DEBATE DEBATE
Debate sobre o artigo de Hillegonda Maria Dutilh Novaes
Debate on the paper by Hillegonda Maria Dutilh Novaes
Suely Rozenfeld
Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. rozenfel@ensp.fiocruz.br
O texto de Novaes, abrangente e com bibliografia farta e atual, vem em boa hora. Os indicadores da produção científica das nossas instituições acadêmicas impressionam em termos de número de programas de pós-graduação, publicações em revistas pertencentes a indexadores de qualidade inquestionável, pesquisadores engajados em instituições acadêmicas internacionais. Mas, a despeito dos avanços, alguns indicadores de desempenho de serviços, e de saúde, impressionam pelo oposto: mortes de bebês em maternidades por infecções controláveis, incidência crescente de certas doenças transmissíveis, como a hanseníase e a tuberculose, filas intermináveis na rede SUS.
Novaes trata de organizar o campo do conhecimento com um olho nos resultados das pesquisas: a atividade investigatória está de fato contribuindo para a melhoria das condições de oferta e de consumo de serviços de saúde? A autora estabelece como marco disciplinar o encontro entre a epidemiologia e a gestão de políticas e de programas, com o aporte da antropologia, da economia e demais áreas. E traz para a reflexão alguns aspectos importantes da atenção à saúde, abrindo espaço para que outros venham à tona. Um deles relaciona-se à expansão da cobertura populacional pelos sistemas de saúde nas décadas de 1970 e 1980, a qual se deu com certo grau de incorporação de tecnologia e resultou em preocupações quanto à capacidade de o processo sustentar-se economicamente.
A essa discussão é preciso agregar, além dos elementos já identificados, a questão da iatrogenia, dos efeitos adversos ocasionados pelo emprego de equipamentos, procedimentos, medicamentos e demais meios diagnósticos e terapêuticos. Afinal, sabe-se que, no campo do uso de tecnologia, vale o aforismo "o dobro de bom não é necessariamente ótimo". Isso é comprovado pela incidência de 6,7% de reações adversas graves entre pacientes hospitalizados 1. Há indícios de que os processos de extensão de cobertura arrastam consigo um elenco de subprodutos danosos: consumo conspícuo, complacência com os interesses dos produtores de equipamentos e insumos, uso de tecnologias testadas inadequadamente, uso insuficiente de protocolos de tratamento. A criação, o fomento e a difusão de linhas de investigação especialmente voltadas para a iatrogenia em suas múltiplas dimensões favoreceriam uma estratégia de mudança do atual modelo de atenção, cujas distorções são amplamente conhecidas.
Outro problema importante é o limite entre as atividades de pesquisa e de regulação (http:// www.anvisa.gov.br/servicosaude/avalia/index. htm, acessado em 07/Jun/2004), que pode, em certas situações, tornar-se indistinto. Não se sabe até que ponto, ao desvendar o papel das variáveis de serviço no perfil de morbidade e de mortalidade, por intermédio da inocente modelagem dos dados, surgem significativos desvios na gestão, na condução e na execução dos atos médicos e sanitários, que exigem pronta ação da vigilância sanitária. Os que estudam os serviços de saúde, através da abordagem direta destes, enfrentam dificuldade e dilemas, alguns deles com implicações éticas relevantes. Entre os problemas mais freqüentes destacam-se: a necessidade de contar com a cumplicidade dos responsáveis pelas unidades para se obterem os objetivos e as metas acadêmicas; o dilema de identificar e nomear, ou não, os serviços pesquisados e seus eventuais resultados desfavoráveis; o formato através do qual os resultados devem ser devolvidos não só aos responsáveis pelas políticas setoriais e pela prestação de assistência, como também à própria sociedade.
Um último aspecto que a leitura do texto suscita é a necessidade urgente de aprimorar as bases de dados nacionais existentes. É de surpreender que o Sistema Autorização de Internação Hospitalar de informações, que contém os registros de todas as autorizações para internações hospitalares, além de outras, sofra a incompreensível lacuna de não conter informação sobre os medicamentos empregados durante as internações. Sabe-se que as bases de dados, mesmo as administrativas, são cada vez mais empregadas em estudos de avaliação da qualidade da atenção 2. Então, trata-se de melhorar a qualidade delas para torná-las instrumentos úteis para pesquisa e para a tomada de decisões.
Certamente, o texto de Novaes, exposto ao debate aberto, vai provocar outras questões relevantes, resultado da sua qualidade. Espera-se também que impulsione o campo dos estudos sobre serviços de saúde entre nós.
1. Lazarou J, Pomeranz BH, Corey PN. Incidence of adverse drug reactions in hospitalized patients. JAMA 1998; 279:1200-5.
2. Weingart SN, Lezzoni LI, Davis RB, Palmer RH, Cahalane M, Hamel MB, et al. Use of administrative data to find substandard care validation of the complications screening program. Med Care 2000; 38:796-806.