ARTIGO ARTICLE

 

Atendimento odontológico de portadores de HIV/AIDS: fatores associados à disposição de cirurgiões-dentistas do Sistema Único de Saúde de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil

 

Factors associated with dentists' willingness to treat HIV/AIDS patients in the National Health System in Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil

 

 

Maria Inês Barreiros SennaI; Mark Drew Crosland GuimarãesII; Isabela Almeida PordeusI

IFaculdade de Odontologia, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil
IIFaculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Um estudo seccional foi conduzido entre cirurgiões-dentistas do Sistema Único de Saúde de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, com o objetivo de identificar fatores associados à disposição para o atendimento odontológico de portadores do HIV/AIDS. Questionários foram distribuídos aos participantes em seu local de trabalho. Um total de 140/345 (41,0%) dentistas selecionados participaram do estudo. A prevalência de disposição para o atendimento foi de 55,0%. Resultados ajustados pela regressão logística múltipla mostraram que a disposição para o atendimento foi significativamente associada a ter percepção correta sobre o risco ocupacional (OR = 4,8; IC95%: 1,32-18,04), conhecer protocolo pós-exposição ocupacional (OR = 4,5; IC95%: 1,61-13,07), ter atitudes positivas frente à epidemia (OR = 3,2; IC95%: 1,37-7,45), ter experiência profissional com paciente portador de HIV/AIDS (OR = 3,0; IC95%: 1,30-7,19) e ser contra o exame diagnóstico compulsório anti-HIV de pacientes (OR = 2,3; IC95%: 0,96-5,40). Dentistas que tiveram acidente perfurocortante apresentaram menor disposição para o atendimento (OR = 0,4; IC95%: 0,15-0,85). Estes resultados mostram que o medo do contágio é a principal fonte de ansiedade para os trabalhadores da saúde com relação ao atendimento de pacientes com HIV/AIDS.

Assistência Odontológica; Síndrome da Imunodeficiência Adquirida; Riscos Ocupacionais


ABSTRACT

A cross-sectional study was conducted among dentists in the Unified National Health System (SUS) in Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil, to identify factors associated with their willingness to treat HIV/AIDS patients. Questionnaires were distributed at the participant's workplace. Some 140 out of 345 selected dentists (41.0%) participated. Prevalence of willingness to treat was 55.0%. Results adjusted by multiple logistic regression showed that willingness to treat was significantly associated with a realistic perception of occupational risk (OR = 4.8; 95%CI: 1.32-18.04), knowledge of the exposure protocol (OR = 4.5; 95%CI: 1.61-13.07), positive attitudes towards dealing with the epidemic (OR = 3.2; 95%CI: 1.37-7.45), previous professional experience with HIV/AIDS patients (OR = 3.0; 95%CI: 1.30-7.19), and opposition to compulsory testing of patients for HIV (OR = 2.3; 95%CI: 0.96-5.40). Dentists with prior accidental exposure to potentially contaminated material showed less willingness to treat (OR = 0.4; 95%CI: 0.15-0.85). Fear of contamination was the main source of anxiety for health workers dealing with HIV/ AIDS patients.

Dental Care; Acquired Immunodeficiency Syndrome; Occupational Risk


 

 

Introdução

A eclosão da AIDS, no início da década de 80, foi responsável por mudanças significativas em vários campos que não somente o da saúde, principalmente por combinar comportamento sexual e doença 1. A representação da AIDS como doença estigmatizante, fatal, que inicialmente concentrou-se entre grupos marginalizados da sociedade, resultou em um medo equivocado e muito difundido dentro da população em geral 2. A disseminação da epidemia de AIDS tem provocado uma grande tensão entre os trabalhadores da saúde, causada por dois fatores. De um lado, as preocupações legítimas dos trabalhadores quanto ao risco ocupacional ao HIV e, por outro, a persistência de preconceitos que contribuíram para aumentar a resistência dos serviços de saúde ao atendimento a pacientes com HIV/AIDS 3.

Apesar da adoção das medidas de precaução-padrão e do baixo risco da exposição ocupacional ao HIV 4,5,6, profissionais de saúde, inclusive cirurgiões-dentistas, têm negado, ainda hoje, atendimento a pessoas sabidamente com HIV/AIDS. Estudos com a finalidade de determinar quais os fatores determinantes da conduta de profissionais de saúde em atender pacientes com HIV/AIDS têm sido desenvolvidos em vários países. Os principais fatores associados com a disposição para o atendimento de pacientes com HIV/AIDS, de acordo com literatura revisada, são: preconceito 7,8,9; medo do contágio 7,8,9,10,11,12,13,14; atitudes frente à epidemia 8,10,14,15,16; conhecimento técnico sobre a infecção pelo HIV 10,17; percepção sobre risco ocupacional 11,18; experiência anterior com pacientes portadores de HIV/AIDS 2,8,13,18; estadiamento da infecção pelo HIV do paciente 14,15,16,19; idade e tempo de formado do profissional 2,8,12,17,20; e assalariamento no setor público 14,15,16,17.

Compreender os fatores associados à disposição de cirurgiões-dentistas, do Sistema Único de Saúde (SUS) de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, para o atendimento de paciente sabidamente soropositivo para o HIV mostra-se importante considerando o número crescente de casos de AIDS e de novas infecções pelo HIV, com o conseqüente aumento da demanda assistencial aos portadores. Este crescimento de novos casos tem sido observado entre as camadas mais pobres da população que, predominantemente, utilizam a rede pública de assistência à saúde. Verifica-se, ainda, que os portadores de HIV/AIDS apresentam uma situação de saúde bucal bastante grave, onde coexistem, com grande prevalência, doenças bucais tais como: cárie e doença periodontal, e os problemas bucais associados à infecção pelo HIV que requerem pronto tratamento e contínuo monitoramento. Outro aspecto importante é a forma de organização da assistência odontológica aos portadores, que por ser centralizada em um serviço de referência, tem se mostrado insuficiente para atender esta demanda.

Assim, no contexto de uma descentralização do atendimento odontológico para outras unidades de saúde da rede municipal, torna-se fundamental conhecer as atitudes dos cirurgiões-dentistas com relação os portadores de HIV/AIDS. A escolha desta categoria dentro da equipe de saúde bucal justifica-se não só pelo seu papel no diagnóstico e terapêutica das manifestações bucais da infecção pelo HIV, mas, também, porque os dentistas podem ser considerados profissionais estratégicos dentro dessa equipe, assumindo, muitas vezes, o papel de líder. Deste modo, suas atitudes e/ou posturas profissionais podem influenciar o comportamento dos outros componentes da equipe de saúde bucal. E estes fatores, conseqüentemente, refletem-se na qualidade do atendimento aos pacientes com HIV/AIDS. O objetivo deste estudo foi avaliar os fatores associados à disposição de cirurgiões-dentistas do SUS de Belo Horizonte para o atendimento de pacientes com HIV/AIDS.

 

Materiais e métodos

População estudada

A população-alvo do estudo era constituída por 457 cirurgiões-dentistas que estavam sob gerenciamento da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte. Estes profissionais encontravam-se distribuídos pelo nível central, pelas sedes dos nove Distritos Sanitários e por 194 locais de atendimento (escolas, centros de saúde, policlínicas, creches e outros), em quatro setores de atividades (administrativo, atendimento ambulatorial, apoio diagnóstico e emergência). Cirurgiões-dentistas que exerciam atividades administrativas, que estavam afastados por motivos de saúde e os que trabalhavam no serviço de referência de AIDS foram excluídos do universo. Após a exclusão, a população elegível para o estudo era formada por 345 cirurgiões-dentistas.

Todos os participantes receberam uma carta explicando os objetivos e procedimentos do estudo e assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido. Este projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais.

Coleta de dados

A coleta de dados, realizada em dezembro de 1999, foi feita por meio de questionário auto-aplicável enviado para o local de trabalho de cada participante. A devolução dos questionários foi feita de forma passiva pelos respondentes. O instrumento e a logística da pesquisa foram testados no estudo-piloto. Nesta etapa, vinte cirurgiões-dentistas foram selecionados de forma aleatória e a taxa de devolução do questionário no estudo-piloto foi de 75,0%.

Variáveis do estudo

Disposição dos cirurgiões-dentistas para o atendimento de pacientes com HIV/AIDS nas unidades de saúde do SUS de Belo Horizonte foi considerada a variável dependente. Foi medida com uma escala de Guttman de quatro afirmativas, adaptada de Sadowsky & Kunzel 19, que verificava a disposição para o atendimento a pacientes com infecção pelo HIV, na rede pública de saúde, sob as seguintes circunstâncias: (1) paciente de manutenção HIV positivo assintomático; (2) paciente de manutenção HIV positivo sintomático; (3) paciente novo HIV positivo assintomático; e (4) paciente novo HIV positivo sintomático. Os respondentes deveriam responder as quatro afirmativas de acordo com opções "discordo totalmente", "discordo parcialmente", "estou em dúvida", "concordo parcialmente" e "concordo totalmente". Os cirurgiões-dentistas que marcaram as primeiras três opções citadas receberam zero (0) ponto e foram considerados como não dispostos. Os cirurgiões-dentistas que marcaram as opções "concordo parcialmente" e "concordo totalmente" receberam um (1) ponto e foram considerados como dispostos.

A escala do tipo Guttman é constituída de afirmativas que possuem propriedades ordinais e cumulativas. Na sua elaboração são formuladas afirmações acerca de um objeto atitudinal a ser medido em ordem de dificuldade sucessiva. Deste modo, quanto mais favorável for a atitude do sujeito ao objeto atitudinal, maior será o número de itens com os quais ele concordará 21.

Como variáveis explicativas foram consideradas: (a) atitudes frente à epidemia de AIDS medida pela escala de Likert, adaptada de Moriya 22; (b) características sócio-demográficas; (c) atitudes frente ao atendimento odontológico de pacientes portadores de outras doenças infecto-contagiosas; (d) formação e perfil profissional; (e) medidas de precaução-padrão adotadas e conhecimento/percepção sobre risco ocupacional; e (f) experiências pessoais e profissionais com pessoas vivendo com HIV/AIDS.

Análise dos dados

A análise dos dados foi baseada no teste do qui-quadrado para verificar diferenças entre variáveis categóricas e no odds ratio (OR), com intervalo de confiança de 95% (IC95%) para estimativa da magnitude das associações 23. O efeito independente de variáveis selecionadas na disposição para o atendimento foi avaliado por meio de modelo multivariado, utilizando-se de regressão logística. No modelo inicial foram incluídas as variáveis que apresentaram um p < 0,05. A seguir, foram elaborados diferentes modelos com a retirada de cada uma das variáveis originais, passo a passo. A adequação do modelo final foi avaliada pelo Hosmer-Lemeshow test 24. Os programas Epi Info versão 6.0 e EGRET foram utilizados para viabilizar a análise estatística.

 

Resultados

Dos 345 questionários distribuídos, 140 (41,0%) foram devolvidos. Devido à baixa taxa de participação foi realizada uma análise comparativa, com o objetivo de verificar a existência de diferenças entre os grupos que poderiam estar influenciando os resultados. Para assegurar aos participantes o completo anonimato, não foi realizada nenhuma identificação dos questionários enviados com relação a algumas variáveis. Assim, não foi possível comparar os respondentes com os não-respondentes e sim com a população elegível. Estes resultados parecem indicar que não houve diferenças expressivas entre a população elegível para o estudo e os respondentes. Não foi realizado nenhum teste estatístico por causa da interdependência das amostras (Tabela 1).

 

 

A mediana de idade dos participantes foi de quarenta anos com uma predominância do sexo feminino (64,3%). Cerca de 31,0% dos respondentes eram especialistas e 66,0% declaram-se como parcialmente assalariados. Cerca de 83,0% dos participantes exerciam suas atividades em centros de saúde, trabalhavam com auxiliares (54,0%), realizavam atividades de clínica geral (84,0%) e atendiam todas as faixas etárias da população (39,3%).

Com relação à disposição para o atendimento de pacientes com HIV/AIDS, os valores poderiam variar entre 0 (zero) — dentistas sem disposição — a 4 (quatro) pontos — dentistas com máxima disposição. Neste estudo, a pontuação encontrada variou de 0 a 4 pontos. O escore médio atingido pelo grupo foi de 2,7 pontos (desvio padrão — DP = 1,57) e a mediana dos escores foi de 4 pontos. Utilizando-se a mediana como ponto de corte da escala, os cirurgiões-dentistas foram divididos em dois grupos: dentistas com maior disposição (escore = 4), composto por 77 profissionais; e dentistas com menor disposição (escores = 0, 1, 2 e 3), formado por 63 profissionais. Como o objetivo foi analisar os fatores associados à disposição para o atendimento, comparou-se o grupo com máxima disposição com o grupo restante. Desta forma, a proporção encontrada para a máxima disposição em atender pacientes com HIV/ AIDS foi de 55,0%, e esse dado é coerente com a literatura revisada 14,17.

As atitudes frente à epidemia de AIDS foram medidas com uma escala do tipo Likert de 14 afirmativas de 5 pontos, cujos escores mínimo e máximo que poderiam ser atingidos estavam entre 14 e 70 pontos, respectivamente. O grupo estudado apresentou um escore médio de 57,9 pontos (DP = 13,10) e a mediana foi de 61 pontos. Quatro participantes não responderam esta questão e foram excluídos dessa etapa da análise. A mediana foi utilizada para a distribuição dos cirurgiões-dentistas em dois grupos: dentistas com atitudes negativas (de 32 a 61 pontos), composto por 67 profissionais; e dentistas com atitudes positivas (de 61 a 70 pontos), formado por 69 profissionais.

As variáveis explicativas que apresentaram associações positivas e estatisticamente significantes com a disposição para o atendimento de pacientes com HIV/AIDS, na análise univariada foram as seguintes: cirurgiões-dentistas com atitude positiva frente à epidemia de AIDS; cirurgiões-dentistas que concordavam que era sua responsabilidade em atender portador de doenças infecto-contagiosas; cirurgiões-dentistas que atendiam indivíduos de diversas faixas etárias na unidade de saúde; cirurgiões-dentistas que conheciam os procedimentos a serem adotados após exposição ocupacional a material biológico; cirurgiões-dentistas que tinham uma percepção correta do risco do atendimento odontológico de pacientes com HIV/ AIDS usando equipamentos de proteção individual; cirurgiões-dentistas que eram contra o exame diagnóstico anti-HIV compulsório em pacientes; cirurgiões-dentistas que eram favoráveis à manutenção do exercício profissional de dentista portador do HIV; e cirurgiões-dentistas com experiência prévia com pacientes portadores de HIV/AIDS. Finalmente, foi encontrada associação negativa e estatisticamente significante entre disposição para o atendimento e as seguintes variáveis explicativas: cirurgiões-dentistas que acreditavam ter o direito de escolher atender pacientes portadores de doenças infecto-contagiosas; e cirurgiões-dentistas com história de acidente com material perfurocortante no ano anterior (Tabela 2).

No modelo multivariado, este estudo identificou a associação independente entre disposição para o atendimento odontológico de pacientes com HIV/AIDS de cirurgiões-dentistas do SUS de Belo Horizonte e as variáveis: (a) ter percepção correta sobre risco ocupacional de atendimento odontológico de portador do HIV/ AIDS, ou seja, cirurgiões-dentistas com percepção correta apresentaram uma chance 4,9 vezes maior de serem mais dispostos do que os que tinham uma percepção incorreta; (b) ter conhecimento dos procedimentos pós-exposição acidental a material biológico, cirurgiões-dentistas que declararam conhecer tais procedimentos apresentaram uma chance 4,6 vezes maior de serem mais dispostos do que os que declararam desconhecê-los; (c) atitude positiva frente à epidemia de AIDS, cirurgiões-dentistas com atitudes positivas apresentaram uma chance 3,2 vezes maior de serem mais dispostos do que os que tinham atitudes negativas; (d) ter tido experiência profissional com pacientes portadores de HIV/AIDS, cirurgiões-dentistas com experiência prévia apresentaram uma chance 3,0 vezes maior de serem mais dispostos quando comparados com os que não tinham essa experiência; (e) ser contra o exame diagnóstico compulsório anti-HIV de pacientes, cirurgiões-dentistas que eram contrários ao exame apresentaram uma chance 2,3 vezes maior de serem mais dispostos do que os que eram a favor de tal medida; e (f) história de acidente perfurocortante, no período estudado, cirurgiões-dentistas com história de acidente apresentaram uma menor chance de serem mais dispostos do que aqueles que não sofreram acidente. O resultado do teste utilizado indicou a adequação do modelo final (Tabela 3).

 

 

Discussão

A análise aqui apresentada identifica uma tendência nos padrões da prática odontológica e das atitudes dos cirurgiões-dentistas frente ao atendimento de pacientes com HIV/AIDS no SUS de Belo Horizonte, apesar das limitações deste estudo — a pequena taxa de participação e a possível existência de viés dos não-respondentes. De acordo com a literatura revisada, as taxas de respostas em inquéritos que avaliam a disposição de dentistas para o atendimento de pacientes com HIV/AIDS variam consideravelmente de 35,0-38,5% a 88,0-90,0% 15,25. Uma menor participação pode ser bastante problemática pela introdução de vieses: os não-respondentes podem oferecer uma resposta diferente da dos respondentes. Entretanto, não se pode assumir que os estudos com altas taxas de resposta não tenham este tipo de viés. McCarthy & MacDonald 25 investigaram a resposta tardia e o viés do não-respondente em um estudo com alta taxa de participação (70,0%), sobre atitudes de dentistas em relação a pacientes com HIV/AIDS no Canadá, e encontraram evidências significativas de que o viés do não-respondente estava associado com os medos relacionados à infectividade do HIV. Devido ao viés do não-respondente, neste estudo, não podemos assumir que a prevalência de disposição encontrada é representativa da categoria investigada. Pode estar ocorrendo uma superestimativa da disposição, visto que os não-respondentes poderiam apresentar menor disposição para o atendimento de portadores de HIV/AIDS.

Os resultados indicam que os cirurgiões-dentistas que apresentaram maior disposição para o atendimento odontológico de portadores de HIV/AIDS tinham uma percepção correta sobre o risco de contaminação ocupacional durante o atendimento odontológico. Esta associação já foi relatada na literatura 11,18, e reafirma que uma avaliação adequada sobre o risco ocupacional ao HIV é um fator importante na disposição de profissionais de saúde para o atendimento de pessoas com HIV/AIDS. Os cirurgiões-dentistas com maior disposição conheciam o protocolo pós-exposição acidental a material biológico. Esses dois resultados anteriores já reportados na literatura, sugerem que o conhecimento adequado sobre a infecção pelo HIV pela equipe de saúde favorece o atendimento de pacientes com HIV/AIDS. Assim, programas de educação permanente para a equipe de odontologia em temas relacionados à epidemia de HIV/AIDS, constituem-se em importante estratégia para ampliar o acesso e aprimorar a qualidade do atendimento odontológico ofertado às pessoas vivendo com HIV/AIDS.

A maior disposição para o atendimento esteve relacionada com atitudes positivas do profissional frente à epidemia de HIV/AIDS, conforme relatado na literatura 8,10,14,15,16. Este resultado ressalta a importância da representação social da AIDS e do portador do HIV enquanto determinante da qualidade da assistência a este paciente. A discriminação, segregação e rejeição aos portadores do vírus HIV divulgadas desde o início da epidemia ainda persistem, inclusive entre os trabalhadores de saúde. A representação da AIDS como doença estigmatizante, fatal, que inicialmente concentrou-se entre grupos marginalizados da sociedade (por exemplo, homens que fazem sexo com homens, usuários de drogas injetáveis e trabalhadoras do sexo), resultou em um medo equivocado e muito difundido dentro da população em geral 2. Com o passar dos anos, observa-se uma transformação na representação inicial da AIDS provocada pelas mudanças nas tendências da infecção pelo HIV, como por exemplo, o aumento crescente de casos de AIDS entre as mulheres e adolescentes. Outro aspecto que pode ter contribuído para essa mudança é o advento da terapia anti-retroviral que tem contribuído para uma maior sobrevida e melhor qualidade de vida. As pessoas são vistas não somente como morrendo de, mas vivendo com HIV/AIDS 1.

Dentre outras atitudes positivas foi encontrada, também, uma maior disposição para o atendimento de portadores de HIV/AIDS entre os dentistas que eram contrários à realização de exame diagnóstico compulsório anti-HIV. Este resultado revela que o respeito ao paciente, ao cidadão (sigilo, confidencialidade, vínculo e responsabilização) constitui-se fator extremamente importante na relação profissional-paciente, que traz implicações para a questão da assistência odontológica da população e especificamente para pessoas vivendo com HIV/AIDS.

Foi encontrada associação entre maior disposição para o atendimento e ter tido experiência prévia com pacientes HIV/AIDS, conforme já reportado na literatura 2,8,13,18. Este resultado ressalta a importância do contato interpessoal como um importante fator capaz de modificar as atitudes e as crenças dos profissionais com relação às pessoas com HIV/AIDS.

Verificou-se que os dentistas que relataram história de acidente perfurocortante apresentavam uma menor disposição para o atendimento. Esta associação aponta que o medo do contágio é um importante fator associado à disposição dos dentistas para o atendimento. Exposição acidental a material biológico contaminado é sentida como uma situação de "risco real" de contaminação, assim, é compreensível que o dentista que tenha sofrido as apreensões e angústias relacionadas a um acidente perfurocortante tenha declarado menor disposição para o atendimento de pacientes portadores do HIV/AIDS. Este achado é bastante relevante considerando-se as características da prática odontológica, ou seja, o uso rotineiro de instrumentos perfurocortantes num campo de visualização restrito que aumenta o risco de lesões percutâneas.

Os resultados deste trabalho estão coerentes com a literatura e apontam que o conhecimento apropriado sobre questões técnicas e éticas relacionadas à infecção pelo HIV, associado com a experiência profissional e representação social da doença e dos doentes de AIDS, que rompe com as metáforas criadas em torno da epidemia, constituem-se nos principais fatores associados à disposição para o atendimento de pessoas vivendo com HIV/AIDS. O medo do contágio constitui-se na principal fonte de ansiedade para os trabalhadores da saúde com relação ao atendimento de pacientes com HIV/AIDS. Esses resultados merecem reflexões mais aprofundadas tanto das instituições formadoras, dos serviços públicos de saúde e da sociedade organizada, com o intuito de discutir os problemas que podem favorecer ou perpetuar a iniqüidade do acesso aos serviços de saúde de determinadas parcelas da população, especialmente as pessoas vivendo com HIV/AIDS.

 

Colaboradores

M. I. B. Senna realizou a coleta dos dados, análise e revisão da literatura. M. D. C. Guimarães orientou a análise e discussão. I. A. Pordeus colaborou na redação do artigo em conjunto com os demais autores.

 

Referências

1. Galvão J. AIDS no Brasil: a agenda de construção de uma epidemia. Rio de Janeiro: Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS/São Paulo: Editora 34; 2000.        

2. Watt RG, Croucher R. Dentist's perceptions of HIV/AIDS as occupational hazard: a qualitative investigation. Int Dent J 1991; 41:259-64.        

3. Acurcio FA. Trabalhar em saúde nos tempos de AIDS: o risco e o medo. Rev Bras Clín Ter 1997; 23:111-7.        

4. Centers for Disease Control and Prevention. Recommendations for preventing transmission of infection with human T-lymphotropic virus type III/lymphaddenopaty-associated virus in the workplace. MMWR Morb Mortal Wkly Rep 1985; 34:681-6, 691-5.        

5. Centers for Disease Control and Prevention. Case-control study of HIV seroconversion in health-care workers after percutaneous exposure to HIV-infected blood: France, United Kingdom, and United States, January 1988 — August 1994. MMWR Morb Mortal Wkly Rep 1995; 44:929-33.        

6. Centers for Disease Control and Prevention. Public health service guidelines for the management of health-care worker exposures to HIV and recommendations for post exposure prophylaxis. MMWR Morb Mortal Wkly Rep 1998; 47:1-28.        

7. Taerk G, Gallop RM, Lancee WJ, Coates RA, Fanning M. Recurrent themes of concerns in groups for health care professionals. AIDS Care 1993; 5:215-22.        

8. Bennett ME, Weyant RJ, Wallisch JM, Green G. A national survey: dentist's attitudes toward the treatment of HIV-positive patients. J Am Dent Assoc 1995; 126:509-14.        

9. Croser D. General practitioner for the HIV positive population: a balanced decision. In: Greenspan JS, Greenspan D, editors. Oral manifestations of HIV. Chicago: Quintessence Publishing; 1995. p. 330-5.        

10. Gerbert B. AIDS and infection control in dental practice: dentist's attitudes, knowledge, and behavior. J Am Dent Assoc 1987; 114:311-4.        

11. McCarthy GM, Koval JJ, Morin RJ. Factors associated with dentists' willingness to treat HIV-infected patients. In: Greenspan JS, Greenspan D, editors. Oral manifestations of HIV. Chicago: Quintessence Publishing; 1995. p. 351-6.        

12. Wilson NH, Burke FJ, Cheung SW. Factors associated with dentists' willingness to treat high-risk patients. Br Dent J 1995; 178:145-8.        

13. Gibson B, Freeman R. Dangerousness and dentistry: an explanation of dentists' reactions and responses to the treatment of HIV-seropositive patients. Community Dent Oral Epidemiol 1996; 24:341-5.        

14. Discacciatti JAC. Disposição de cirurgiões-dentistas para atender indivíduos em risco para a infecção pelo HIV ou com AIDS [Dissertação de Mestrado]. Belo Horizonte: Faculdade de Odontologia, Universidade Federal de Minas Gerais; 1997.        

15. Sadowsky D, Kunzel C. Measuring dentists' willingness to treat HIV-positive patients. J Am Dent Assoc 1994; 125:705-10.        

16. Vilaça EL. O que falta aos odontopediatras de Belo Horizonte para atender crianças e adolescentes portadores do vírus HIV/AIDS: conhecimentos ou sentimentos? [Dissertação de Mestrado]. Belo Horizonte: Faculdade de Odontologia, Universidade Federal de Minas Gerais; 1999.        

17. Alvarez-Leite, ME. Caracterização da conduta dos cirurgiões-dentistas de Belo Horizonte frente aos procedimentos de controle de infecção cruzada: uma perspectiva epidemiológica [Dissertação de Mestrado]. Belo Horizonte: Instituto de Ciências Biológicas, Universidade Federal de Minas Gerais; 1996.        

18. Angelillo IF, Villari P, D'Errico M, Grasso GM, Ricciardi G, Pavia M. Dentists and AIDS: a survey of knowledge, attitudes, and behavior in Italy. J Public Health Dent 1994; 54:145-52.        

19. Sadowsky D, Kunzel C. Predicting dentists' willingness to treat HIV-infected patients. AIDS Care 1996; 8:581-8.        

20. Sadowsky D, Kunzel C. Are you willing to treat AIDS patients? J Am Dent Assoc 1991; 122:29-32.        

21. Oppenhein AN. Questionnaire design e attitude measurement. London: Heinemann Educational Books; 1966.        

22. Moriya TM. Escala de atitudes frente à AIDS: uma análise psicométrica [Tese de Livre-docência]. Ribeirão Preto: Faculdade de Enfermagem, Universidade de São Paulo; 1992.        

23. Kahn HA, Sempos CT. Statistical methods in epidemiology. 2nd Ed. New York: Oxford University Press; 1989.        

24. Hosmer DW, Lemeshow S. Applied logistic regression. 2nd Ed. New York: John Wiley & Sons; 2000.        

25. McCarthy GM, MacDonald JK. Nonresponse bias in a national study of dentists' infection control practices and attitudes related to HIV. Community Dent Oral Epidemiol 1997; 25:319-23.        

 

 

Endereço para correspondência
M. I. B. Senna
Departamento de Clínica, Patologia e Cirurgia, Faculdade de Odontologia, Universidade Federal de Minas Gerais
Rua Niterói 161, apto. 201
Belo Horizonte, MG 30240-400, Brasil
senna@odonto.ufmg.br

Recebido em 23/Mar/2004
Versão final reapresentada em 01/Set/2004
Aprovado em 09/Set/2004

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br