RESENHAS REVIEWS
Vera Sonia Mincoff Menegon
Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil
NOVAS TECNOLOGIAS REPRODUTIVAS CONCEPTIVAS: QUESTÕES E DESAFIOS. Miriam Grossi, Roseli Porto & Marlene Tamanini (org.). Brasília: Letras Livres, 2003. 196 pp.
ISBN: 85-98070-01-7
A temática da tecnologia reprodutiva conceptiva desperta a atenção de disciplinas variadas. Essa preocupação ganha destaque ao se considerar a inter-relação desse conjunto de técnicas com a biotecnologia moderna e seu potencial de transformação da vida futura da humanidade. Estudos sobre reprodução humana mostram que transformações de impacto já ocorreram - os limites da concepção humana e as relações de parentesco foram redesenhados com o advento das técnicas de reprodução humana assistida. Ante esses avanços e embates, a saúde pública não pode se furtar aos desafios trazidos pela aplicação de novas tecnologias à vida e à saúde humanas. É nesse contexto que situamos a importância das pesquisas que embasam os textos que compõem o livro Novas Tecnologias Reprodutivas Conceptivas: Questões e Desafios. Esses estudos podem subsidiar tanto a elaboração da legislação brasileira sobre o tema - que continua tramitando no Congresso Nacional - como as políticas públicas que contemplam a infertilidade e a reprodução.
O livro, organizado por Miriam Grossi, Roseli Porto & Marlene Tamanini, é resultado do evento Jornadas Novas Tecnologias Reprodutivas Conceptivas: Questões e Desafios, realizado pelo Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades (NIGS), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis, em março de 2003.
Reunindo pesquisadoras de instituições variadas, o livro agrega a riqueza da diversidade de posições teóricas e políticas apresentadas pelas autoras: Alejandra Rotania, Amanda Pinos, Débora Diniz, Marilena Corrêa, Marlene Tamanini, Martha Ramirez, Naara Luna, Rosana Barbosa e Rosely Costa. O livro garante um gostinho do encontro ao incluir duas partes de debates - na primeira, são debatedoras Fabíola Rohden e Lucila Scavone e, na segunda parte, Alejandra Rotania e Débora Diniz. Para completar, temos uma bibliografia comentada sobre o tema, elaborada por Rozeli Maria Porto.
Mostrando diferentes facetas das transformações ocorridas no campo da reprodução humana, as reflexões e posicionamentos críticos nos mostram embates, cujas redes entrelaçam direitos individuais e coletivos, direito de gerações futuras, benefícios e riscos, princípios éticos, legislações (ou sua falta) e aspectos culturais. Cada texto suscita questionamentos e desafios que transitam pela oferta de novas tecnologias, pela sua demanda, pela ressignificação de paternidade e maternidade e pelo uso que se faz desse conjunto de técnicas.
Tratando-se de tecnologias geradoras de impactos variados, é importante compreender a rede de responsabilidades implicadas. Isto é, que a responsabilidade é das pessoas que desenvolvem novas técnicas, das que aplicam essas técnicas e das pessoas que buscam esses serviços. Mas, também, é responsabilidade de órgãos que formulam leis para regulamentar o campo, de comitês de ética e de bioética e de pesquisadoras e pesquisadores que produzem conhecimento sobre essa temática.
Assim, para fins desta resenha, sem observar a ordem dada no livro, dialogamos com os diferentes artigos, destacando algumas discussões que contemplam o aspecto responsabilidade.
Alejandra Rotania, em Novas Tecnologias Reprodutivas Conceptivas no Contexto da Tecnociência, argumenta sobre a necessidade de situar o estudo das tecnologias conceptivas em um contexto mais amplo, ressaltando que a biotecnologia é um dos eixos fundamentais do modelo econômico e político. Nessa perspectiva, discute o exacerbo na objetivação tecnológica da reprodução humana, afirmando que o futuro das novas gerações também está contido nos objetos de responsabilidade das ações individuais.
Marilena Corrêa, ao focar a Medicina Reprodutiva e Desejo de Filhos, problematiza o sentido absoluto dado à expressão desejo de filhos e à oferta de um tratamento que ajude a satisfazer esse desejo. Para a autora, esse entrelaçamento deixa de lado questões como deveres e responsabilidades, devido a uma espécie de interdição da pergunta: "até que ponto a reprodução assistida é válida e qual o limite de aplicação dessas tecnologias?". Essa interdição seria determinada pelo fato do desejo de ter filhos não poder ser limitado.
Essa falta de limites nos remete ao uso da metáfora correr riscos na esfera reprodutiva. Em geral a mulher não é incentivada a correr riscos no campo da aventura, mas correr riscos para fins de maternidade é aceito e culturalmente incentivado. Levar adiante uma gravidez de alto risco, ou, como no caso da reprodução assistida, vencer obstáculos, sofrimento e frustrações pelas baixas taxas de sucesso de bebê em casa, ou ainda em caso de gravidez múltipla, o uso da metáfora correr riscos assume sentido de ato heróico.
O texto de Amanda Pinos - Mães, Ainda - também problematiza a questão do desejo de filhos, trazendo para a cena a responsabilidade de médicos, médicas e terapeutas que incentivam a realização do desejo de filhos, sem problematizar que desejo é esse. Em resumo, para essas duas autoras a noção desejo de filhos é controversa e tem desdobramentos que merecem discussões aprofundadas.
As dificuldades em realizar esse desejo aparecem no texto de Marlene Tamanini que, dentre outros aspectos, considera o sofrimento físico, psíquico e social caracterizado pela busca de um bebê. O título, Do Sexo Cronometrado ao Casal Infértil, dá a dimensão dessa trajetória. É interessante ressaltar que ao analisar a constituição da categoria casal infértil, a autora nos permite entender como as novas tecnologias engendram uma redistribuição apenas aparente das responsabilidades envolvidas. A categoria casal infértil, ao mesmo tempo em que marca a entrada do homem como também responsável por não ter filhos, pulveriza o seu papel. Para a autora, a linguagem social casal infértil mantém a representação de que a infertilidade é sempre da mulher.
Adentrando materialidades que compõem o chamado casal infértil, no texto Tecnologias Reprodutivas e Atribuições de Paternidade e Maternidade, Rosely Costa parte das representações sobre o uso de material genético de terceiros e barriga de aluguel, que são enunciadas por homens em tratamento num serviço público. Discute, então, mudanças e justificativas nas atribuições de paternidade e maternidade. Não é objetivo da autora discutir responsabilidades, entretanto, ao evidenciar a possibilidade de separação entre reprodução e relação sexual, reprodução e gametas (óvulo e espermatozóide), reprodução e gravidez, põe à mostra a necessidade de um debate ampliado sobre as responsabilidades implicadas na noção de liberdade procriativa, conforme podemos conferir no Debate - Parte I.
Deslocando o eixo da discussão para outras formas de responsabilidade, o texto de Rosana Barbosa - Novas Tecnologias Reprodutivas Conceptivas: Produzindo Classes Distintas de Mulheres? - é um excelente alerta sobre a responsabilidade que temos em observar a relevância da classe social quando falamos em oferta e demanda de serviços de saúde. Ou seja, recorrer aos serviços de reprodução assistida, para um determinado estrato social pode significar um exercício de autonomia individual, tendo como fundamentação os direitos reprodutivos; num outro universo sociocultural essa opção pode estar a serviço de cumprir um destino de mulher que deve procriar a qualquer custo.
Levar em conta estrato social, gênero e idade nos auxilia a não cair em universalizações - que longe de serem sinônimos de competência em pesquisa, nada mais são do que posicionamentos ingênuos -, pois tanto a universalização como a relativização sem parâmetros, obscurecem a compreensão dos fenômenos estudados.
Pensando em relações de gênero, o texto de Naara Luna, Novela e Biotecnologia: os Pais de 'O Clone' (novela exibida pela TV Globo), é um bom exemplo sobre a nossa responsabilidade na produção de conhecimento. A autora chama a atenção para um diagrama explicativo do processo de clonagem, extraído de um artigo publicado na revista da FAPESP. Nesse diagrama, o ser que será reproduzido é representado pela figura esquemática de um ser humano do sexo masculino; já a mulher desaparece, não lhe deixam nem os contornos, mostram-se apenas partes: um óvulo sem núcleo e um útero.
Uma outra discussão que envolve responsabilidade é feita por Martha Ramirez. Em Questões e Desafios Decorrentes da Fabricação de Bebês, a autora problematiza o silêncio e a falta de reflexões, nas ciências sociais, a respeito da tecnologização da vida humana. Traz para o debate questões ligadas à mercantilização do campo das novas tecnologias conceptivas. Argumenta que dentre os desafios está a necessidade de reflexão sobre especificidades locais, evitando a diluição numa lógica globalizada. Como exemplo propõe explorar conexões entre reprodução assistida e adoção de crianças a partir da expansão da reprodução assistida no país.
Fechando a série de artigos, Débora Diniz, em Quem Autoriza o Aborto Seletivo no Brasil? Médicos, Promotores e Juízes em Cena, estabelece um contraponto para a temática geral do livro, polemizando o uso (e não uso) de tecnologia contraceptiva. A autora nos brinda com uma análise brilhante e nos provoca para pensarmos tanto as responsabilidades que se articulam nas negociações de processos decisórios como a crueldade de determinadas decisões oficiais.
Concluindo, os artigos acima discutidos mostram, com efeito, que no Brasil começa a se formar um campo de estudos sobre as novas tecnologias reprodutivas conceptivas, no âmbito das ciências sociais, marcado pelo diálogo com diferentes domínios de saber. Mais do que ajudar os diferentes casais (heterossexuais ou homossexuais), os profissionais da saúde e os pesquisadores e pesquisadoras do tema a refletirem sobre o uso dessas técnicas, conforme afirma Miriam Grossi, esperamos que o livro ora comentado contribua para que esse debate seja considerado no âmbito da saúde pública e na formulação de políticas no campo reprodutivo.