão. Foram feitos 13 grupos, divididos por temas, utilizando um roteiro básico para cada tema, a partir do qual aprofundamos as questões de interesse para o estudo. Os grupos focais nos deram a oportunidade de obter, através das falas dos indivíduos, informações mais apuradas para que pudéssemos compreender as razões, os significados e as crenças que poderiam explicar as atitudes identificadas.
O grupo focal é uma entrevista com um grupo de pessoas sobre um tópico específico. Ele busca colher informações que possam proporcionar a compreensão de percepções, crenças, atitudes sobre um tema, produto ou serviços. Difere da entrevista individual por basear-se na interação entre as pessoas para obter os dados necessários à pesquisa. A sua formação obedece a critérios previamente determinados pelo pesquisador, de acordo com os objetivos da investigação, cabendo a esse a criação de um ambiente favorável à discussão, que propicie aos participantes manifestar suas percepções e pontos de vista 11,12,13.
A seleção dos participantes dos grupos se pautou na análise quantitativa realizada na primeira fase da pesquisa. Foi feita a partir do somatório dos pontos dos itens sobre cada um dos comportamentos analisados neste estudo. Foram chamados a participar aqueles sujeitos que tinham pontos mais baixos na escala, demonstrando atitude negativa para o tratamento, dieta e prática de exercícios físicos e atitude positiva para o uso de bebida alcoólica e tabagismo.
Todo o material coletado a partir dos grupos focais de discussão foi analisado com a finalidade de buscar, a partir de sua organização, a compreensão das razões que norteiam as atitudes manifestadas pelos indivíduos. Para tanto, os resultados dos grupos focais foram transcritos, lidos e organizados em mapas de associação de idéias, nos quais todo diálogo foi transposto e ordenado em modelos de acordo com cada tema de discussão dos grupos. Partindo dessa ordenação, foram retirados trechos do diálogo nos quais os argumentos construídos permitiram uma melhor compreensão dos sentidos buscados nos objetivos da pesquisa. Esses trechos formam os diagramas de significações que visam entender a construção dos argumentos e produzir o sentido no contexto do diálogo 14.
Os indivíduos foram esclarecidos quanto aos objetivos dessa pesquisa, respeitando-se a recusa daqueles que decidiram não participar, em qualquer de suas etapas. Antes de obtermos o consentimento individual informado pelos participantes, realizamos, na sede da Associação Comunitária do Conjunto Habitacional Metropolitano, uma reunião com seus integrantes para apresentar o projeto. Nesse momento, as intenções foram divulgadas, e as dúvidas, esclarecidas.
Resultados
Com relação aos conhecimentos sobre a HA, os resultados demonstram que a população estudada tem suas próprias percepções. De acordo com as respostas dadas na entrevista individual, encontramos que os entrevistados estabelecem relação entre as emoções e a ocorrência da HA. Entretanto, não há clareza se esta relação é de causa, efeito ou se os problemas emocionais representam a doença em si. Além disso, encontramos que a pressão alta é concebida, ao mesmo tempo, como problema de coração, alteração da temperatura do corpo e um problema circulatório.
Quando indagamos sobre o conceito, as causas, conseqüências e os sintomas da doença hipertensiva, os entrevistados citaram os problemas emocionais: "ansiedade, depressão, angústia, desânimo, agitação dos nervos, estado de nervo, raiva, preocupação, aperreio, estresse, loucura, quentura no corpo, dor de cabeça, dor na vista, tontura, vexame no coração". Além disso, encontramos que a pressão alta também é concebida como problema de coração, alteração da temperatura do corpo e como um problema circulatório "um sangue grosso querendo parar", "o sangue esquentando e sobe pra cabeça", "movimento do sangue alterado" e "agitação do sangue".
Sobre os comportamentos de risco para HA, os resultados encontrados (Tabela 1) demonstram que a maior parte dos entrevistados não fuma, não consome bebidas alcoólicas e não pratica exercícios físicos. Com relação à ingestão de gorduras na dieta, observamos que é um hábito para 56% dos entrevistados, e que o uso do sal de cozinha é uma prática predominante entre os sujeitos entrevistados.
As atitudes e significações manifestadas
A atitude para o tabagismo está coerente com a prática manifestada. Sobre a satisfação imediata relacionada ao fumo, 65% dos entrevistados afirmaram que não gostam de cigarro. Para o grau de satisfação, encontramos que 46% dos entrevistados afirmaram que se sentem mal em estar com alguém que fuma, e 21%, que se sentem muito mal.
Através das informações obtidas nos grupos focais, o tabagismo está relacionado ao prazer e ao vício. Os depoimentos de indivíduos fumantes demonstraram que o hábito de fumar, no início, é "(...) um divertimento, mas só que não é divertimento, é uma doença pra gente, só que a gente não pensa em função da doença (...)" Nesse momento, não existe a devida percepção de que o fumo traz males para a saúde. O vício ao tabagismo é abordado como a vontade de fumar que "deve vim do sangue". Além disso, o viciado "(...) em todo canto ele fuma, ele tá em qualquer canto... é mal-educado".
Observamos também que as justificativas apontadas para não abandonar o fumo se relacionam à ausência de desconforto e ao prazer sentido ao fumar um cigarro"(...) eu não tinha tosse, eu não tinha fraqueza, eu não tinha falta de apetite de comer, tem gente que fuma muito e tem falta de apetite, aí eu sempre dizia quando eu vê que o cigarro tá fazendo mal eu deixo de fumar (...). Não deixo não que não tá fazendo mal e eu acho bom, é um divertimento que eu tenho (...)" (Grupo focal sobre tabagismo).
A ingestão de bebida alcoólica também não é uma prática para a maioria dos entrevistados neste estudo. Ao serem questionados sobre a satisfação sentida em ingerir bebida alcoólica, 67% afirmaram não gostar do álcool. Quanto ao grau de satisfação em conviver com a bebida alcoólica, 57% afirmaram que se sentem mal, e 33%, muito mal.
Da mesma forma que no tabagismo, quem consome o álcool "(...) é o viciado que num pode ver a bebida que quer beber". Além disso, a população estudada considera que "(...) problema incentiva muito, conta muito pra levar uma pessoa à bebida". Nesse sentido, os problemas apontados foram a "falta de emprego" e "(...) muita dívida aí às vezes nem tem dinheiro pra pagar".
Por outro lado, também observamos que existem representações diferentes sobre a forma de beber. A bebida pode ser "só por esporte" ou "bebida social", "bebida alterada", "bebida calma" e "bebida viciada". A "bebida por esporte" está relacionada à festa e à diversão com a família e os amigos. A "bebida alterada" se relaciona com o delírio provocado pela embriaguez. Com a "bebida calma", o indivíduo só faz mal a si próprio, não perturba os que estão a sua volta, e, finalmente, o viciado bebe todos os dias.
Um aspecto importante sobre a bebida alcoólica é que o álcool é uma droga legal, ou seja, sua produção não é clandestina e sua propaganda aparece livremente em todos os meios de comunicação. Então, ao mesmo tempo em que a bebida alcoólica provoca tantos males, ela também é aceita socialmente. Na discussão de grupo sobre o tabagismo com homens, encontramos uma fala que demonstra com clareza que esse fato é percebido e que pode ser um fator mobilizador para o hábito de usar a bebida alcoólica."(...) a bebida não é tão ruim não, ela tá no meio da sociedade, se segure quem quiser" (Grupo focal sobre tabagismo).
Portanto, observamos que, pelo fato de existir a aceitação social da bebida, cabe ao indivíduo controlar o seu uso. Nesse sentido, a sua utilização é um hábito complexo por estar relacionado a questões sociais e emocionais. Em torno dessa prática, encontramos opiniões que a defendem e outras que a condenam. Neste estudo, não achamos evidências de que, sob o ponto de vista dos entrevistados, a bebida alcoólica, em si, seja prejudicial. Os prejuízos apontados por essas pessoas estão mais relacionados à forma e à freqüência de como é usada.
A prática de exercícios físicos não surgiu como um hábito freqüente entre os sujeitos que participaram da pesquisa. Por outro lado, ao serem perguntados sobre a satisfação em se exercitar, 51% dos entrevistados afirmaram gostar de praticar exercícios, 39% não gostam, e 10% ficaram no nível intermediário. Para o grau de satisfação, encontramos que 119 (52%) se sentem bem quando fazem exercícios físicos, e 24 (11%) se sentem muito bem.
Para o grupo pesquisado, praticar exercícios físicos é importante para a saúde, porque movimenta o corpo e "queima" os excessos de gorduras; traz o preparo físico, prolongando a vida; é bom para os nervos, sangue, cérebro e proporciona mais disposição. Sob o ponto de vista do grupo, o sedentarismo prejudica o corpo, porque "cria" colesterol e aumenta a gordura do corpo. O quadro abaixo apresenta as significações dos grupos sobre a prática de exercícios físicos (Figura 1).
Da mesma forma que esses sujeitos, o campo biomédico também concebe que a prática de exercícios físicos proporciona ao indivíduo melhor qualidade de vida, porque ativa a circulação sangüínea através do movimento, melhorando o funcionamento cardiovascular, auxilia na redução do peso corporal, além de proporcionar o relaxamento, diminuindo o estresse 15.
Uma outra informação relevante obtida foi a de que o trabalho doméstico "a luta de casa" e a atividade profissional, no caso dos homens, eram os exercícios físicos mais praticados. Entendemos que a "luta de casa" compreende os trabalhos domésticos de lavar e passar roupas, cozinhar, limpar a casa e cuidar das crianças. Nesse sentido, podemos citar o diálogo na Figura 2.
Ao se esforçarem para fazer o trabalho de casa, estão desprendendo energia física. Necessitam de coragem para enfrentar uma "luta" que se repete dia a dia, que é uma obrigação e toma todo o seu tempo. Nesse caso, para praticar outras atividades físicas, elas teriam que buscar mais coragem e gastar mais energia física. Percebemos que a "luta de casa" é um fator desmobilizante para o comportamento em discussão, porque toma o tempo da dona-de-casa e, também, provoca o desgaste físico. Para desempenhar o trabalho doméstico, essas mulheres se dedicam e têm que empregar esforço e empenho.
Com relação aos hábitos alimentares, ao verificarmos a satisfação relacionada com a ingestão de alimentos com sal, encontramos 109 (48%), e 32 (14%) afirmaram que se sentiriam mal e muito mal em deixar de ingerir comidas com sal.
Ao perguntarmos sobre a ingestão de gorduras, buscamos identificar a predisposição desses sujeitos para deixar de comer comidas gordurosas e a satisfação pessoal em degustar esse tipo de alimento. Nesse caso, para a questão sobre a sensação em deixar de ingerir comidas gordurosas, 126 (55%) pessoas afirmaram se sentir bem, e 28 (12%), muito bem. Quando questionamos sobre o grau de satisfação em comer esse tipo de alimento, as respostas se distribuíram em 119 (52%) no item "mal", 16 (7%) "muito mal", 32 (14%) no nível intermediário.
O uso do sal de cozinha nos alimentos foi ressaltado como necessário, porque dá mais sabor à comida, e, além disso, o sal fortalece o corpo. Também percebemos que "comer frio a sal" não dá o mesmo prazer de comer. Vejamos a fala a seguir: "É porque a comida bem boa de sal é tão gostoso (...). Você passa pra comer fria a sal não tem gosto nenhum" (Grupo focal masculino sobre dieta alimentar).
A relação entre alimentação e saúde foi enfocada de duas formas. Na afirmação "(...) me sinto com um pouco de saúde porque realmente eu gosto de frutas, eu gosto de leite, eu gosto de comer abacate" percebemos que a saúde está relacionada com o tipo de alimento ingerido. Por outro lado, a ausência de qualquer sintoma significa estar bem, com saúde, e poder comer qualquer coisa: "Eu como carne de criação, com toicinho, feijão, rapadura, eu encho a barriga e não sinto nada. Eu acho que é saúde".
Neste estudo, identificamos três fatores importantes que influenciam na adoção das práticas alimentares. O fator econômico, impedindo a liberdade para escolher o alimento mais adequado, o aspecto emocional ligado ao prazer em degustar determinados alimentos e os hábitos alimentares arraigados na vida desses sujeitos. Vejamos o diálogo abaixo realizado com grupo focal sobre dieta alimentar:
"Qual a dificuldade que a Sra. tem para fazer dieta?"
"Tem uns que come com sal e uns que come sem sal. Aí eu acho ruim né?"
"Qual daquelas comidas ali [ambiente preparado com representação de alimentos]seriam mais saudáveis para a Sra. que tem pressão alta?"
"O leite né? Verdura, arroz né? Macarrão, pão...Ghuchuzinho é bom pra pressão alta né?"
"A Sra. compra na sua casa essas comidas que são melhores para a Sra.?"
"Às vezes eu compro né? Quando tá melhor né? Quando as condições tão melhor"
Discussão
Os comportamentos em saúde têm sido estudados com o intuito de nortear as estratégias de Educação em Saúde, para mudar práticas consideradas insalubres pelas instituições de saúde. Sobre esse aspecto, os pesquisadores têm feito trabalhos para investigar os conhecimentos, as atitudes e práticas para diversas doenças. Um estudo na Ilha de Mahé, República de Seychelles, feito com a população adulta (504 homens e 563 mulheres, com idade entre 25 e 64 anos) para examinar conhecimentos, atitudes e práticas para HA demonstra que, apesar das pessoas terem conhecimento sobre a doença, poucos mostram motivação real para mudar de hábitos. São apontadas como explicações para justificar esse fato a evolução silenciosa e a natureza crônica da hipertensão. A existência de modelos de estilos de vida feitos por comportamentos, atitudes, crenças, hábitos comuns a todos e condições sociais que tendem a ser estáveis através do tempo, o prazer individual por comportamentos agradáveis como o tabagismo, comida farta, salgada e o sedentarismo são um poderoso impedimento para a adoção de comportamentos como atividade física regular, moderação no sal, álcool, ingestão de calorias e abstinência de fumo 7.
Um outro estudo, feito para determinar se o conhecimento sobre a doença cardiovascular numa população de 187 adultos americanos tinha relação com a redução de comportamentos de risco para essas doenças, mostrou que, entre os indivíduos estudados, os conhecimentos sozinhos não se traduziam em práticas saudáveis para reduzir os riscos 8.
Com relação à HA, a ciência tem um discurso competente que mostra com clareza as suas causas conhecidas ou ainda em estudo, manifestações clínicas, conseqüências e define as formas de tratamento adequadas. Entretanto, neste estudo, percebemos que o discurso da medicina sobre esta doença não é absorvido pelos indivíduos em sua integridade, mas de uma forma que somente podemos compreender quando nos despojamos de seu conteúdo para entender a compreensão internalizada pelos hipertensos ou por aqueles que tentam se proteger da sua ocorrência.
Quanto aos sintomas, a literatura médica afirma que esta patologia não tem sintomatologia própria. É uma doença que permanece assintomática e que, quando aparecem as queixas do paciente, se referem às conseqüências das tensões alteradas sobre outros órgãos. A HA pode se arrastar por décadas e, se não surgirem complicações, apresenta algumas modificações clínicas de pouca importância. Nesse sentido, este autor afirma que as queixas mais importantes são: ansiedade e irritabilidade, labilidade emocional, palpitações, perturbações visuais, vertigens, tonteiras, cefaléia e sangramento pelas narinas 16.
Porém, este estudo demonstrou que as pessoas, ao serem questionadas sobre o que sente um indivíduo que tem pressão alta, se referiram a sintomas como dores de cabeça, dores no peito, tontura, alterações nos batimentos cardíacos, alterações visuais e agitação. Um outro trabalho, feito em Niterói, no Estado do Rio de Janeiro, também apresentou como resultado que sujeitos hipertensos atribuem à HA sintomas claramente definidos. Pessoas hipertensas, ao serem questionadas sobre o que sentem quando a pressão está alta, se referem a sintomas como dores de cabeça, dores no peito, tontura, alterações nos batimentos cardíacos, alterações visuais e agitação. Percebemos que, apesar da medicina caracterizar os sintomas da doença hipertensiva como inespecíficos, as pessoas apresentam como sintomatologia sensações corpóreas bem específicas 17.
Sobre a apreensão do discurso teórico pelos grupos populares, a literatura coloca que essas pessoas são perfeitamente capazes de aprender a significação do discurso teórico. E isso é apreendido em outra linguagem, com outra vestimenta, porque é acrescido de hábitos e habilidades arraigados no corpo e de representações construídas no interior do cotidiano aprendidas através de práticas, das relações interpessoais e da interação das pessoas com seu meio 18,19,20.
De acordo com os resultados apresentados, consideramos que as explicações aos comportamentos e atitudes manifestadas giraram em torno de dois pontos fundamentais: o prazer em vivenciar os comportamentos questionados e a situação social e econômica vivida pelo grupo.
Sobre o hábito de fumar, encontramos que o tabagismo está relacionado à necessidade da obtenção de prazer e ao vício. A ingestão de bebida alcoólica está relacionada ao prazer, não sendo o álcool, em si, um "vilão". A forma e a freqüência com que é usado é o que lhe confere a característica de insalubridade.
Dias 21, ao discorrer sobre o tema compulsões e dependências, refere que são comportamentos difíceis de serem eliminados, que atrapalham a vida de um indivíduo e que há pouco ou nenhum controle para impedir a sua ocorrência. Nesse sentido, atos como o tabagismo, comer, alcoolismo e drogadição são práticas que aliviam uma situação de angústia vivida pelo indivíduo ou advém de um vínculo compensatório estabelecido pelo sujeito para suprir as funções de cuidar, proteger e orientar.
Com relação ao hábito de ingerir sal e gorduras na alimentação, observamos que, sob o ponto de vista dos entrevistados, a eliminação do excesso de sal e dos alimentos gordurosos é uma alternativa importante para a saúde, porém esbarra na falta de condições econômicas e nos sentimentos de prazer vividos por esses indivíduos ao ingerir comidas com sal e as gorduras.
Brunner et al. 22 consideram que a aderência à dieta pode ser influenciada por fatores como a percepção de risco de doença no futuro e pela natureza da intervenção junto ao paciente. Para esses pesquisadores, o grande desafio é manter a dieta pelo maior tempo possível. Dessa forma, a recomendação dietética deve vir acompanhada de estratégias de educação em saúde voltadas à população em geral ou que envolvam o aconselhamento individual.
Concordamos que a manutenção da alimentação dietética é muito difícil. Porém, consideramos que entra em questão a disponibilidade individual para arcar com o ônus do comportamento solicitado. Sob quais limites estão vivendo as pessoas que precisam mudar seus hábitos alimentares. Encontramos, na literatura, que o hábito de um indivíduo ou grupo também é gerado através de condições socialmente determinadas. Porém, é também dito que da mesma forma que um hábito explica os comportamentos regulares, também é produtor da improvisação, permitindo a adaptação a uma nova realidade social. O indivíduo tem consigo estruturas construídas interiormente que lhe permitem exteriorizar práticas de convivência social e que também são orientadas por suas aspirações e afetos 23.
A atividade física fora da rotina de trabalho não foi uma prática observada nesta pesquisa. Os homens e mulheres dessa comunidade conhecem as vantagens da prática de exercícios físicos para a saúde. Existe uma tendência à valorização da atividade laboral como atividade física por ser uma realidade no cotidiano desses sujeitos o desgaste de energia no trabalho doméstico e profissional.
De acordo com a literatura sobre esse assunto, podemos dizer que, para o conhecimento biomédico, as duas formas de atividade física, no trabalho e de lazer, são fatores que protegem o indivíduo para a ocorrência de doenças cardiovasculares. Os indivíduos mais ativos fisicamente no trabalho têm taxas mais baixas de doença coronariana se comparados às pessoas que têm empregos sedentários. Também encontramos que a prática regular de atividades de lazer é um fator de proteção para a ocorrência de eventos cardiovasculares 24,25,26,27.
A nossa investigação não tem dados para afirmar qual a quantidade de calorias perdidas pelos indivíduos entrevistados no seu cotidiano de trabalho. Para tanto, seria necessário um estudo específico sobre esse tema. Porém, não consideramos os indivíduos que participaram deste estudo sedentários. Tanto os homens, através das suas atividades profissionais, como as mulheres, em suas tarefas domésticas, desprendem energia física.
Considerações finais
Os objetivos que nortearam esta pesquisa procuraram ir além do que um levantamento de conhecimentos, atitudes e práticas podem mostrar como resultado de investigação. Através das informações colhidas na entrevista individual, nos grupos focais e das observações feitas no decorrer do trabalho de campo, foi possível chegar a algumas conclusões. Percebemos que as características sócio-econômicas desse grupo determinam os seus estilos de vida e podem ser um dos obstáculos para a mudança de comportamentos. Conforme observamos no trabalho de campo, os moradores desse conjunto habitacional vivem com privações financeiras, de serviços públicos e infra-estrutura para moradia que dificultam a adesão a um estilo de vida saudável.
Além disso, um outro fator observado como determinante na escolha de estilos de vida é o prazer, sentido individualmente, ao praticar comportamentos como fumar, beber bebidas alcoólicas e comer. Nesse sentido, o abandono de um desses hábitos pode significar a perda de um prazer, em um contexto de vida no qual as oportunidades de satisfação pessoal são muito poucas.
Um outro aspecto importante a ser relatado é o de que a população investigada conhece a HA e os fatores comportamentais de risco que estão relacionados a sua ocorrência. Esse conhecimento está muito relacionado a vivências no próprio corpo, entre os membros da família ou no ambiente onde vivem e difere, em alguns pontos, do conhecimento elaborado pela ciência.
A análise feita neste trabalho traz contribuições importantes para a saúde pública e demonstra a importância que os conhecimentos e emoções, que compõem as significações manifestadas pela população investigada, têm para o processo de mudança em estilos de vida. Sem compreender como as pessoas pensam e se sentem diante de seus problemas não podemos concretizar um processo educativo que vislumbre a mudança e sustentação de estilos de vida saudáveis.
Sob esse ponto de vista, caberia aos profissionais que atuam no campo da saúde a defesa de propostas de educação em saúde pautadas na capacitação de indivíduos e comunidades, considerando o sujeito em seu ambiente, sua compreensão e significações sobre a realidade em que está inserido. Consideramos esses aspectos fundamentais para o desenvolvimento de habilidades que lhes permitam uma postura mais crítica diante de seus problemas de saúde, com capacidade de exercer um controle sobre si mesmo e o ambiente em que vivem.
Colaboradores
M. T. Lima participou na elaboração do projeto, coleta e análise de dados. W. O. Lima colaborou na análise de dados. Todos os autores contribuíram na revisão de literatura e revisão final do artigo.
Referências
1. Stokes J 3rd, Kannel WB, Wolf PA, D'Agostinho RB, Cupples A. Blood pressure as a risk factor for cardiovascular disease. The Framingham Study 30 years of follow-up. Hypertension 1989;13:113-8.
2. Fuchs FD, Moreira LB, Moraes RS, Bredemeier M, Cardoso SC. Prevalência de hipertensão arterial sistêmica e fatores associados na região urbana de Porto Alegre. Estudo de base populacional. Arq Bras Cardiol 1995; 63:473-9.
3. Bloch KV, Klein CH, Silva NAS, Nogueira AR, Campos LHS. Hipertensão arterial e obesidade na Ilha do Governador Rio de Janeiro. Arq Bras Cardiol 1994; 62:17-22.
4. Ford ESE, Cooper RS. Risk factors for hypertension in a national cohort study. Hypertension 1991; 18:598-606.
5. Lessa I. Epidemiologia da hipertensão arterial. In: Lessa I, organizador. O adulto brasileiro e as doenças da modernidade. Epidemiologia das doenças crônicas não-transmissíveis. São Paulo: Editora Hucitec/Rio de Janeiro: ABRASCO; 1998. p. 77-96.
6. Silagy C, Munir J, Coulter A, Thorogood M, Roe L. Cardiovascular risk and attitudes to lifestyle: what do patients think? Br Med J 1993; 306:1657-60.
7. Aubert L, Bovet P, Gervasoni JP, Rwebogora A, Waeber B, Paccaud P. Knowledge, attitudes and pratices on hypertension in a country in epidemiological transition. Hypertension 1998; 31:1136-45.
8. Suminski RR, Anding J, Smith DW, Zhang JJ, Utter AC, Kang JIE. Risk and reality: the association between cardiovascular disease risk factor knowledge and selected risk-reducing behaviors. Fam Community Health 1999; 21:51-62.
9. Feijão AMM. Epidemiologia da hipertensão arterial em uma população urbana de baixa renda [Dissertação de Mestrado]. Fortaleza: Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Ceará; 2000.
10. Rodrigues A. Psicologia social. 12a Ed. Petrópolis: Editora Vozes; 1988.
11. Patton MQ. Qualitative evaluation and research methods. 2a Ed. California: Sage Publications; 1990.
12. Minayo MCS. O desafio do conhecimento. Pesquisa qualitativa em saúde. 3a Ed. São Paulo: Editora Hucitec/ABRASCO; 1994.
13. Carlini-Cotrim B. Potencialidades da técnica qualitativa grupo focal em investigações sobre abuso de substâncias. Rev Saúde Pública 1996; 30:285-93.
14. Spink MJP. Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. São Paulo: Cortez Editora; 1999.
15. Bloch KV. Fatores de risco cardiovasculares para o diabetes mellitus. In: Lessa I, organizador. O adulto brasileiro e as doenças da modernidade. Epidemiologia das doenças crônicas não-transmissíveis. São Paulo: Editora Hucitec/Rio de Janeiro: ABRASCO; 1998. p. 43-72.
16. Kaplan NM. Treatment of hypertension: nondrug therapy. In: Kaplan NM, editor. Clinical hipertension. Baltimore: Williams & Wilkins; 1998. p. 159-79.
17. Alves MGM. A voz do hipertenso: representações sociais da hipertensão arterial. Um estudo de caso em Jurujuba, Niterói RJ [Dissertação de Mestrado]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz; 1997.
18. Freire P, Nogueira A. Que fazer: teoria e prática em educação popular. Petrópolis: Editora Vozes; 1993.
19. Castiel LD. O buraco e o avestruz: a singularidade do adoecer humano. Campinas: Papirus Editora; 1994.
20. Alves PC, Rabelo MC. Repensando os estudos sobre representações sociais e práticas em saúde/ doença. In: Alves PC, Rabelo MC, organizadores. Antropologia da saúde: traçando identidade e explorando fronteiras. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/Editora Relume Dumará; 1998. p. 107-21.
21. Dias VRCS. Sonhos e psicodrama interno na análise psicodramática. São Paulo: Editora Ágora; 1996.
22. Brunner E, White I, Thorogood M, Bristw A, Curle D, Marmot M. Can dietary interventions change diet and cardiovascular risk factors? A meta-analysis of randomized controlled trials. Am J Public Health 1997; 87:1415-22.
23. Pinto L. Pierre Bourdieu e a teoria do mundo social. Rio de Janeiro: Editora FGV; 2000.
24. Paffenbarger RS, Hyde RT, Wing AL. Phisical activity and incidence of hypertension in college alummi. Am J Epidemiol 1983; 117:245-57.
25. Paffenbarger RS, Lee IM. Intensity of physical activity related to incidence of hypertension and all-cause mortality: an epidemiological view. Blood Pressure Monit 1997; 2:115-23.
26. Young DR, Haskell WL, Taylor CB, Fortmann SP. Effect of community health education on physical activity knowledge, attitudes, and behavior. The Stanford Five-City Project. Am J Epidemiol 1996; 144:264-74.
27. Eliasson M, Asplund K, Evrin PE. Regular leisure time physical activity predicts high activity of tissue plasminogen activador: The Northern Sweden MONICA Study. Int J Epidemiol 1996; 25:1182-8.
Endereço para correspondência
M. T. Lima
Assessoria de Comunicação e Educação em Saúde, Coordenação Regional do Ceará, Fundação Nacional de Saúde
Rua Azevedo Bolão 2.445, Fortaleza, CE 60455-160, Brasil
marcia.theophilo@ig.com.br
Apresentado em 03/Jul/2003
Versão final reapresentada em 26/Jan/2004
Aprovado em 26/Abr/2004