RESENHAS BOOK REVIEWS

 

Volnei Garrafa

Cátedra UNESCO de Bioética, Universidade de Brasília, Brasília, Brasil

 

 

BIOÉTICA COTIDIANA. Giovanni Berlinguer. Brasília: Editora UnB, 2004. 280 pp.
ISBN 85-230-0741-5

Giovanni Berlinguer está entre os mais respeitados sanitaristas e bioeticistas do mundo. Com forte vínculo acadêmico, político e afetivo com o Brasil, segundo palavras de Sergio Arouca, saudoso ex-deputado e ex-presidente da Fundação Oswaldo Cruz, foi um dos principais mentores intelectuais da Reforma Sanitária Brasileira, traduzida pelos princípios norteadores do Sistema Único de Saúde (SUS) e materializadas na Constituição de 1988. Nos ásperos tempos da ditadura militar, seus livros eram lidos às escondidas, passando cuidadosamente de mão em mão. Mais recentemente, no início dos anos 90, mudou-se com armas e bagagens do campo da Saúde Pública para a Bioética, sem deixar de manter os olhos voltados para as questões ideológicas, sanitárias e coletivas que nortearam toda sua longa vida pública.

Sua vasta produção científica ultrapassa o número de 45 obras, uma dúzia delas traduzidas para o português, entre as quais Medicina e Política (1978), A Saúde nas Fábricas (1983), Reforma Sanitária — Itália e Brasil (1988, em parceria com Sonia Fleury Teixeira e Gastão Wagner de Souza Campos), A Doença (1988), Minhas Pulgas (1991) e O Mercado Humano (1996 e 2001 — 2ª edição, em parceria com Volnei Garrafa). Bioética Cotidiana, traduzido por Lavínia Bozzo Aguilar Porciúncula e lançado pela Editora UnB em 2004, fecha um ciclo iniciado com outras duas memoráveis produções: Questões de Vida — Ética, Ciência e Saúde (1991) e Ética da Saúde (1995).

 

Biografia & histórias do autor

Berlinguer nasceu em 1924, em Sassari, na ilha italiana da Sardenha, filho de um notável advogado defensor dos direitos humanos que fez parte da resistência italiana na primeira metade do século 20, principalmente durante as duas Grandes Guerras Mundiais. Iniciou sua carreira acadêmica como professor de Medicina Social da universidade local, atividade que desenvolveu até 1974, quando assumiu a cátedra de Saúde do Trabalho na Universidade La Sapienza, em Roma, onde permaneceu até a aposentadoria compulsória, em 1999, aos 75 anos de idade. É atualmente Presidente de Honra do Comitê Nacional Italiano de Bioética e membro atuante titular do Comitê Internacional de Bioética da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Cultura e a Ciência). Completou 80 anos em 9 de julho de 2004, um mês após ter sido eleito com impressionante votação como deputado italiano junto ao Parlamento Europeu. Anteriormente já havia ocupado a cadeira de deputado por três legislaturas (1972-1983) e senador em outras duas (1983-1992), sempre pelo seu velho e amado PCI (Partido Comunista Italiano). Um de seus maiores feitos no parlamento foi a relatoria da "Lei do Aborto" que, por ter sido aprovada na Itália, país fortemente católico, chamou a atenção da imprensa de todo mundo pela autoridade moral, competência e habilidade com que foi conduzida.

Conheceu o Brasil em 1951, quando visitou o país como diretor da Associação Internacional de Estudantes, tendo participado de diversas manifestações e reuniões com universitários brasileiros pertencentes à UNE (União Nacional de Estudantes) no Rio de Janeiro. Na ocasião, foi ameaçado de expulsão do país pelo deputado direitista Carlos Lacerda, que o acusou de ser um perigoso "espião russo". Com seu costumeiro bom humor, ao receber o título de Cidadão Honorário de Brasília, em 1999, relatou o fato, agradecendo à médica e deputada Maria José Maninha (PT/DF), executora da proposta, por lhe proporcionar a segurança de que, a partir de então, não mais poderia sofrer qualquer "tentativa de expulsão do Brasil". Naquele mesmo ano, recebeu da Universidade de Brasília (UnB) o título de Doutor Honoris Causa, homenagem com a qual já havia sido anteriormente agraciado nas Universidades de Montreal (Canadá) e Havana (Cuba).

No final de 2002 voltou à capital do Brasil para proferir a conferência Bioética, Poder e Injustiça, que abriu o 6º Congresso Mundial organizado pela International Association of Bioethics e pela Sociedade Brasileira de Bioética, o maior evento já empreendido no planeta sobre a especialidade, com a participação de pesquisadores provenientes de 62 países dos cinco continentes. A viagem mais recente de Berlinguer ao país foi na qualidade de convidado especial do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva para sua posse, representando a Central Geral Italiana de Trabalhadores (CGIL) à qual está ligado há mais de meio século.

 

"Bioética cotidiana" e "bioética de situações limite" ou "de fronteiras" 

Bioética Cotidiana é uma preciosa síntese das principais reflexões do festejado autor nos últimos 15 anos. Utilizando argumentos profundos, apresentados de modo lógico e compreensível, estabelece uma ponte coerente entre a ética e as questões sanitárias do dia-a-dia neste início de século XXI. Trata-se de um livro atualíssimo, bem documentado e abrangente, de interesse para a Bioética, diretamente, e também na sua relação com as ciências biológicas e da saúde, com as ciências humanas de modo geral, com as ciências políticas e sociais; enfim, com a ética da qualidade da vida como um todo.

Desde o início da obra, o autor se preocupa em justificar que apesar da mesma tratar das questões "cotidianas" (que, segundo suas palavras, "acontecem todos os dias e não deveriam mais estar acontecendo", como a exclusão social e a pobreza) ele estará, constantemente, no transcorrer dos capítulos, buscando exemplos de situações que denomina de "limites" ou "fronteiras" do desenvolvimento tecno-científico, como as novas técnicas reprodutivas e a clonagem, por exemplo. No Brasil, mais especificamente na Cátedra UNESCO de Bioética da UnB, têm sido usadas as expressões "bioética das situações persistentes" e "bioética das situações emergentes", dentro de uma linha de pensamento que busca amparo na historicidade dos fatos, para o que Berlinguer denomina de "bioética cotidiana" e de "bioética das situações limite" ou "de fronteiras".

Trata-se de uma análise envolvente sobre as novas formas de nascer, viver e morrer das pessoas e comunidades, em um mundo tecnicamente avançado e globalizado, mas pleno de contradições, com a maioria da população sem acesso aos benefícios decorrentes dos avanços científicos e tecnológicos. Que trata da relação indispensável entre ciência e natureza e discute temas candentes relacionados à eqüidade, trabalho e conflitos éticos decorrentes. Que analisa o corpo humano desde a escravidão ao biomercado, aprofundando no estudo crítico da saúde global. Que mostra novos rumos morais a serem observados pelas sociedades democráticas do terceiro milênio. Um livro esclarecedor, que desnuda e analisa com clareza avassaladora a nossa realidade ética cotidiana e dos dias que estão por vir.

 

Os cinco capítulos e o posfácio

Didaticamente a obra é dividida em cinco grandes capítulos. O primeiro aborda o Nascer Hoje, Entre a Natureza e a Ciência, onde analisa assuntos que vão desde os direitos reprodutivos, aborto, esterilização e eqüidade, passando pela discussão das questões emergentes relacionadas com a reprodução assistida e a experimentação com embriões, chegando à clonagem humana. O segundo capítulo trabalha o tema População, Ética e Eqüidade, enfocando as escolhas individuais e as decisões coletivas com base nos valores da demografia, incluindo a análise das bases éticas das políticas populacionais e terminando com a instigante interrogação se, a partir da teoria dos direitos humanos e do pluralismo e considerando os recursos econômicos de cada país, é ético intervir no controle populacional. O capítulo seguinte centra a atenção no Trabalho e Saúde: Fundamentos e Conflitos Éticos, onde assuntos como a ética dos negócios e a ética das virtudes são discutidos conjuntamente com as teorias econômicas de Adam Smith (sobre a riqueza das nações e o bem-estar dos trabalhadores) e Karl Marx (sobre o uso ou depredação da força de trabalho). Esse tópico incorpora, ainda, as relações entre os trabalhadores e as empresas, além da produção propriamente dita e o meio ambiente.

O capítulo quarto focaliza O Corpo Humano: da Escravidão ao Biomercado, onde elabora uma aguda crítica do processo de comercialização desenfreada do que denomina de "um novo mercado humano" e que inclui temas como a valorização do corpo, a mercantilização do corpo, o (errôneo...) argumento da inferioridade, as formas atuais de escravidão e os novos "objetos" do biomercado. O último capítulo, finalmente, traz um debate muitíssimo atualizado sobre A Saúde Global, traçando uma candente crítica ao descontrolado processo de globalização econômica promovido pelos países ricos, que exclui crescentemente as populações pobres do mundo das condições mínimas para viver com dignidade e dos benefícios das novas descobertas da ciência. Para veicular a discussão, lança mão de referenciais concretos como as antigas e novas infecções, a degradação ambiental, as drogas e a violência crescente em todos os níveis e setores do contexto internacional.

Para terminar, o autor brinda os leitores com um delicioso Posfácio, onde narra detalhadamente como foi construindo cada capítulo e quais interlocutores acadêmicos, com as respectivas referências bibliográficas específicas para cada tópico, foram importantes nessa construção. A preocupação constante com a interlocução, o diálogo e a reflexão estão entre as principais virtudes de Berlinguer: "citei, no prefácio e ao longo dos cinco capítulos, muitas opiniões tanto divergentes como concordantes com as minhas, por sua vez provenientes de pessoas e tendências de várias orientações". Termina o livro com humildade, um de seus traços mais marcantes e próprios dos "grandes", preocupado em não deixar o leitor com dúvidas: "os argumentos e as orientações..., enfim, propõem uma contínua reavaliação da relação entre a bioética de fronteira e a bioética cotidiana... Essa análise, pelo menos nas intenções, representa talvez o principal fio condutor do livro".

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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