RESENHAS BOOK REVIEWS
Elizabeth Uchoa
Centro de Pesquisas René Rachou, Fundação Oswaldo Cruz, Belo Horizonte, Brasil
ITINERÁRIOS DA LOUCURA EM TERRITÓRIOS DOGON. Denise Dias Barros. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2004. 260 pp.
ISBN: 85-7541-040-7
Em seu livro, Itinerários da Loucura em Territórios Dogon, Denise Barros nos oferece um instigante relato de seu encontro com uma sociedade da África do Oeste. A autora nos convida a segui-la ao Mali e a acompanhá-la em sua viagem ao país Dogon. Publicado pela Editora Fiocruz, o livro sintetiza o percurso realizado pela autora a partir de suas indagações sobre o entendimento e o manejo da loucura nas sociedades negro-africanas.
Inicialmente, Denise Barros apresenta uma breve descrição da sociedade Dogon, pouco conhecida pelos brasileiros, mas amplamente estudada por etnógrafos franceses desde a década de 30. A autora recorre aos textos clássicos de Marcel Griaule, Germaine Dieterlein e Denise Paulme para introduzir o leitor ao país Dogon. Entretanto, adota, em seu próprio estudo, uma postura crítica quanto aos estudos etnográficos que focalizam o "sujeito indefinido" da cultura e favorecem o surgimento de uma uniformidade cultural ilusória.
A narração começa com o relato do desembarque no Mali e rápida passagem por Bamako, capital do país. Constituída por um número importante de imigrantes originários das zonas rurais e pela coexistência de vários grupos étnicos, a cidade é o ponto de entrada ao Continente Africano. A viagem prossegue para Bandiagara. O percurso é marcado por paisagens, cidades, pessoas que transportam o leitor a um mundo totalmente desconhecido.
Antes de passar ao relato de seu encontro com os Dogon, a autora compartilha com o leitor leituras e reflexões que permitem contextualizar seu trabalho de campo. Denise Barros transita rapidamente por alguns dos inúmeros trabalhos existentes sobre os problemas mentais nas sociedades africanas. Ela se refere às experiências inovadoras do Senegal e da Nigéria; duas tentativas, bem-sucedidas, de implantar já nos anos 60 um modelo comunitário de assistência psiquiátrica enraizado em valores culturais. A autora se refere também às transformações implantadas no Mali a partir dos anos 80 com a chegada do psiquiatra Maliano Baba Koumaré. Cabe ressaltar que no Mali, como na maioria dos países em desenvolvimento, uma importante parte da população não tem acesso a qualquer tipo de serviço psiquiátrico e que essa situação é ainda mais grave em meio rural. Esse acesso é geralmente limitado por razões de ordem geográfica, econômica e cultural. No Mali, como em outros países africanos, a assistência à saúde mental é realizada por dois sistemas terapêuticos paralelos; um tradicional enraizado na cultura e um psiquiátrico de inspiração ocidental; cada um veiculando distintas possibilidades de compreensão e manejo da loucura.
Ainda com objetivo de contextualizar seu trabalho, a autora discute alguns dos conceitos fundamentais para a compreensão do mundo e da doença dogon, entre eles o de pessoa e, mais especificamente, o de força vital, em língua dogon Yama. Referindo-se a distintos trabalhos sobre o yama (ou nyama em língua Bambara) e fundamentando-se nos trabalhos de autores italianos, Denise Barros interroga-se sobre a adequação da tradução corrente desse termo. O leitor não familiarizado com as culturas africanas poderia questionar a pertinência de tal debate, entretanto vários autores reafirmam a centralidade dessa noção para a compreensão das concepções de saúde, doença e pessoa nessa sociedade. O nyama representaria a vida íntima da pessoa e, ao mesmo tempo, teria por objetivo reparar os danos sofridos por ela, tanto durante a vida quanto após a morte.
Ao longo do texto, é possível acompanhar de perto a trajetória de Denise Barros durante dois anos de convívio cotidiano com os Dogon. A questão da loucura vai norteando essa trajetória. Um dos problemas fundamentais para abordar-se os problemas psiquiátricos em outras culturas é identificar os limites do campo a ser estudado de forma a ser suficientemente flexível para apreender construções e parâmetros culturais e, ao mesmo tempo, permitir comparações. Denise Barros opta por penetrar a loucura e a cultura Dogon a partir do interior, buscando apreendê-las em situações específicas e nas vivências de indivíduos particulares. Ela focaliza o wede-wede, termo que recobre o campo da loucura para os Dogon. Em sua busca de entendimento, a autora envereda pelos distintos caminhos da observação, coleta de contos, entrevistas com adivinhos e com especialistas no tratamento da loucura e acompanhamento de pessoas consideradas loucas (com ou sem tratamento).
De noventa contos coletados, foram escolhidos quinze que relatavam situações, de alguma maneira, associadas à loucura para serem discutidos em detalhe. As narrativas foram encaradas como "fragmentos, momentos compactos de vida, acontecimentos intensos, essenciais e fortemente simbólicos". O relato de cada conto e sua discussão vai aproximando o leitor de uma sociedade na qual regras precisas definem a posição social de cada um e os comportamentos esperados de cada um deles. A descrição dos personagens, das relações e dos conflitos entre eles vai nos introduzindo em uma complexa rede de valores e regras sociais. Cada conto re-atualiza uma visão de mundo e de valores culturais centrais, reafirmando limites entre a ordem e a desordem, entre o mundo socializado e a floresta, entre o mundo dos vivos e dos mortos, entre o mundo visível e invisível. Nascimento, casamento, procriação e morte aparecem nos contos como momentos nos quais obediência às regras e realização de ritos são particularmente necessários. A loucura, wede-wede, aparece, quase sempre, como expressão de desordem, ruptura de limites culturalmente estabelecidos, seja em função de transgressão de regras que regulamentam as relações sociais ou negligência de rituais que caucionariam o encontro entre universos habitualmente separados. Ela se expressa também como dor e sofrimento decorrentes de conflitos relacionais.
Denise Barros continua seu caminho abordando, então, a loucura vivenciada. Um primeiro encontro com Sumaila Karambé abre as portas para um universo extremamente complexo. Dor e sofrimento nos remetem, a partir daí, a múltiplas articulações entre indivíduo, família, sociedade e outros elementos da natureza. Através de visitas a doentes, entrevistas com familiares, com terapeutas e com adivinhos, vai surgindo diante do leitor um conjunto de concepções etiológicas e modalidades terapêuticas distintas. Com maior ou menor flexibilidade, os indivíduos e familiares fazem opções, tomam decisões, mas freqüentemente passam de um registro etiológico a outro, substituem elementos e os integram segundo modalidades diferenciadas tentando continuar uma história e dar-lhe um sentido. O recurso ao hospital, quando acontece, constitui apenas uma etapa dentro de uma trajetória mais ampla, na qual intervêm múltiplas consultas e tratamentos com vários tipos de terapeutas tradicionais que tratam as doenças mentais.
Como nos contos, a loucura vivida por indivíduos particulares também evoca transgressões de regras e valores fundamentais da sociedade Dogon. Semelhante aos contos, ela evoca ruptura, desordem e desequilíbrio provocados por violações dos códigos que regulamentam as relações interpessoais, por violações de pactos ancestrais e por violação dos preceitos que regem a conduta com os seres na natureza ou com o mundo invisível. A terapia, em suas diversas modalidades, visa ao acolhimento, à reinserção familiar e social e a uma re-significação da experiência. A autora pontua a dificuldade de precisar os limites do processo terapêutico na sociedade Dogon. Ela se interroga sobre onde começaria a terapia, reafirmando os achados de diversos estudos realizados sobre as interpretações e os tratamentos de doenças na África. De maneira geral, esses estudos ressaltam a importância da dinâmica relacional e coletiva que fundamenta o processo interpretativo e a tomada de decisões. O reconhecimento, interpretação e ação frente aos problemas de saúde, e em particular de saúde mental, são considerados uma questão do grupo engajando seus membros em um longo processo de negociação, que vai influenciar o manejo e o prognóstico. A doença mental é concebida como uma questão social, tanto em sua gênese quanto em seu tratamento. Essa é uma das importantes lições africanas.
Além de conduzir-nos ao universo da loucura em territórios Dogon, a obra é também um convite para restaurar as ligações entre loucura e sociedade e repensar os fundamentos de uma psiquiatria desvinculada da cultura. Sua leitura é obrigatória para todos aqueles que atuam ou se interessam pelo campo da saúde/doença mental.