ARTIGO ARTICLE
Uso do índice de Kotelchuck modificado na avaliação da assistência pré-natal e sua relação com as características maternas e o peso do recém-nascido no Município do Rio de Janeiro
Use of the modified Kotelchuck index in the evaluation of prenatal care and its relationship to maternal characteristics and birth weight in Rio de Janeiro, Brazil
Maria do Carmo LealI; Silvana Granado Nogueira da GamaI; Katia Maria Netto RattoII; Cynthia Braga da CunhaI
IDepartamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil
IICoordenação de Atendimento Integral à Saúde, Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
RESUMO
O índice de Kotelchuck (IK) foi modificado e utilizado para avaliar a assistência pré-natal prestada no Município do Rio de Janeiro - Brasil, em uma amostra de 9920 puérperas de parto único. Regressões multivariadas logística ordinal (RMLO) e linear (RML) foram utilizadas para estimar a importância de fatores demográficos, psicossociais e obstétricos no IK modificado e seus efeitos no peso ao nascer (PN), respectivamente. Apenas 38,5% das parturientes do Município do Rio de Janeiro foram classificadas como de cuidado pré-natal adequado ou intensivo. Após ajustamento por outros preditores, mantiveram-se como variáveis explicativas do IK: o nível de instrução, viver com o pai do RN, tentar abortar, diabetes, satisfação com a gravidez, cor da pele, paridade, idade e local de residência. O PN associou-se com o IK modificado, mesmo após o controle de variáveis sociodemográficas, comportamentais e biológicas. A utilização adequada da assistência pré-natal no Município do Rio de Janeiro contribuiu na prevenção do PN e as mães que menos utilizaram os serviços pré-natais têm piores condições socioeducacionais, de apoio familiar e de risco obstétrico.
Peso ao Nascer; Avaliação de Programas; Saúde Materno-Infantil
ABSTRACT
The Kotelchuck index (KI) was modified and used to evaluate prenatal care provided in the City of Rio de Janeiro, Brazil, in a sample of 9,920 post-partum women following singleton deliveries. Ordinal logistic regression (OLR) and multivariate linear regression (LMR) were used to estimate the importance of demographic, psychosocial, and obstetric factors for modified KI and the effects on birth weight (BW), respectively. Only 38.5% of the sample was classified as having received adequate or intensive prenatal care. After adjusting for other predictors, the explanatory variables for KI were: mother's schooling, living with the newborn's father, attempted abortion, diabetes mellitus, satisfaction with pregnancy, skin color, parity, age, and place of residence. BW was associated with the modified KI, even after controlling for socio-demographic, behavioral, and biological variables. Adequate utilization of prenatal care in the City of Rio de Janeiro contributed to the prevention of low BW, and the mothers who used prenatal services less presented worse conditions in terms of socioeconomic status, schooling, family support, and obstetric risk.
Birth Weight; Program Evaluation; Maternal and Child Health
Introdução
A assistência pré-natal tem se mostrado como um dos principais fatores de proteção contra o baixo peso ao nascer, prematuridade e óbito perinatal no Brasil e em outros países em desenvolvimento 1,2,3,4, muito embora a gestação seja entendida como um fenômeno fisiológico e sua evolução se dê, na maioria das vezes, sem intercorrências.
A assistência pré-natal baseia-se em três linhas de atuação: no rastreamento das gestantes de alto risco, em ações profiláticas específicas para a gestante e o feto, bem como na educação em saúde 5,6. A identificação da grávida de alto risco representa o principal elemento na prevenção da morbimortalidade materna e infantil, demandando um acompanhamento especializado, embora as outras funções de profilaxia e monitoramento da gravidez, desenvolvidas durante a assistência pré-natal, se constituem em práticas de promoção da saúde e de preparação para a maternidade.
No Brasil, o Ministério da Saúde preconiza a realização de, no mínimo, seis consultas de acompanhamento pré-natal, sendo preferencialmente, uma no primeiro trimestre, duas no segundo e três no terceiro trimestre de gestação 7.
Diante da necessidade de indicadores que possam avaliar o desempenho dos programas de atenção pré-natal, o Instituto de Medicina da Academia Nacional de Ciências da América do Norte desenvolveu, em 1973, um indicador composto, conhecido como índice de Kessner, que contempla o mês do início do pré-natal e o número total de consultas 8. Desde então esse indicador vem sofrendo alterações, buscando uma maior adequação, destacando-se o trabalho de Kotelchuck que, partindo do índice desenvolvido por Kessner, ponderou o número de consultas pré-natais pela idade gestacional e criou categorias de adequação da atenção pré-natal 9. Além desses, outros índices, propostos pelo Colégio Americano de Obstetras e Ginecologistas e pelo Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos tentam quantificar a adequação do cuidado pré-natal 10.
Os indicadores de Kessner e Kotelchuck já foram utilizados no Brasil por Victora & Barros 11 e Silva et al. 12, para descreverem a atenção pré-natal recebida pelas gestantes em Pelotas e em São Luís do Maranhão, respectivamente.
O objetivo deste trabalho foi utilizar o índice de Kotelchuck, uma variante do índice de Kessner, em uma amostra de puérperas de parto único do Município do Rio de Janeiro, verificar sua aplicabilidade e adaptá-lo às características da assistência pré-natal prestada. Buscou-se também verificar a associação do índice de Kotelchuck modificado com as características maternas e seu papel sobre o peso ao nascer.
Metodologia
Este estudo foi desenvolvido com base em uma amostra de puérperas de parto único que se hospitalizaram em maternidades do Município do Rio de Janeiro, por ocasião do parto 13. A amostragem foi estratificada, agrupando-se os estabelecimentos de saúde em três tipos de maternidades: as municipais e federais; as estaduais, militares, filantrópicas e privadas conveniadas com o SUS e, por último, as maternidades privadas não conveniadas com o SUS. Em cada estrato foi selecionada uma amostra de, aproximadamente, 10,0% de parturientes do número previsto de partos em todos os hospitais de cada estrato, exceto naqueles com menos de duzentos partos por ano, correspondente a apenas 3,0% do total.
O tamanho inicial calculado foi de 3.282 puérperas para cada estrato. Considerando-se a possibilidade de perdas, o total de cada estrato foi estabelecido em 3.500 puérperas. Ao final da pesquisa foram realizadas 10.072 entrevistas, e as perdas contabilizaram 4,5% do total de partos ocorridos. Excluídos os partos múltiplos, 9.920 puérperas comporão a análise deste artigo.
A coleta de dados do estudo foi feita por meio de questionários padronizados, aplicados por acadêmicos bolsistas de medicina e enfermagem selecionados por concurso público pela Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro. As informações sobre o pré-natal foram coletadas de entrevistas com as puérperas. A idade gestacional foi tomada por ocasião da entrevista materna, considerando a data da última menstruação, bem como por meio de dados do prontuário hospitalar. O peso ao nascer foi retirado diretamente do prontuário hospitalar da puérpera.
Este estudo foi submetido ao Comitê de Ética para Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. A confidencialidade da informação quanto ao conteúdo e à identificação da puérpera, assim como o anonimato por ocasião da publicação dos resultados foi assegurado.
Para avaliação do pré-natal utilizou-se o escore "Sumário de adequação do índice de utilização do cuidado pré-natal" proposto por Kotelchuck 9. Ele avalia o número de consultas de pré-natal, baseado no mês de início do pré-natal e na proporção de consultas observadas sobre o número de consultas esperadas, de acordo com a idade gestacional no nascimento. Atribuiu valor 1 para as puérperas que iniciaram o acompanhamento depois do 4o mês e fizeram menos de 50,0% das consultas esperadas segundo o tempo gestacional (inadequado); 2 para aquelas que iniciaram os cuidados pré-natais antes ou durante o 4o mês e fizeram 50,0 a 79,0% das consultas (intermediário); 3 para aquelas que iniciaram o pré-natal antes ou durante o 4o mês e fizeram 80,0 a 109,0% de consultas (adequado) e 4 para aquelas que tiveram o início do pré-natal antes ou durante o 4o mês e tiveram 110,0% de consultas ou mais em relação ao esperado para a idade gestacional (mais que adequado).
O escore de Kotelchuck foi adaptado para inserir as mulheres que não fizeram pré-natal, excluídas da análise na proposta original do escore e identificadas neste estudo como grupo 1. No grupo 2, classificado como inadequado, o escore original contempla apenas as gestantes que iniciaram o pré-natal após o quarto mês de gestação e fizeram menos de 50,0% das consultas esperadas. Foi incluído, além disso, neste grupo, as mulheres que haviam iniciado o pré-natal após o quarto mês e que fizeram um número de consultas maior do que 50,0% do esperado, bem como mulheres que tiveram um número de consultas abaixo de 50,0% do esperado, embora tenham iniciado o pré-natal até o 4o mês de gestação. Os grupos 3, 4 e 5, considerados intermediário, adequado e mais que adequado ou intensivo, foram mantidos com as mesmas definições dos grupos 2, 3 e 4 do escore original de Kotelchuck. Os valores "missing" foram excluídos da análise. A Tabela 1 apresenta a comparação entre os dois índices.
Os atributos maternos selecionados para análise com base na literatura foram: faixa etária materna (0 para até 19 anos, 1 entre 20 e 34 e 2 para 35 anos e mais); escolaridade (1 menor que a 4a série do ensino fundamental, 2 de 4a a 7a série do ensino fundamental, 3 ensino fundamental completo e segundo grau incompleto, 4 segundo grau completo ou mais); viver com o pai do recém-nascido (1 sim e 0 não); ter referido satisfação com a gestação atual (1 sim e 0 não); cor da pele, por auto classificação (1 para negras ou pardas e 0 para brancas ou amarelas); paridade (0 para 3 ou mais filhos, 1 para 1 a 2 filhos e 2 para primigestas); filhos mortos anteriores à gestação atual (1 sim e 0 não); local de residência (0 para favela e moradores de rua, 1 para residentes em bairros); trabalho remunerado (1 sim e 0 não); tentativa de aborto nesta gestação (0 sim e 1 não), diabetes (1 sim e 0 não) e hipertensão arterial (1 sim e 0 não).
Inicialmente, procedeu-se uma análise exploratória dos dados para seleção das variáveis mais importantes. Adotou-se como critério de entrada no modelo a variável que tivesse o c2 com p-valor menor que 0,25. Optou-se pelo uso do modelo logístico ordinal para verificar a associação entre o escore de utilização da assistência pré-natal modificado e as características das puérperas. Diferente do modelo logístico multinomial, a regressão logística ordinal permite que a variável resposta seja ordinal, potencializando o uso da informação e aumentando o poder estatístico da análise. O modelo de razões proporcionais, utilizado neste artigo, assume que a variável resposta comporta-se de uma maneira ordinal em relação a cada preditor, tendo como premissa que a "odds" do evento é independente da categoria j. A "odds" é suposta como constante para todas as categorias contidas em Y. A premissa de proporcionalidade de cada variável independente foi checada por meio de gráficos das médias calculadas para cada estrato das variáveis explicativas segundo os níveis do escore 14.
Para avaliar a importância de cada variável preditora também se utilizou o teste de razão de verossimilhança, além do teste de Wald. Foi utilizado como índice da acurácia preditiva o valor da área sob a curva ROC (Receiver Operating Characteristic) - C.
Um modelo de regressão linear múltipla foi empregado para estimar o efeito das variáveis maternas e da assistência pré-natal sobre o peso ao nascer. As premissas de linearidade, homocedasticidade e normalidade foram checadas para cada modelo ajustado. Para a avaliação da importância de cada variável independente foi feito o teste t de Student e o critério para a entrada foi o nível de significância de 5,0%. A comparação entre os modelos se deu pelo coeficiente de explicação - R2 15. Neste modelo ainda utilizou-se bootstrap para a obtenção de intervalos de confiança mais acurados 14.
Nessas análises, a idade materna, escolaridade como anos de instrução e a idade gestacional entraram como variáveis contínuas. A paridade entrou ordinalmente com valor 0 para 3 ou mais filhos, 1 para 2 filhos, 2 para 1 filho e 3 para as primigestas. No modelo de regressão linear a cor da pele entrou ordinalmente (0 branca, 1 parda, 2 preta).
Resultados
Do total de 9.920 mulheres entrevistadas nesta investigação, apenas 3,7% referiram não ter feito o pré-natal, o que evidencia um acesso elevado à assistência pré-natal. A Tabela 2 descreve as variáveis que compuseram o índice de Kotelchuck no Município do Rio de Janeiro. Quanto ao número de consultas pré-natais, observa-se que a maioria das puérperas (61,2%) fez sete ou mais consultas e o início da assistência se deu antes do quarto mês de gestação, 83,4% do total.
A Tabela 3 compara a distribuição das puérperas segundo o índice de Kotelchuck original e o modificado. Observa-se que uma grande quantidade de mães (24,6%) foi excluída da análise no escore original, o que justificou a sua adequação às características de uso e acesso aos serviços de atenção pré-natal pela população de mulheres em idade fértil no Município do Rio de Janeiro. Com a flexibilização do nível "inadequado" do escore conseguiu-se incluir quase todas as mulheres e, junto com a criação da categoria "mães que não fizeram o pré-natal", contemplou-se 94,6% do total, restando apenas 5,4% que não puderam ser classificadas por ausência de informação em uma das variáveis que compunham o índice. O grupo de mães que não fizeram o pré-natal servirá como uma referência para avaliar os benefícios da assistência. Verifica-se que a maioria das mulheres se distribui entre os níveis intermediário e adequado, totalizando 62,0%. O nível inadequado vem em seguida, com 25,8% e, no extremo, as que tiveram um grande número de consultas, totalizam 8,3%.
A Tabela 4 mostra que as mulheres excluídas do escore de Kotelchuck original diferem substantivamente das incluídas. São, com maior freqüência, adolescentes, de cor da pele preta ou parda, com menor nível de escolaridade e mais alta paridade.
A Tabela 5 apresenta as características maternas segundo os níveis do escore de Kotelchuck modificado. Observa-se, quanto à idade, que as gestantes adolescentes são as que pior utilizam os serviços de pré-natal e as de 35 anos e mais as que mais utilizam. Para a escolaridade evidencia-se um gradiente crescente do nível mais baixo para o mais alto, chegando ao extremo de ter apenas 14,3% das mulheres do nível abaixo da 4a série primária classificadas como de uso "adequado e mais que adequado", enquanto no ensino médio completo e mais, existem 67,4% neste nível do escore. As mulheres com maior número de filhos se distribuem expressivamente nos níveis mais baixos do escore, enquanto as primigestas procuram mais a assistência pré-natal. As gestantes com a cor preta ou parda e residentes na favela ou na rua fazem menos consultas, ao contrário das que têm trabalho remunerado. As que vivem com o pai do bebê e que referem estar satisfeitas com a gestação concentram-se nos níveis intermediário e adequado do escore. As gestantes que tentaram abortar e que tiveram filhos mortos anteriores se distribuíram nos menores níveis do escore, ficando mais da metade delas nas categorias 1 e 2, nas quais se encontram apenas 29,7% da população de puérperas do Município do Rio de Janeiro.
A Tabela 6 retrata, por meio de uma regressão logística ordinal, as características das puérperas relacionadas com a utilização do pré-natal segundo o escore de Kotelchuck modificado. Observou-se que a presença do pai do recém-nascido no domicílio, a satisfação da mãe com a gravidez, a idade materna e o número de filhos tidos, foram variáveis que tiveram uma forte associação com a utilização da assistência pré-natal. Não ter tentado abortar e residir em bairro associaram-se também a uma maior utilização. A experiência de filhos mortos anteriores, inicialmente incluída nesta análise, não permaneceu no modelo, perdendo sua explicação para outras variáveis selecionadas. Salienta-se a importância do termo de interação entre a cor da pele e a escolaridade da puérpera. Antes da inclusão desse termo, a cor da pele preta ou parda possuía um efeito protetor, mas a adição desta interação ao modelo modificou a direção do efeito da cor da pele, que passou de protetor a potencializador, tendo a escolaridade mantido o mesmo sentido.
Na Tabela 7 pode-se ver que o índice de Kotelchuck modificado associou-se diretamente com o peso ao nascer do concepto. Variáveis de controle como a idade materna e a paridade tiveram um comportamento curvilinear. O sentido da associação foi positivo para a idade gestacional e negativo para a cor da pele, o hábito de fumar, história de filhos prematuros anteriores e a peregrinação no momento do parto.
Discussão
A aplicação do escore proposto por Kotelchuck não permitiu contemplar uma quantidade expressiva de mulheres que iniciam o pré-natal cedo, mas fizeram um pequeno número de consultas, e aquelas que iniciam tardiamente e fizeram um grande número de consultas. A avaliação da assistência do pré-natal, com base nesse escore, ficou prejudicada pela exclusão de um grande número de mulheres adolescentes, negras, com baixo nível de instrução e multíparas, características consideradas de risco para vários resultados adversos da gestação 16. A sugestão proposta, neste artigo, para adaptá-lo às condições de uso dos cuidados pré-natais pela população de parturientes do Município do Rio de Janeiro parece adequada, dado que foram excluídas apenas 5,4% das mulheres para as quais não se teve informação sobre as variáveis que compunham o escore.
Apenas 38,5% das parturientes do Município do Rio de Janeiro foram classificadas como tendo recebido um cuidado pré-natal adequado ou mais que adequado. Em um estudo de corte transversal realizado em São Luís do Maranhão, em 1997-1998, Silva et al. 12, utilizando o escore de Kotelchuck, encontraram que apenas 13% das parturientes daquela cidade puderam ser alocadas nestes mesmos grupos.
A aplicação desse mesmo escore para a população de puérperas do Estado da Carolina do Sul, nos Estados Unidos da América, no período de 1989-1991, encontrou 59,6% das mulheres nessas categorias e apenas 2,1% no grupo que não fez pré-natal e 1,6% ficou no grupo sem informação 17. Na Califórnia, no ano de 1999, a proporção de mulheres que receberam assistência adequada ou intensiva foi de 83,1% 18.
Foi muito maior a utilização da assistência pré-natal no Município do Rio de Janeiro que em São Luís do Maranhão. Mesmo assim, o Município do Rio de Janeiro fica muito aquém das coberturas alcançadas na Carolina do Sul e na Califórnia, denotando uma muito inadequada utilização dos serviços pré-natais.
É importante ressaltar que o escore de Kotelchuck foi proposto para classificação do uso de serviços pré-natais por mulheres de baixo risco gestacional, mas a sua aplicação ao conjunto das gestantes resulta na inclusão de mulheres de alto risco que, na maioria das vezes, ficam classificadas na categoria de utilização intensiva do pré-natal por demandarem maior número de consultas. Essas gestantes, mesmo com um grande número de consultas, podem apresentar um resultado adverso ao final da gestação, podendo confundir os pesquisadores na avaliação do impacto da atenção pré-natal sobre as conseqüências no concepto 17.
Esses dados podem levar a um questionamento sobre a efetividade de um grande número de consultas pré-natais para prevenção de complicações nos recém-nascidos. Kogan et al. 17 analisando as mudanças no padrão de utilização dos serviços de atenção pré-natal nos Estados Unidos, no período de 1981-1995, mostram que vem ocorrendo um aumento do número médio de consultas. Para o grupo de uso intensivo, cresceu de 18,4% para 28,8%, tendo, no mesmo período, permanecido estável a prevalência de baixo peso ao nascer e prematuridade no país.
Villar et al. 19, em um ensaio clínico randomizado, concluíram que um modelo com menor número de consultas não diferiu do tradicional quanto à taxa de baixo peso ao nascer, ocorrência de eclâmpsia e pré-eclâmpsia, anemia pós-parto e tratamento da infecção urinária durante a gestação. Carroli et al. 20 em uma revisão sistemática sobre os ensaios clínicos controlados que avaliaram o cuidado pré-natal de rotina, concluíram que um modelo com menor número de consultas não mostrou diferença nos efeitos clínicos quanto à pré-eclâmpsia, infecção do trato urinário, anemia, mortalidade materna e baixo peso ao nascer. Entretanto, as mulheres ficaram menos satisfeitas com a atenção recebida no modelo alternativo.
Na mesma direção, Hueston et al. 21 contestam a efetividade do início precoce da atenção pré-natal em gestantes norte-americanas, ao encontrarem que o início do pré-natal nos segundo e terceiro trimestres da gestação apresentou um efeito protetor em relação ao baixo peso ao nascer, ao contrário do esperado. Neste estudo, os fatores que se relacionaram com as diferenças no baixo peso ao nascer entre mulheres que iniciaram o cuidado tardiamente em relação às que fizeram precocemente, foram devidos às características sociodemográficas das mães.
Outros autores, como Barash & Weinstein 22 argumentam que apesar do aumento sistemático de cobertura da assistência pré-natal nos Estados Unidos entre os anos 80 e 90 não ter se refletido em importante diminuição das taxas de prematuridade, baixo peso ao nascer e mortalidade materna, os benefícios da assistência pré-natal são incontestáveis. Segundo esses autores, a tecnologia médica não pode minorar os efeitos da pobreza, uso de drogas e caos social experimentado por algumas pacientes que apresentam esses resultados. McCormick & Siegel 23 advertem que a efetividade do pré-natal não pode ser limitada aos efeitos sobre o baixo peso ao nascer e a prematuridade, uma vez que seus objetivos incluem a oportunidade para engajar a mulher no cuidado com a própria saúde e a da sua criança, bem como mudanças no estilo de vida, tais como hábito de fumar, uso de álcool, drogadição, exercício, estado nutricional e doenças sexualmente transmissíveis. Avaliações sobre estes aspectos da promoção da saúde, têm sido negligenciadas nos estudos de impacto.
Os dados desta pesquisa mostram na Tabela 5 que a utilização adequada do cuidado pré-natal exerceu um efeito favorável sobre o peso ao nascer no Município do Rio de Janeiro, mesmo após o controle da idade, situação conjugal, hábito de fumar, história reprodutiva e da ocorrência de diabetes e prematuridade na gestação atual.
Um aspecto que tem sido discutido nas publicações brasileiras é o perfil das mulheres que freqüentam adequadamente as consultas pré-natais, indicando um possível processo de auto-seleção deste grupo, constituído, majoritariamente, por mulheres com maior acesso à informação e bens de consumo 4.
De fato, nosso estudo confirma que as mulheres que fazem melhor uso dos serviços pré-natais são mais instruídas, vivem com o pai do recém-nascido, têm menos filhos e se mostraram satisfeitas com esta gestação. Em contraposição, as adolescentes, as de cor da pele preta ou parda, as que moravam em favelas ou na rua, não tinham trabalho remunerado e tentaram o aborto foram as que menos utilizaram os serviços pré-natais. Destaca-se, neste estudo, a interação identificada do nível de instrução com a cor da pele, indicando que a baixa utilização dos serviços pré-natais pelas mulheres de cor negra ou parda se modifica em função do nível de instrução delas.
Na Califórnia, a análise da tendência temporal da utilização dos serviços pré-natais no período de 1980 a 1999, mostrou que o incremento alcançado não fez desaparecer as disparidades, principalmente em relação ao nível de instrução, raça (afro-americana), idade (ser adolescente), migração (nascer fora dos Estados Unidos), estado marital (solteira) e paridade 18. Resultados semelhantes foram descritos por Albrecht & Miller 24, descrevendo os atributos maternos segundo o índice de Kotelchuck para o conjunto da população norte-americana.
A ausência de estudos nacionais que utilizaram o índice de Kotelchuck para avaliar a adequada utilização do pré-natal e sua relação com os efeitos no recém-nascido impossibilita a comparação dos nossos resultados. Muitos estudos têm avaliado o efeito protetor do pré-natal, considerando isoladamente o número de consultas ou mês do início do pré-natal, ou ambos, mas sem controlar pela idade gestacional, o que torna estes resultados incomparáveis com os desta pesquisa. Nos Estados Unidos, Krueger & Sholl 25 também encontraram que o uso inadequado do cuidado pré-natal, aferido pelo índice de Kotelchuck, associou-se com a prematuridade, após controle de potenciais variáveis de confusão.
Para concluir poderiam ser destacadas as principais constatações deste estudo:
1) A necessidade de se utilizar ferramentas adequadas para avaliar a efetividade do programa de assistência pré-natal no nosso país;
2) Apontar para as baixas coberturas de assistência pré-natal adequada no Município do Rio de Janeiro, considerando as dimensões do número de consultas e mês do início do atendimento (preconizados pelo Ministério da Saúde), ponderado pela idade gestacional;
3) A baixa utilização da assistência pré-natal associou-se com um menor peso ao nascer, mesmo controlando o efeito de variáveis intervenientes;
4) As características maternas que se associam com uma baixa utilização devem ser consideradas no planejamento de ações que visem a melhoria da cobertura e maior impacto dos programas de atenção pré-natal no Município do Rio de Janeiro.
Dentre as limitações deste estudo, podem-se citar os possíveis erros na definição da idade gestacional pelas puérperas e nos prontuários médicos, levando a uma má classificação nos índices do escore. O número de consultas e a época do início do pré-natal, sem considerar o espaçamento entre as visitas e a qualidade delas, não asseguram que a atenção recebida foi de qualidade adequada para proteger a saúde da mãe e do recém-nascido 27.
A análise da interação entre a cor da pele e a escolaridade não pôde contemplar o efeito de outras co-variáveis não observadas, como a renda da puérpera e a educação dos pais que poderiam modificar ainda mais as estimativas do modelo.
Estudos que levem em conta esses aspectos necessitam ser realizados para validar o índice de utilização do pré-natal proposto por Kotelchuck e utilizado neste trabalho.
Colaboradores
M. C. Leal participou em todas as etapas, desde a análise até a redação final do artigo. S. G. N. Gama participou em todas as etapas, colaborando na redação do artigo. K. M. N. Ratto contribuiu na construção do escore e na discussão dos resultados. C. B. Cunha realizou as análises estatísticas, incluindo a construção do escore, e colaborou na redação da metodologia e interpretação dos resultados.
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Endereço para correspondência
Maria do Carmo Leal
Rua Leopoldo Bulhões 1480
Rio de Janeiro, RJ
21041-210, Brasil
duca@ensp.fiocruz.br
Recebido em 24/Set/2003
Versão final reapresentada em 16/Fev/2004
Aprovado em 04/Mar/2004