RESENHAS REVIEWS
Marcelo Firpo Porto
Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. firpo@ensp.fiocruz.br
SAÚDE E AMBIENTE SUSTENTÁVEL: ESTREITANDO NÓS. Maria Cecília de Souza Minayo & Ary Miranda de Carvalho (org.). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2002. 344 pp.
ISBN: 85-7541-013-X
Tantos nós a desatar
O livro Saúde e Ambiente Sustentável: Estreitando Nós, organizado por Maria Cecília de Souza Minayo & Ary Miranda de Carvalho, teve sua origem na idéia da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) em comemorar os dez anos da Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente, ocorrida em 1992 no Rio de Janeiro. Nessa época, a FIOCRUZ também se fez presente através do livro por Saúde, Ambiente e Desenvolvimento, organizado em dois volumes por Maria do Carmo Leal e Paulo Buss. Porém o estreitar nós a que se refere o título a busca de aproximação entre o campo da saúde e a discussão ambiental vem ocorrendo de forma mais sistemática na FIOCRUZ, pelo menos enquanto política institucional, desde 1996 com a criação do programa Saúde e Ambiente no Processo de Desenvolvimento.
Desde então diversas atividades vêm sendo desenvolvidas com o objetivo de articular e potencializar ações conjuntas de vários profissionais e grupos de pesquisa de dentro e fora da FIOCRUZ, nas mais diversas disciplinas e áreas de atuação. Para tanto, a criação e permanência de uma câmara técnica de saúde e ambiente tem sido um instrumento interno importante no desenvolvimento de várias ações, como os seminários nacionais de saúde e ambiente; o desenvolvimento de grupos de trabalho multiprofissionais e interdisciplinares sobre temáticas relevantes; textos e livros de referência; e o apoio a projetos integrados de pesquisa que articulam diversas unidades, núcleos e grupos de pesquisa da FIOCRUZ entre si, bem como a parceria destes com grupos acadêmicos, institucionais e sociais em torno de problemas de saúde e ambiente.
A necessidade de integração do trabalho entre distintas disciplinas, instituições e atores sociais traduz um desafio crucial do nosso tempo: o enfrentar a complexidade e agravamento das questões sociais, ambientais e sanitárias que se apresentam imbricadas em vários problemas de saúde e ambiente. Conforme reconhecem os organizadores, as perguntas e dilemas colocados pelo atual momento histórico desafiam nossa capacidade reflexiva e de ação prática. Isso exige um aprofundamento conceitual necessário à construção de uma ética renovada "diante de questões ao mesmo tempo locais e planetárias, subjetivas e coletivas, de ambos os campos (da saúde e ambiental)" (p. 15).
Essa é a tarefa central a que se propõe o livro. Ela é necessária, conforme reconhecem os organizadores, em função de várias lacunas, reducionismos e zonas cinzentas que marcam não só a relação entre os dois campos, mas no interior e cada um deles. E não são poucos os desafios, que se expressam por vários e crescentes problemas, como o reconhecimento dos riscos ecológicos globais, as alterações climáticas, a redução da camada de ozônio, a destruição de florestas e da biodiversidade, a poluição da água/ar/solo, e os problemas cada vez maiores para a geração de água potável para as populações. Se somarmos a tudo isso os problemas de escassez de matérias primas e a superposição dos problemas sociais e ambientais presentes nas regiões e aglomerados urbano-industriais, principalmente nos países de industrialização recente e economia periférica com maiores níveis de pobreza e exclusão social, veremos que a inversão de trilhas e valores que marcam os atuais modelos (insustentáveis) de desenvolvimento nos coloca desafios profundos e emergenciais.
Nesse sentido o subtítulo do livro é bastante feliz: os "nós" que precisam ser estreitados são muitos, e tarefas de muitos livros e novos desenvolvimentos conceituais. São os "nós" da ciência normal no sentido adotado por Kuhn 1 , nós enquanto sujeitos da pesquisa e das instituições técnico-científicas, marcados por microanálises ou metanarrativas ainda fragmentadas e distantes da solução dos problemas, muitas vezes também dos discursos e necessidades daqueles que mais sofrem com tais problemas em seu cotidiano. São os "nós" que precisam ser desatados pelas várias áreas e campos científicos, pois causam dificuldades e empecilhos para o reconhecimento das incertezas e da própria ignorância enquanto motor para a integração e evolução transinterdisciplinar de uma ciência que seja tanto precaucionária quanto democrática e inclusiva, o que exige uma mudança fundamental nas bases éticas, epistemológicas e sociais da ciência e das instituições 2. Mas são também os "nós" que permitirão entrelaçar os fios e as pontas das várias áreas de conhecimento e práticas sociais que têm algo importante a dizer e compartilhar para entendermos e enfrentarmos os graves problemas ambientais e de saúde essenciais de nossa época. Os múltiplos "nós", portanto, expressam também a metáfora das várias dimensões desses problemas complexos e das possibilidades de transformarmos um mundo insustentável, sem leveza e com muitos riscos, num outro mundo.
O livro se encontra dividido em cinco partes, cada qual contendo dois textos de referências onde os autores aprofundam uma temática específica. Aos textos de referência seguem-se outros que os debatem a partir de diferentes perspectivas. Trata-se, portanto, de uma dinâmica bastante interessante para o pretendido "estreitar de nós", já que tanto os autores dos textos de referência quanto os debatedores possuem várias origens institucionais de dentro e de fora da FIOCRUZ e múltiplos olhares disciplinares, provenientes tanto do campo da saúde coletiva quanto do ambiental.
A primeira parte discute o tema do Ambiente, Espaço, Território a partir de duas perspectivas: a lógica da História Ambiental, com o texto de Pádua sobre a história da crítica ambiental no Brasil, desde os tempos do Brasil colônia do Império, cuja tradição Pádua resgata de forma didática para o desenvolvimento de um ambientalismo nacional; e a lógica da Saúde Pública/Coletiva através do texto de Navarro et al., sobre doenças emergentes e reemergentes, revelando algumas tendências atuais no entendimento dos vários fatores que se encontram subjacentes ao aumento da importância desse problema para a saúde pública contemporânea.
A segunda parte dialoga com o conceito de risco por meio de dois textos particularmente instigantes, ainda que com perspectivas distintas: o de Lieber & Lieber, que refaz a trajetória etimológica e histórica em torno do conceito de risco, revelando sua natureza polissêmica e as lacunas para futuras pesquisas; e o de Castiel, que aprofunda a discussão sobre como a mídia e as sociedades modernas sejam elas pós, super, tardo ou simplesmente sem adjetivos vêm incorporando o conceito de risco de múltiplas formas.
A terceira parte discute os conceitos de qualidade de vida e promoção da saúde. O texto de Andrade & Barreto discute a proposta dos chamados municípios ou cidades saudáveis como processo discursivo e construção de novas práticas de promoção da saúde. O artigo de Minayo apresenta o enfoque ecossistêmico de saúde como "uma das possibilidades de construção teórico-prática das relações entre saúde e ambiente, dialeticamente articulados a uma visão ampliada de ambos os componentes."
A quarta parte tem por temática Processos Produtivos, Consumo e Degradação da Saúde e do Ambiente, com textos de duas autoras que vêm se dedicando a discutir questões teóricas e práticas abrangentes sobre saúde e ambiente, com ênfase empírica na Região Nordeste do país. Franco revela como as sociedades urbano-industriais vêm se caracterizando por padrões de produção e consumo inerentemente degradantes para a saúde e o meio ambiente. Rigotto busca em diferentes autores a inspiração para pensar o trabalho e o ambiente, assim como os processos produtivos e de consumo, simultaneamente como fontes de realização e degradação dos seres humanos, nesse último caso a partir dos riscos e seus efeitos.
Finalmente, a última parte apresenta o tema dos Indicadores em Saúde e Ambiente com base nos textos de Giraldo e Barcellos. A primeira autora centra-se na discussão sobre a importância estratégica e política da produção dos dados científicos e indicadores na construção de uma "pedagogia preventiva" ou de "promoção da saúde". O segundo autor aprofunda aspectos conceituais e de natureza mais operacional, voltados à construção e uso de indicadores socioambientais, os quais podem servir como medidas selecionadas para representar fenômenos ambientais e suas repercussões para a saúde nos seus ciclos de geração (fontes de risco), exposição e efeitos.
Ainda que com alguns desníveis em sua seqüência, o livro traz aos leitores inúmeras fontes de inspiração para cumprir sua tarefa de "estreitar os nós", utilizando-se de um debate interdisciplinar entre os campos da saúde e o ambiental.
1. Kuhn T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva; 1987.
2. Funtowicz S, Ravetz J. Ciência pós-normal e comunidades ampliadas de pares face aos desafios ambientais. Hist Ciênc Saúde 1997; 4:219-30.