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Os determinantes das condições de saúde das populações: qual o papel do sistema de saúde?

 

 

Mauricio L. Barreto

Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil. mauricio@ufba.br

 

 

Qualquer sociedade, por mais primitiva que seja, tem o seu sistema de saúde. Nele, aqueles que entendem sofrer de algum mal, físico ou psíquico, buscam os seus remédios. Ainda que esses sistemas possam seguir lógicas diagnósticas e terapêuticas bastante diferenciadas, a sua existência é parte da vida de qualquer sociedade, independente do grau de desenvolvimento social, econômico, cultural ou científico.

Não por acaso, as sociedades ocidentais modernas gestaram o seu modelo de sistema de saúde, o qual, evidentemente, apresenta as suas próprias peculiaridades. Uma das principais é o fato de ele estar diretamente atrelado ao sistema de produção do conhecimento científico e tecnológico dessas sociedades. Portanto, ele existe na sua forma atual há relativamente pouco tempo. Devemos lembrar que a penicilina tem menos de um século e a estreptomicina em torno de sete décadas de utilização terapêutica. Assim, será somente na segunda metade do século passado que se iniciará a organização efetiva do imenso "complexo médico-industrial" que se constitui no modelo ocidental moderno de sistema de saúde. Esse sistema, ao atrelar-se a um sistema científico-tecnológico alimentado por cifras que se aproximam dos 100 bilhões de dólares americanos anuais 1, apresenta a especial capacidade de intensa renovação mediante a permanente introdução de novas tecnologias diagnósticas ou terapêuticas.

Como enfatizado por diversos autores, conhecer e entender esse sistema é uma tarefa complexa e multidisciplinar. Nesse sentido, na perspectiva dos pesquisadores da área de saúde coletiva, é importante saber de que maneira podemos contribuir com conhecimentos que levem ao aperfeiçoamento e regulação deste sistema.

Como epidemiologista, e em virtude das limitações, concentrarei meus comentários na afirmativa feita por Novaes na primeira frase do Resumo do seu artigo: "os serviços e sistemas de saúde têm uma participação importante na determinação dos níveis de saúde e condições de vida das populações". Essa afirmação, entretanto, não mereceu uma discussão mais aprofundada no corpo do artigo.

A primeira reflexão séria sobre esta questão foi feita por um epidemiologista inglês, o Professor Thomas McKeown. Em um conjunto de trabalhos magistrais, frutos de um consistente programa de investigação iniciado no início da década de 1950 e pelo qual tentou entender as tendências da mortalidade no seu país a partir do século XVIII até a década de 1970, conclui pela contribuição irrelevante do sistema de saúde sobre a evolução dos níveis de saúde da população 2. As imensas reduções nas taxas de mortalidade teriam acontecido antes mesmo de esse sistema existir, e, após a sua criação, as melhorias observadas, com algumas poucas exceções, apenas seguiam as tendências decrescentes do período antecedente. Na sua visão, as reduções teriam sido, fundamentalmente, conseqüências de melhorias ocorridas nas condições de vida das populações, principalmente nas áreas da nutrição e do ambiente. Pelo fato de porem em cheque a efetividade de um dos esteios das sociedades modernas, essas teses tiveram e continuam tendo grande repercussão, com fortes adesões e duras criticas, ou seja, continuam polêmicas mesmo em dias atuais 3,4.

É evidente que nas últimas décadas do século XX, que se seguiram aos estudos de McKeown, o sistema de saúde sofreu uma renovada dose de confiança, em paralelo ao avanço dos conhecimentos biomédicos aberto pelas novas possibilidades de estudo das doenças no nível molecular e genético. Contudo, esse sistema ainda traz questões como: (a) o seu crescente distanciamento da prevenção primária, pois, quanto mais se capacita para atuar sobre os efeitos da doença, mais se desaprende de como atuar sobre os seus determinantes; (b) os seus efeitos iatrogênicos, dos quais reforçam-se evidências, como aquela trazida por um recente estudo realizado sob a égide do Instituto de Medicina dos Estados Unidos, que situou a iatrogenia entre a quarta e a oitava causa de morte naquele país 5, ou como o progressivo e preocupante problema da resistência bacteriana aos antibióticos 6; (c) por fim, os seus custos crescentes 7, que não somente tornam as perspectivas macro-econômicas desse sistema sombrias, como também são a base das iniqüidades de acesso, mesmo nas economias desenvolvidas.

Assim, se nos países centrais o sistema de saúde tem todos esses problemas, na periferia, onde, em geral, organizam-se réplicas esmaecidas, os problemas se multiplicam. Não há dúvida de que, desde o final do século XIX, a questão da contribuição do sistema de saúde na determinação das condições de saúde esteve sempre em competição com as idéias da determinação social. Pode-se citar como exemplo a descoberta do patógeno da tuberculose (ao fim do século XIX) e o conjunto de conhecimentos biomédicos posteriores, que selaram, em definitivo, o descrédito das preocupações sobre a causalidade social da doença, porém o fato de esses conhecimentos não terem impedido e nem mesmo prevenido o seu espetacular reaparecimento no cenário epidemiológico um século depois 8 mostra que os princípios contidos nos questionamentos ao sistema de saúde levantados nas teses de McKeown, apesar de algumas de suas inconsistências, em sua essência ainda continuam válidos e necessitam ser aprofundados.

Em resumo, podemos dizer que, enquanto a afirmativa de Novaes é extremamente polêmica, se colocada como questão é sem dúvida uma das mais importantes entre aquelas a serem respondidas pelos epidemiologistas que queiram contribuir para o entendimento do nosso sistema de saúde.

 

 

1. Global Forum for Health Research. The 10/90 Report on Health Research 2001-2002. Geneva: Global Forum for Health Research; 2002.
2. McKeown T. The role of medicine: dream, mirage or nemesis? Oxford: Basil Blakwell; 1979.
3. Colgrove J. The McKeown thesis: a historical controversy and its enduring influence. Am J Public Health 2002; 92:725-9.
4. Szreter S. The importance of social intervention in Britain's mortality decline c. 1850-1914: a reinterpretation of the role of public health. Soc Hist Med 1988; 1:1-38.
5. Kohn LT, Corrigan JM, Donaldson MS, editors. To err is human: building a safer health system. Washington DC: National Academy Press; 2000.
6. Knobler SL, Lemon SM, Najafi M, Burroughs T, editors. The resistence phenomenon in microbes and infectious diseases vectors: implications for human health and strategies for containment. Washington DC: National Academy Press; 2003.
7. Chernew ME, Hirth RA, Cutler DM. Increased spending on health care: how much can the United States afford? Health Aff (Millwood) 2003; 22:15-25.
8. Barnes DS. Historical perspectives on the etiology of tuberculosis. Microbes Infect 2000; 2:431-40.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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