DEBATE DEBATE
Debate sobre o artigo de Hillegonda Maria Dutilh Novaes
Debate on the paper by Hillegonda Maria Dutilh Novaes
Celia Almeida
Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. calmeida@ensp.fiocruz.br
O artigo de Novaes é extremamente oportuno e se propõe a enfrentar uma discussão complexa, de forma bastante abrangente. Debatê-lo é um estimulante convite à reflexão.
A autora ressalta a multidisciplinaridade do campo de pesquisa em serviços de saúde, assim como a dificuldade inerente de definir seus limites, pela pluralidade de objetos e de abordagens metodológicas que abriga; resume elementos históricos que contribuíram para a sua constituição e relativo desenvolvimento, identificando iniciativas internacionais diferenciadas nessa área; apresenta um mapeamento do diversificado universo de revistas internacionais que publicam sobre o tema, admitindo a impossibilidade de estabelecimento de classificações, mas sugerindo alguns subtemas principais que categorizariam o que vem sendo publicado; ensaia uma apreciação da produção bibliográfica de artigos relativos à pesquisa em serviços de saúde nas revistas brasileiras e enumera alguns desafios, identificados na literatura, para aumentar o impacto dessas pesquisas nos resultados da atenção na saúde da população, destacando que um maior desenvolvimento desse campo de pesquisa poderia contribuir para o aprimoramento e fortalecimento do SUS.
Em razão deste limitado espaço e com o intuito de aceitar o desafio do debate, meus comentários são pontuais e dirigidos a questões específicas.
Um primeiro ponto a destacar, mencionado no artigo, está relacionado à constituição histórica desse campo de pesquisa. Parece-me não suficientemente trabalhado no texto que foi a estruturação dos sistemas de saúde no século XX que impulsionou a formação desse campo de pesquisa, e as questões colocadas por essa dinâmica, em conjunturas específicas, canalizaram o seu desenvolvimento em determinada direção. Assim, advogar que a pesquisa em serviços de saúde seja principalmente um instrumento para o processo político de implementação de mudanças é uma tendência mais recente, que se desenvolve a partir dos anos 70 e adquire maior vigor nos 90, vinculada à implementação das reformas, como tentativa de superar a incerteza inerente a esses processos.
Nessa trajetória, a concepção instrumental da pesquisa em serviços de saúde, embora historicamente constitutiva do campo, adquire especial importância, sobretudo a partir do final dos anos 1980. Torna-se preponderante a idéia de este ser um mecanismo que possibilitaria intervenções e decisões "mais bem informadas", cientificamente fundamentadas ("pesquisa para a política"), não só tornando os sistemas de saúde mais eficientes e efetivos, como também agregando valor aos escassos recursos disponíveis para a saúde 1.
É preciso lembrar que o desenvolvimento de consenso público sobre a natureza de uma questão particular, ou um conjunto de questões, estabelecem o referencial básico para as prioridades em pesquisa; por outro lado, o levantamento sistemático de dados e investigações sobre determinada temática não são realizados antes que esse consenso público legitime sua importância e a ação política introduza as questões emergentes do debate na agenda política 2. Assim, a conjuntura de crise e reforma dos anos 1980-1990, que no setor saúde centrou o foco nos serviços, é crucial nesse processo, assim como os termos em que esse debate se estrutura globalmente e as agendas de mudança são formuladas. A ênfase na operacionalização das políticas, a busca de evidências empíricas que corroborassem as prescrições das agendas de mudança ou comprovassem os problemas de sua implementação, anunciados por várias análises críticas, colocaram a utilização/ aplicação dos resultados da pesquisa em serviços de saúde no centro das discussões e a área ganhou maior visibilidade e investimento, capitaneado principalmente pelas organizações internacionais 3.
Nessa perspectiva, a referência ao World Health Report 2000, da Organização Mundial da Saúde, além de outras mencionadas pela autora, é obrigatória, pois, de forma inovadora, ele foi inteiramente dedicado à avaliação de desempenho dos sistemas de serviços de saúde, elaborando nova metodologia e indicadores especificamente para esse fim, em que determinados enfoques, e não outros, são privilegiados. Ainda que extremamente criticado, principalmente por suas debilidades metodológicas, esse documento pode ser considerado como símbolo de um processo no qual propostas ideológicas foram traduzidas em instrumentos técnicos supostamente validados cientificamente. Por outro lado, teve o mérito de estimular um debate planetário sem precedentes sobre a avaliação de desempenho dos serviços de saúde, de estimular a leitura crítica de suas propostas e o desenvolvimento e difusão de alternativas técnicas mais confiáveis e politicamente mais cuidadosas.
Essa tendência reducionista de privilegiar a dimensão utilitária da pesquisa em serviços de saúde é, em parte, responsável por alguns dos dilemas que cortam transversalmente o campo e pela sensação de fracasso dessa área de pesquisa no alcance de seus objetivos pragmáticos, uma vez que muitas das tentativas frustradas de aplicação dos resultados da investigação nos serviços de saúde e na política, analisadas e reiteradas por vários autores, devem-se a expectativas equivocadas em relação ao que significa essa utilização 4 e também à falta de uma clara percepção do que se constitui um processo decisório 5. Todavia, a forma de percepção desse processo não é única e, dependendo da perspectiva analítica utilizada, os "pontos de entrada" da investigação no processo político também mudam, assim como as variáveis que interferem nele 6. Em outras palavras, a questão a ser considerada é que como recurso de poder o conhecimento pode desempenhar diversos papéis, que mudam segundo o lugar, o momento e a circunstância, e cada caso concreto apresenta diferentes variáveis explicativas para o papel específico da investigação na mudança da política, ou para a sua não interferência 4,6.
Os autores defendem que algumas dessas variáveis são fundamentais, ainda que não possam ser consideradas de forma absoluta. A pesquisa teria maior valor na documentação (coletar, catalogar e correlacionar fatos sobre a realidade), sendo mais errática na análise e explicação sobre o que funciona melhor, como e por quê, e bastante limitada na sua capacidade de prescrição. Portanto, a maior contribuição que a investigação pode dar ao processo decisório está menos na oferta de respostas definitivas a questões problemáticas e mais na melhora da qualidade e dos termos do debate sobre um tema particular. Sendo assim, mudar o caráter do debate sobre uma questão é uma importante forma de poder, pois a contraposição de idéias, propostas e interesses é fundamental para alterar o status quo 6.
Dessa forma, são corretas as conclusões da autora no que concerne à importância, necessidade, utilidade e pertinência da realização de pesquisas em serviços de saúde, levando em consideração seus limites e potencialidades, tendo claro, entretanto, que estes estão referidos a dinâmicas mais amplas que não se restringem ao âmbito setorial e remetem a distintas atuações em diferentes arenas, entre elas a científica. Portanto, é fundamental superar a idéia de função meramente instrumental da pesquisa em serviços de saúde e buscar transformá-la num recurso de poder efetivo para as mudanças pretendidas.
Para terminar, gostaria de reiterar que o artigo em pauta é extremamente bem-vindo e original na literatura brasileira e, ao tentar inter-relacionar as diferentes dimensões que interferem na construção, abrangência e utilidade do campo da pesquisa em serviços de saúde, tem o mérito de nos brindar com um bom panorama da complexidade da área, assim como da importância de enfrentar os desafios inerentes ao seu maior desenvolvimento, sobretudo em nosso país. Ao mesmo tempo, deixa a desejar em relação ao aprofundamento de questões polêmicas mas extremamente atuais nesse debate. No que toca ao levantamento sobre a produção brasileira vis-à-vis a literatura internacional, ele deveria ser aprofundado, contudo suscita, no mínimo, alguma curiosidade as subtemáticas principais enumeradas com base na produção internacional seriam também pertinentes para a produção nacional? As breves resenhas apresentadas (que, aliás, poderiam ter sido organizadas com outro formato, a fim de não comprometer, para o leitor, a seqüência lógica do texto) teriam a função também de exemplificar possíveis temas que não estão sendo adequadamente priorizados e que deveriam ser desenvolvidos pela pesquisa em serviços de saúde no Brasil?
De qualquer forma, essas observações sintéticas de maneira nenhuma diminuem a importância e qualidade do artigo. Agradeço a Novaes por ter possibilitado e estimulado estas reflexões e espero que os desdobramentos deste debate contribuam, de fato, para o aprimoramento da qualidade da atenção nos serviços de saúde e o fortalecimento do SUS.
1. Evans JR. Summary of the discussions. In: World Health Organization, editor. Research strategies for health. New York/Toronto/Bern/Göttingen: Hogrefe & Huber Publishers; 1992. p. 76-8.
2. Anderson OW. Influences of social and economic research on public policy in the health field: a review. Milbank Mem Fund Q 1966; 44 Suppl:11-51.
3. Almeida C. Delimitación del campo de la investigación en servicios de salud: desarrollo histórico y tendencias texto base para discusión. Cuadernos para Discusión 2000; (1):11-35.
4. Trostle J, Bronfman M, Langer A. How do researchers influence decision-makers? Case studies of Mexican policies. Health Policy Plan 1999; 4:103-14.
5. Walt G, Gilson L. Reforming the health sector in developing countries: the central role of policy analysis. Health Policy Plan 1994; 9:353-70.
6. Brown L. Knowledge and power: health services research as a political resource. In: Ginzberg E, editor. Health services research: key to health policy. Cambridge: Harvard University Press; 1991. p. 20-45.