ARTIGO ARTICLE

 

Acesso à consulta a portadores de doenças sexualmente transmissíveis: experiências de homens em uma unidade de saúde de Fortaleza, Ceará, Brasil

 

Access to medical appointments by men with sexually transmitted diseases at a health unit in Fortaleza, Ceará, Brazil

 

 

Maria Alix Leite AraújoI, II; Glória da Conceição Mesquita LeitãoII

IDepartamento de Enfermagem, Universidade de Fortaleza, Fortaleza, Brasil
IIPós-graduação em Enfermagem, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O acesso aos serviços de saúde é uma das características importantes e um desafio ao Sistema Único de Saúde. Este estudo tem por objetivo compreender as dificuldades dos homens com DST no acesso à consulta. Trata-se de uma pesquisa qualitativa com homens atendidos em uma unidade de referência de DST, na cidade de Fortaleza, Ceará, Brasil, em novembro de 2003. A mesma foi aprovada pelo Comitê de Ética e utilizou a técnica de análise de conteúdo na análise e interpretação dos resultados. As entrevistas centraram-se na categoria acesso. Os achados evidenciaram que os homens com DST enfrentam dificuldade no acesso à consulta, mesmo utilizando diferentes mecanismos para consegui-la. Os serviços são oferecidos em horários incompatíveis com a demanda. Este fato é agravado pela falta de planejamento do número de consultas e de profissionais disponíveis para o atendimento dos casos de DST. Concluímos que precisa haver um investimento maior em nível do SUS na melhoria do acesso à consulta para homens com DST e faz-se necessário que, do ponto de vista institucional, a oferta de serviços leve em consideração a demanda da população.

Acesso aos Serviços de Saúde; Doenças Sexualmente Transmissíveis; Saúde do Homem


ABSTRACT 

Access to healthcare services is one of the important aspects of the Unified National Health System in Brazil, and the supply and management of such services is the responsibility of municipalities. This study focuses on difficulties faced by men with sexually transmitted diseases (STDs) in accessing appointments for treatment. This was a qualitative study of men treated at an STD clinic in Fortaleza, Ceará State, Brazil, in November 2003, using content analysis technique and interpretation of interviews, focusing on access as the category. Men with STDs encountered extensive difficulty in accessing medical appointments, even when they used different strategies for this purpose. Scheduling of services is incompatible with patients' available time. At the primary care level, the supply of appointments for STDs scarcely exists. More investment is needed in the Unified National Health System in order to improve access to appointments for men with STDs, and the supply of services should take the population's demand into account.

Health Services Accessibility; Sexually Transmitted Diseases; Men's Health


 

 

Introdução

O Sistema Único de Saúde (SUS) é uma proposta de reorganização dos serviços de saúde, que se encontra ainda em fase de estruturação, apesar dos avanços conquistados. Esta construção sofreu influência de momentos históricos, políticos e econômicos do país. Os avanços e recuos foram frutos de grandes lutas político-ideológicas em que se envolveram diferentes atores sociais, que resultou, portanto, em amplo debate democrático.

Em 1986, foi implementado o SUS por ocasião da 8ª Conferência Nacional de Saúde. A partir de então, várias normas foram elaboradas no sentido de organizar o seu funcionamento. Destacam-se entre elas as Normas Operacionais Básicas (NOB) de 1993 e 1996.

A descentralização da atenção passou a ser um elemento decisivo para que as ações de saúde chegassem no nível dos municípios, proposta que se efetivou por meio do Piso de Atenção Básico (PAB), instituído pela Portaria nº 1.882, de 18 de dezembro de 1997, que teve como principal objetivo promover a transferência dos recursos federais diretamente aos municípios.

Assim os serviços deveriam ser organizados de forma regionalizada e em diferentes níveis de complexidade, de forma a garantir o acesso de todas as pessoas. A regionalização deve levar em consideração características geográficas, fluxo de demanda, perfil epidemiológico, oferta de serviços, entre outras, com o objetivo maior de tornar os serviços mais próximos da população e ampliar a sua cobertura 1.

Todo esse processo encontra-se ainda em fase de construção e estruturação, passando o SUS por uma série de desafios e dilemas que precisam ser superados para que a proposta funcione efetivamente, conforme os princípios e diretrizes estabelecidos 2,3,4,5,6.

Entre tais desafios, encontram-se as desigualdades de acesso como um dos principais problemas enfrentados pelo poder público. Por exemplo, no Brasil existem diferenças marcantes nas taxas de utilização dos serviços de saúde, gerando graves desigualdades de acesso e refletindo as desigualdades sociais 6,7.

O acesso aos serviços de saúde não acontece de forma homogênea nas diversas regiões do país e nos diversos segmentos populacionais. A indisponibilidade de fichas para consultas e do número de profissionais médicos para o atendimento foram os principais motivos relacionados com a dificuldade de acesso e utilização dos serviços de saúde no Brasil 6.

Estudo realizado no Rio de Janeiro encontrou que as mulheres utilizam mais regularmente os serviços de saúde que os homens, embora esta procura seja maior no grupo de crianças e idosos. Esse estudo refere, também, diferenças de gênero relacionadas ao motivo da procura pelos serviços, isto é, as mulheres buscam mais os serviços para exames de rotina e prevenção e os homens procuram mais por motivo de doença 8.

Quando se trata do atendimento de doenças sexualmente transmissíveis (DST), o desafio é ainda maior, aumentando o diferencial relativo ao gênero. Os homens com DST, culturalmente não costumam ir aos serviços de saúde, que são mais freqüentados pelas mulheres. A característica do serviço provoca uma diferenciação na demanda. Nas cidades onde a unidade é específica para o atendimento das DST a demanda maior é de homens 9. Quando o atendimento às DST constitui um dos programas das unidades convencionais de saúde, a demanda maior é das mulheres 10.

Estudos têm mostrado que um porcentual considerável de homens com DST, quando necessitam de tratamento, procuram as farmácias ou se automedicam antes de procurarem a unidade de saúde 9,11,12. Isto pode ser reflexo das barreiras sociais, culturais e econômicas enfrentadas por estes pacientes 13.

O Ministério da Saúde reconhece que os serviços de saúde, de modo geral, enfrentam dificuldades no atendimento à demanda de DST. A falta de privacidade, de medicamentos e de preparo dos profissionais traz como conseqüência a baixa resolutividade e leva os pacientes a buscarem locais onde não tenham que se expor, nem esperar em longas filas. Portanto, esses problemas precisam ser superados para garantir a interrupção imediata da cadeia de transmissão, motivo que justifica o tratamento imediato do portador de DST 14.

Outro fator importante no atendimento do cliente nas unidades de saúde, além do acesso, é o acolhimento. Ambos, acesso e acolhimento, são essenciais e podem promover uma melhoria no estado de saúde do indivíduo e da coletividade 15.

É de muita importância realizar pesquisas para conhecer as dificuldades enfrentadas pelos homens com DST ao acesso à consulta. Só assim se poderá oferecer subsídios à organização dos serviços, sensibilizar os profissionais, bem como aos gestores, para o planejamento de ações que levem em consideração tais aspectos. O planejamento e o desenvolvimento das ações de DST devem indicar alternativas que facilitem a ida do homem à unidade, e também, que atraiam esta população para o programa por meio de campanhas educativas.

Uma das pesquisadoras que atua na rede de serviços do SUS, particularmente numa unidade de referência para DST, ao observar as dificuldades dos pacientes homens ante a marcação de consulta, se dispôs a realizar esta pesquisa, tendo por objetivo conhecer, sob o ponto de vista desses homens, como ocorre seu acesso à unidade de saúde.

 

Metodologia

Pesquisa qualitativa, do tipo estudo de caso, que teve como técnica de coleta de dados, entrevistas individuais com homens com diagnóstico de DST. O conjunto de pacientes foi constituído por dez homens, estando a maioria na faixa etária de 25 a 39 anos, portadores de DST (nove com HPV e um com herpes genital), atendidos em uma unidade de referência do Município de Fortaleza, Ceará, Brasil. Aderiram espontaneamente ao estudo e as entrevistas foram gravadas com suas autorizações. A preferência por entrevistar somente homens portadores de DST, decorreu da curiosidade das pesquisadoras em conhecer as experiências daqueles que vivenciaram o problema, por ocasião da procura por atendimento. O tamanho do grupo foi definido com base na saturação dos dados e na repetição das respostas 16.

A pesquisa foi realizada no mês de novembro de 2003, no turno matutino, no tempo reservado às consultas do enfermeiro, único profissional que atende homens com DST nesse turno. A unidade, por ser referência para DST, apresenta uma demanda considerável de homens, o que facilitou à entrevistadora o acesso aos pacientes. Cada entrevista foi realizada em um único momento e após as consultas, para que os pacientes não ficassem preocupados em comprometer o seu atendimento. A entrevista centrou-se nas questões sobre o horário de chegada do cliente à unidade, o acesso à ficha para consulta, o tempo decorrido entre a marcação e a consulta propriamente dita.

A unidade faz parte da Secretaria Executiva Regional III (SER III), da Secretaria de Saúde do Município de Fortaleza. Funciona como referência para adultos (homens e mulheres) e crianças, nas áreas de clínica médica, dermatologia, endocrinologia, DST, odontologia, imunização, assistência à saúde da mulher.

O projeto recebeu aprovação do Comitê de Ética da Universidade de Fortaleza, de acordo com o que é estabelecido pela Resolução nº 196 do Conselho Nacional de Ética e Pesquisa (CONEP), de 10 de outubro de 1996. Todos os participantes que aceitaram contribuir com o estudo assinaram o Termo de Autorização, e foi garantido sigilo das informações.

Para análise e interpretação do material coletado utilizou-se a técnica de análise de conteúdo (análise temática) 17. As entrevistas centraram-se na categoria de acesso funcional, que representa os tipos, horário de funcionamento e qualidade dos serviços oferecidos 18.

 

Resultados e discussão

O conjunto de pacientes foi constituído por dez homens, com idade entre 21 e 60 anos. Entre estes, oito tinham entre 25 e 39 anos. Do total, nove estavam em tratamento para HPV e um em fase aguda de herpes genital. Por ocasião das entrevistas, seis estavam desempregados e quatro trabalhavam no mercado informal ou em sistema de plantão, o que permite maior disponibilidade de tempo à burocracia da unidade; sete eram casados ou mantinham relação estável e oito não tinham concluído o ensino fundamental.

A concentração maior de casos em homens na faixa etária sexualmente ativa encontrada já era esperada, por essa razão há necessidade de desenvolver-se ações preventivas específicas para esta população, especialmente pelo fato de terem parceiras que podem ter sua saúde comprometida em decorrência de DST não tratadas ou mal curadas.

 

A marcação da consulta

Seis pessoas informaram que para o primeiro atendimento precisaram chegar de madrugada, enfrentando risco de vida, considerando os perigos de assalto comuns nas grandes cidades. Além do mais, todo este esforço não lhe dá a garantia de marcação da consulta.

Outros quatro declararam não precisar chegar de madrugada, pois foram referenciados por outra unidade ou tinham relacionamentos sociais e informais com algum funcionário da unidade. Disseram que esses contatos eram necessários para garantir a concretização da consulta.

"Foi muito difícil conseguir a consulta. Minha noiva marcou e eu esperei um mês para ser atendido" (J. — 21 anos).

"Consegui uma consulta porque tenho uma tia que conhece uma funcionária desta unidade. Esta funcionária me mandou vir aqui e conseguiu uma ficha para o mesmo dia" (R. — 26 anos).

"Cheguei pelos menos três vezes às quatro horas da manhã e voltei porque ainda não estava com o cartão saúde" (J. — 39 anos).

"Quando chego às quatro horas da manhã, já tem mais ou menos 20 a 30 pessoas na fila. O posto abre às sete horas e a fila já está dobrando a esquina. Quando o portão abre, cada um corre para o seu guichê e forma-se outra fila. Depois que o portão abre, demora em média uma hora para começar a atender. Com a chegada do cartão, mal começam a distribuir as fichas e já anunciam que acabou" (J. — 39 anos).

Com exceção dos pacientes que tiveram a consulta agilizada por algumas das situações favorecedoras citadas anteriormente, nenhum outro conseguiu marcar a consulta para o mesmo dia. Outros usuários procuraram primeiramente a rede básica e não receberam atendimento em DST. Desta forma, a unidade de referência fica sobrecarregada, complicando mais ainda a situação do paciente que para ser atendido nesta precisa retornar à unidade básica para receber um encaminhamento à unidade de referência. O usuário perde tempo para ser atendido o que é desestimulante e mantem a cadeia de transmissão. Apesar de toda essa dificuldade, nenhum paciente referiu ter pago pela consulta, embora tenha feito referência a uma pessoa que cobra para garantir uma melhor posição na fila.

"Fui quatro vezes ao posto de saúde próximo da minha casa para conseguir um encaminhamento para esta unidade. Com o encaminhamento foi fácil. Marquei a consulta na sexta e na terça começou o atendimento" (M. — 37 anos).

"Já me ofereceram o lugar na fila pelo preço de cinco reais, mas eu não aceitei porque já estava próximo do guichê" (P. — 25 anos).

Na visão dos usuários, vir ao centro de referência com um encaminhamento facilita o acesso. Mas, observamos em algumas falas (3) que a pessoa tem ainda de esperar alguns dias pelo atendimento e, quando chega o dia marcado necessita enfrentar longas filas na unidade para confirmar a consulta. O que os diferencia dos pacientes que não têm encaminhamento é que não precisam mais madrugar na fila, do lado de fora da unidade.

"Quando cheguei aqui sofri, porque pensei que viria direto para o médico. Tive que ir para a fila. Cheguei às 7 horas e só fui atendido às 11" (L. — 60 anos).

"Moro próximo, venho de bicicleta. Chego na unidade às 6 horas e vou para a fila para confirmar a consulta" (R. — 26 anos).

O encaminhamento de outra unidade de saúde faz parte do processo de regionalização, e parece já estar funcionando como um elemento facilitador da entrada do homem no serviço de referência. Entretanto, ainda não garante um atendimento mais agilizado.

O tempo de espera pode depender do tipo de DST. Como nove dos dez pacientes eram portadores de HPV e esta DST se diferencia pelo fato de ser uma infecção que pode se manifestar sob a forma de lesões exofíticas ou, como ocorre na grande maioria das vezes, assumir formas subclínicas 14, indolores e não causam grandes incômodos aos pacientes, estes podem esperar alguns dias ou meses pelo atendimento.

Pergunta-se: para onde estão indo os homens com DST na fase aguda da doença? Nesses casos, os sintomas normalmente incomodam bastante, e eles não conseguem esperar, o que fortalece os achados de Parker et al. 9, Benjarattanaporn et al. 11 e Araújo et al. 12, de que possivelmente, eles estão procurando as farmácias privadas, pela facilidade e rapidez no atendimento.

Mesmo no caso do HPV, a não realização de um pronto atendimento é considerado um fator preocupante por causa da não realização do aconselhamento, pela manutenção da cadeia de transmissão, pela possibilidade de aquisição de outras DST, inclusive do HIV, e pelo risco do paciente não retornar. O fato do paciente não retornar é um agravante, visto que a doença pode progredir para neoplasias intraepiteliais, além de ser também um problema para a saúde pública.

Outro aspecto importante é que o HPV requer um tratamento demorado. A grande maioria dos entrevistados estava há meses ou anos em tratamento, ocupando por muito tempo uma vaga no serviço de saúde. Essa demora no tempo do tratamento é outro fator que dificulta o acesso de novos pacientes. Considerando que na unidade somente um profissional atende homens com tais patologias no turno da manhã, com certeza muitos outros pacientes de primeira vez terão dificuldade de acesso.

Muitos entrevistados referiram que a maior dificuldade é a obtenção da ficha para a consulta, que representa a entrada no sistema. Segundo eles, depois que a obtem, fica tudo mais fácil.

"Depois de ser atendido a primeira vez, fica mais fácil" (J. — 21 anos).

Este fato remete a uma reflexão acerca da própria oferta do serviço, que é limitada (somente um profissional atende e só duas vezes por semana). Ficamos a imaginar quantos pacientes não conseguem marcar a consulta, ficando à margem do sistema e disseminando a doença.

Outro momento importante que merece uma reflexão é que a marcação da consulta para pessoas com DST é realizada no setor SAME (Serviço de Arquivo Médico Estatístico) e as pessoas têm de se misturar com outros usuários nas filas, ficando com vergonha de informar, no guichê, através de uma fenda no vidro, o seu problema, para que seja selecionada a consulta com o profissional indicado. Essa situação pode estar gerando um constrangimento, especialmente quando é a primeira vez que o paciente se dirige à unidade.

Quando já existe um vínculo com o funcionário do SAME ou, quando este já sabe para qual "doutor" está sendo pedida a consulta, parece que a situação fica menos constrangedora. Os homens se utilizam de certas estratégias que diminuem a necessidade de exposição. Observamos isso nos depoimentos abaixo, quando lhes perguntamos como se sentiam no momento de marcar a consulta:

"No começo fiquei com vergonha. Agora que a atendente já me conhece eu só entrego o papel e ela marca. A primeira vez eu pedi à assistente social para me dar um papelzinho para eu não falar" (F. — 26 anos).

"Procurei primeiro o orientador em saúde, que informou que a consulta deveria ser com o 'Dr. Fulano'. Fica melhor assim, pois você não precisa dizer na fila que está com uma DST" (J. — 26 anos).

"Procurei diretamente o setor de marcação de consultas, entreguei o papelzinho e a mulher confirmou no computador" (E. — 32 anos).

"Quando chego no guichê, mostro a carteira e digo que a consulta é para o Dr. Fulano" (R. — 26 anos).

"Quando chega na janelinha é só mostrar o papelzinho. Não precisa dizer nada, só mostrar o papel" (L. — 60 anos).

Esse aspecto revela que a unidade precisa estar atenta e adotar estratégias que evitem a exposição dos pacientes a situações vexatórias, indicando, por meio de cartazes, em locais visíveis na unidade, as patologias e os profissionais que as atendem, bem como os dias e horários do atendimento. Isso diminuiria a exposição do paciente, bastando que informe o nome do profissional por quem deseja ser atendido.

 

Horários e dias de atendimento de DST na unidade

Outro fator limitante do acesso é o horário de atendimento de DST na unidade, que funciona somente dois dias na semana e no turno da manhã. Este com certeza é um forte fator impeditivo, que dificulta sobremaneira a vinda dos homens ao serviço, pois estes necessitam trabalhar, não podendo normalmente comparecer nos horários convencionais. Por este motivo, na análise do perfil dos entrevistados, vimos que muitos dos usuários dos serviços eram desempregados, trabalhavam no mercado informal ou em sistema de plantão. Desta forma, puderam agendar as consultas. As pessoas que estão trabalhando no mercado formal, com horários rígidos de expediente, não conseguem se ausentar com a freqüência exigida para o tratamento, pois com certeza iriam comprometer a sua estabilidade no emprego, especialmente se trabalharem em empresas privadas.

"Se eu tivesse trabalhando não estaria me tratando. Ou trabalha ou faz o tratamento. Um amigo meu recebeu aviso (aviso prévio da firma onde trabalhava) porque estava em tratamento. A unidade funciona em horário de expediente! Foi fácil para mim porque eu estou desempregado. Eu consegui até para minha namorada porque eu estou sem fazer nada" (F. — 26 anos).

"Acho ruim porque preciso trabalhar e os atendimentos são no horário do expediente" (J. — 21 anos).

"Coloco as consultas sempre nos dias em que não estou de plantão. Agora que o atendimento está acontecendo somente uma vez na semana ficou melhor, pois antes eram duas vezes na semana" (F. — 40 anos).

 

A procura por atendimento na unidade básica próxima de casa

O SUS propõe a hierarquização dos serviços, determinando que funcionem como uma rede integrada, tendo a rede básica de saúde como porta de entrada no sistema, de modo que os pacientes só fossem encaminhados à unidade de referência caso o problema não pudesse ser resolvido naquele nível de complexidade.

No caso específico das pessoas com DST, o atendimento na rede básica é preconizado por meio da abordagem sindrômica, que tem por finalidade prover, em uma única consulta, diagnóstico, tratamento e aconselhamento adequados. Desse modo, seriam evitadas as complicações advindas das DST não tratadas e promover-se-ia a cessação imediata dos sintomas 5. Os profissionais da rede básica, entretanto, necessitam urgentemente de treinamento específico e suas unidades deveriam garantir um estoque de medicamentos e preservativos.

Levantamos nas entrevistas se os pacientes haviam procurado alguma unidade de saúde próxima de sua casa, e as razões pelas quais procuraram essa unidade.

Como se pôde observar nas falas, alguns pacientes (4) não procuraram as unidades básicas e os que fizeram foram encaminhados a outras unidades, tendo as primeiras se limitado a fazer simplesmente o encaminhamento, não prestando nenhum tipo de atendimento.

Outro dado interessante a registrar é a falta de divulgação dos serviços disponíveis na própria unidade de referência. O usuário, mesmo morando na área de abrangência, desconhece que a unidade presta atendimento aos portadores de DST.

"Não tem posto de saúde para isso próximo da minha casa. Fui encaminhado para esta unidade por um médico da BEMFAM, foi lá que procurei primeiro antes de vir para cá" (J. — 21 anos).

"O próprio posto próximo de casa encaminhou para cá. Lá não atende essas coisas" (M. — 37 anos).

"Não fui no posto próximo de casa porque não tem atendimento de doenças venéreas. Se tivesse atendimento dessas coisas, doenças venéreas, eu iria. Lá só tem atendimento para mulher, prevenção" (F. — 26 anos).

"Esse é o posto mais próximo da minha casa, mas não sabia que atendia essas coisas" (R. — 26 anos).

"Este é o posto mais próximo da minha casa. Não sabia que aqui na unidade atendia DST. Ia sempre a outra unidade com a minha mulher" (F. — 40 anos).

Faz-se necessário fortalecer os serviços de nível de atenção primária, ou seja, organizar e implementar políticas e implantar serviços que respondam às demandas advindas da sociedade. É preciso que se façam pesquisas e que os serviços utilizem os resultados destas quando da elaboração de sua programação. Caso contrário, não se resolverão os problemas de sobrecarga dos serviços em algumas situações específicas, ficando a unidade básica apenas com o simples encaminhamento do cliente. Neste caso, seria totalmente desnecessária a passagem do usuário por este nível de atenção. Na opinião de Bodstein 19, devem existir programas e políticas especificamente preocupadas com o primeiro nível de acesso e de contato da população com o sistema de saúde. 

 

Conclusões

Pelos depoimentos colhidos, percebemos que os homens com DST tiveram muita dificuldade para conseguir marcar uma consulta na unidade, principalmente quanto à entrada propriamente dita, no serviço. Essa dificuldade não é típica dos homens com DST, mas nestes casos, é agravada pela quantidade insuficiente de profissionais que se dispõem a atender tais patologias. Apesar de outros estudos não evidenciarem questões de gênero no atendimento dos portadores de DST, observamos na prática que os serviços prevêem o atendimento de mulheres designando médicas ginecologistas ou enfermeiras para tal função. Estas, entretanto, a maior parte das vezes se recusam a consultar os homens.

Além do mais e, apesar de todos os esforços desenvolvidos pelo SUS visando a ampliação da cobertura assistencial, no caso específico das DST os usuários não encontram à sua disposição este tipo de atendimento, ou têm muita dificuldade de acesso à consulta e tratamento.

Esperamos que a questão do acesso aos serviços de saúde para homens com DST passe por um melhoramento. Atualmente o Município de Fortaleza experimenta um processo de regionalização e reorganização dos serviços, de forma que estes passem a atender a uma região adscrita, o que poderá a longo prazo trazer resultados positivos.

Todavia, a principal dificuldade na organização dos serviços é a falta de estrutura da rede básica para responder a esta demanda. Neste nível os usuários deveriam receber o primeiro atendimento, só necessitando ser referenciado os casos cujo problema não fosse resolvido. É necessário que os serviços de saúde da rede básica dêem uma resposta satisfatória aos casos que têm baixo grau de complexidade.

Porém, estudos mais detalhados precisam ser realizados para identificar que tipo de atendimento estes pacientes recebem na rede básica e quantos conseguiram atendimento na rede de referência.

No que diz respeito à oferta do serviço, este também deixa muito a desejar, levando-nos a concluir que o programa de controle das DST enfrenta os mesmos problemas dos demais, ou seja, falta de investimento por parte dos governantes e de decisão política. Além do mais é necessário refletir sobre a necessidade de instituir-se horários alternativos para o atendimento da clientela, e dessa maneira ampliar-se a cobertura de atendimento aos homens com DST e inverter a lógica da procura pela farmácia.

Outra dificuldade na organização dos serviços é a falta de estrutura da rede básica para responder a esta demanda. Neste nível os pacientes deveriam receber um primeiro atendimento, só referenciando os casos cujo problema não fosse resolvido. Parece que a unidade básica funciona somente como uma mera formalidade dentro do sistema. Faz-se, entretanto, necessário que os serviços de saúde da rede básica dêem uma resposta satisfatória aos casos que têm um baixo grau de complexidade e que podem ser solucionados neste nível de atenção. Estas precisam ser estruturadas para dar uma resposta satisfatória em casos de DST. Para isso, além de medicamentos e preservativos, os profissionais de todos os setores devem estar devidamente capacitados.

Por outro lado, faz-se necessário, do ponto de vista institucional, que a oferta de serviços de saúde leve em consideração as demandas da população. Outro aspecto importante é a divulgação dos serviços oferecidos, para que a comunidade de um modo geral passe a utilizá-los adequadamente.

O controle das DST só vai ser possível se os gestores levarem em consideração essa problemática do acesso dos pacientes, especialmente dos homens, desenvolvendo todo um mecanismo de agilização na unidade, que envolva todos os funcionários. O treinamento e sensibilização dos profissionais é imprescindível, especialmente no que diz respeito às questões éticas e de sigilo das informações.

Por fim, gostaríamos de salientar a importância de estudos que levem em consideração a visão dos usuários acerca da prestação dos serviços. Esses estudos poderão contribuir para a programação de serviços que realmente dêem uma resposta efetiva à demanda na comunidade. Para tanto, é necessário que os profissionais das unidades e os gestores se apropriem e levem em consideração os resultados.

 

Colaboradores

Todos os autores participaram da concepção do artigo, análise e interpretação dos dados e também leram e aprovaram a redação final.

 

Agradecimentos

Agradecemos a: Eugênio Franco, enfermeiro; Fernando Guanabara, médico, diretor geral da unidade; Lucifram Marques Siqueira, enfermeira, chefe do Serviço de Enfermagem; Rosilene Maria Siqueira, auxiliar de enfermagem; e a todos os homens com DST que contribuíram com o estudo.

 

Referências

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Endereço para correspondência
M. A. L. Araújo
Departamento de Enfermagem
Universidade de Fortaleza
Rua São Gabriel 300, apto. 1101
Fortaleza, CE
60135-450, Brasil
alix.araujo@secrel.com.br

Recebido em 05/Fev/2004
Versão final reapresentada em 15/Set/2004
Aprovado em 20/Set/2004

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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