REVISÃO REVIEW
Estratificação sócio-econômica em estudos epidemiológicos de cárie dentária e doenças periodontais: características da produção na década de 90
Social stratification in epidemiological studies of dental caries and periodontal diseases: a profile of the scientific literature in the 1990s
Antonio Fernando BoingI; Marco Aurélio PeresI; Douglas Francisco KovaleskiI; Sabrina Elisa ZangeI; José Leopoldo Ferreira AntunesII
ICentro de Ciências da Saúde, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil
IIFaculdade de Odontologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil
RESUMO
Vários estudos epidemiológicos avaliaram a associação entre saúde bucal e desenvolvimento social. Entretanto, o uso de diferentes variáveis mensurando condição sócio-econômica dificulta a análise comparativa de seus achados. O presente estudo descreveu as formas mais usadas por estudos recentes de saúde bucal para a classificação de segmentos de população segundo categorias de estratificação social. Foram selecionados 86 artigos publicados em periódicos indexados no MEDLINE, entre 1990 e 2001. Embora esses estudos tenham empregado diferentes estratégias para estratificar a população, ocupação, escolaridade e renda, foram as variáveis mais freqüentemente utilizadas. Diferenciais étnicos, características dos domicílios e das escolas e acesso a bens materiais também foram usadas com freqüência. Foi também observada grande participação de estudos brasileiros sobre diferenciais sócio-econômicos na distribuição de cáries e doença periodontal. O conhecimento das estratégias para a estratificação social pode aprimorar o entendimento dos fatores associados às doenças bucais, incentivando novos estudos e permitindo a comparação de seus resultados.
Fatores Sócio-econômicos; Indicadores de Saúde; Cárie Dentária; Periodontite
ABSTRACT
Several epidemiological studies have analyzed the association between oral health and social development. However, the use of different variables assessing socioeconomic status impairs the comparative analysis of their findings. The present study describes how recent dental studies have classified population segments according to categories of social stratification. We selected 86 papers on social determinants of dental caries or periodontal conditions, and published in MEDLINE-indexed journals from 1990 to 2001. The studies used different strategies to stratify populations, but occupation, schooling, and income were the most frequently assessed variables. Ethnic differentials, characteristics of households and schools, and access to material resources were also frequently appraised. We also observed a large portion of Brazilian studies focusing on socioeconomic differentials in the distribution of caries and periodontal disease. Knowledge of strategies for social stratification can improve the understanding of factors associated with dental diseases, fostering further studies and allowing the comparison of their results.
Socioeconomic Factors; Health Status Indicators; Dental Caries; Periodontistis
Introdução
A desigualdade sócio-econômica e seu impacto nas condições de saúde das pessoas e grupos humanos é importante tema de pesquisa em saúde coletiva. A bem estabelecida associação entre a posição relativa que cada grupo social ocupa na sociedade e diferenciais de risco para muitas doenças, bem como de acesso a serviços de saúde, coloca em foco o conceito de estratificação social como determinante chave das condições de saúde das populações 1. Entretanto, a ausência de conceitos padronizados para a definição dos estratos sociais e a dificuldade de operacionalizar essa classificação são fatores limitantes para a pesquisa epidemiológica 2.
No Brasil, a epidemiologia apresentou grande crescimento de produção científica na última década (Diretório dos Grupos de Pesquisa. Censo 2002. http://www.cnpq.gov.br, acessado em Mai/2003), e o tema das desigualdades em saúde destacou-se como um dos mais estudados. No campo da Odontologia em Saúde Coletiva, ocorre tendência semelhante. Antunes et al. 3 pesquisaram a base de dados da National Library of Medicine (MEDLINE) entre 1997 e 1998 e observaram que estudos de cunho epidemiológico e sociológico foram os mais freqüentes da área. Apesar desse quadro, Locker 4 considera que o estudo das condições sociais como produtora de doenças bucais ainda se encontra em fase inicial.
O estudo das desigualdades sócio-econômicas em saúde bucal implica a investigação da forma pela qual os pesquisadores operacionalizaram a estratificação social, visando a quantificar e classificar aspectos de interesse para explorar os diferenciais de distribuição das doenças. Nesse sentido, configurar uma tipologia das formas usuais de caracterização sócio-econômica pode ser útil para implementar a produção epidemiológica da área.
O objetivo deste estudo foi descrever características da produção científica de estudos epidemiológicos que abordaram duas das mais prevalentes doenças bucais cárie dentária e doenças periodontais na década de 90, quanto à forma de estratificação sócio-econômica empregada.
Métodos
Foi realizada uma pesquisa bibliográfica na base de dados MEDLINE dos artigos publicados de janeiro de 1990 a dezembro de 2001. Foram considerados como critério de inclusão artigos que apresentassem em seu título ou resumo uma ou mais das seguintes palavras-chave: "caries and social*", "caries and socioeconomic", "periodontal and social*" ou "periodontal and socioeconomic".
Foram inicialmente identificados 338 artigos, cujos resumos foram analisados independentemente por três examinadores (A. F. B., S. E. Z. e D. F. K.). Os dissensos foram arbitrados por um quarto examinador (M. A. P.). Selecionaram-se para a leitura completa e análise apenas os estudos epidemiológicos de base populacional que apresentassem seu resumo no MEDLINE e tivessem como ao menos um dos objetivos testar a associação dos índices de cárie dentária e/ou doença periodontal com condições sócio-econômicas. Excluíram-se os artigos cujo idioma não fosse o alemão, o francês, o inglês, o português e o espanhol; critério que eliminou quatro artigos.
Para a consolidação das informações dos 86 artigos selecionados para o estudo, foi elaborado um instrumento contendo numeração para a identificação do artigo, os índices e indicadores utilizados para a estratificação sócio-econômica da população, o nome do periódico onde o estudo foi publicado, o ano da publicação, o país cuja população foi pesquisada, as características etárias e de gênero da população pesquisada e a doença estudada.
Foram consideradas índices e indicadores sócio-econômicos as medidas assim identificadas pelos autores em seus artigos. Foram incluídas medidas tomadas no nível dos indivíduos e no nível de dados agregados; variáveis aferidas em números absolutos e em números relativos. Adotamos proposição de Pereira 5 como critério para distinguir estas medidas. Segundo ele, os indicadores têm um caráter unidimensional e refletem uma dimensão específica ou uma característica particular; enquanto o caráter multidimensional dos índices reflete sua capacidade de incorporar em uma única medida diferentes aspectos ou indicadores que o compõem.
Os dados foram digitados sob a forma de banco de dados, para o cálculo das freqüências de distribuição das variáveis de interesse. Para essas finalidades, foi utilizado o programa Epi Info 6.04.
Resultados
Dos 86 trabalhos coligidos, 66 referiam-se à cárie dentária, 13 à doença periodontal e sete abordavam ambas as doenças. Em sua ampla maioria, os estudos consideraram ambos os sexos; apenas três trabalhos focalizaram exclusivamente o sexo masculino. Quanto aos grupos etários estudados, 21 pesquisas concentraram-se sobre escolares (6 a 12 anos), 20 sobre pré-escolares (2 a 5 anos), 16 sobre adolescentes (13 a 18 anos) e 14 sobre adultos (19 a 44 anos).
Quanto à região em que a pesquisa foi realizada, houve concentração de países europeus, sobretudo Inglaterra e Suécia (Tabela 1). O Brasil destaca-se aparecendo logo em seguida.
A Tabela 2 apresenta os periódicos que abordaram o tema pesquisado. Foram identificados 27 periódicos, e os cinco com freqüência mais elevada (Community Dental Health, Community Dentistry and Oral Epidemiology, International Dental Journal, British Dental Journal e Caries Research) concentraram cerca de 50,0% da produção pesquisada.
Identificaram-se quarenta diferentes indicadores de condição sócio-econômica nos vários trabalhos (Tabela 3). Apesar da expressiva heterogeneidade, os três mais recorrentes ocupação, escolaridade e renda foram utilizados em mais de 40,0% dos estudos. Além disso, observa-se que cerca de um terço dos indicadores foi empregado em um único estudo.
Os índices empregados (Tabela 4) basicamente são os utilizados em países europeus e compostos por indicadores disponíveis nas bases locais de dados de população, sendo de difícil aplicação em outras localidades. Dentre os reprodutíveis no Brasil estão o critério ABA/ ABIPEME (Associação Brasileira de Anunciantes/Associação Brasileira dos Institutos de Pesquisas de Mercado) e o de classe social proposto por Bronfman et al. 2.
Discussão
O presente estudo apreendeu diferentes estratégias para operacionalizar a aferição de condição sócio-econômica nos estudos de epidemiologia da cárie dentária e doença periodontal. Detectou-se o uso de uma gama diversificada de medidas simples, compostas por um único indicador, ou índices complexos que aglutinam diversas variáveis em uma única medida sintética. Por um lado, esta diversidade deriva da pluralidade dos modelos explicativos em debate no campo da saúde coletiva; pois, dependendo das perspectivas analíticas adotadas, diferentes dimensões podem ser priorizadas para mensuração. Por outro lado, no entanto, é possível que, ao menos em parte, os índices e indicadores de condição sócio-econômica selecionados para esses estudos reflitam diferenciais de disponibilidade de acesso a dados, e também a ausência de consenso conceitual sobre quais são as dimensões de fato mais relevantes para a epidemiologia da saúde bucal.
Ocupação, renda e nível de instrução são medidas de fácil obtenção e análise 6; além de terem sido os indicadores usados com maior regularidade, são características integradas aos principais índices compostos. Uma duradoura tradição dos registros de ocupação em países como Inglaterra e Suécia contribui para seu amplo uso em estudos epidemiológicos, e favorece comparações ao longo do tempo. Também o processo educacional é suficientemente regulamentado pela sociedade e sua incorporação em importantes bases de dados macropopulacionais torna seu uso facilmente acessível. Já a renda é tida como medida sócio-econômica diretamente relacionada às condições materiais de vida e elemento diferenciador do acesso à saúde em estudos de desigualdade social. Ela influencia o padrão alimentar, de vestimenta, de qualidade e localização de moradia, de acesso a conhecimentos e a cuidados médicos; enfim, inúmeros fatores que atuam de maneira direta na exposição a riscos e a fatores de proteção para várias doenças.
Grzywacz 7 apontou a escolaridade como o componente mais importante da condição sócio-econômica para os estudos de determinação dos comportamentos relacionados à saúde. Ainda que relações causais entre escolaridade e diferentes desfechos em saúde não sejam imediatas, dados empíricos deixam pouca dúvida sobre sua existência e importância para a compreensão da desigualdade nos níveis de saúde da população. Níveis elevados de escolaridade são em geral associados a melhores condições de habitação e trabalho, de renda e de posição sócio-econômica 1,7,8.
A informação sobre renda não é tão facilmente passível de identificação quanto a escolaridade, sendo difícil um único entrevistado prestar informações precisas sobre a renda dos familiares e das pessoas próximas. Nem toda a disponibilidade de recursos financeiros é auferida sob a forma de renda; e os montantes declarados variam ao longo do tempo com maior inconstância que o nível de instrução. Nesse sentido, uma utilização mais efetiva deste indicador em estudos envolvendo condições crônicas de saúde pode demandar estratégias diferenciadas para a coleta de dados.
Estudos em saúde internacional, valendo-se de comparações entre diferentes países, devem levar em consideração que o poder aquisitivo de uma mesma unidade de renda difere nas realidades locais de modo incongruente com as taxas de conversão empregadas pelo mercado financeiro, cuja aplicação também é usual na pesquisa em saúde. O mesmo cuidado é necessário para o estudo de populações rurais quando são comparadas com as respectivas populações urbanas, pois o custo de vida costuma ser mais baixo para as populações rurais, e sabe-se que parte da produção agropecuária pode ser direcionada ao escambo e ao autoconsumo.
Todos os indicadores apresentam limitações, fato que tem levado pesquisadores a proporem o uso de pelo menos dois deles de modo a complementar suas análises 9. Também se tem empregado a associação de variáveis sócio-econômicas e de ambiente em medidas sintéticas que refletem características de grupos populacionais vivendo em determinadas áreas geográficas, para identificar a desigualdade na manifestação de fenômenos de interesse para a saúde. Desse modo, projeta-se a compreensão do papel operado pelo contexto na exposição a fatores de risco ou proteção para a saúde. As pesquisas sobre desigualdades em saúde têm feito uso crescente de variáveis dessa natureza, as quais vêm sendo elaboradas por diferentes atores e com propósitos distintos. Porém, comparações internacionais são restritas, e índices que têm uso bastante intenso em determinados contextos nem sempre são passíveis de transposição para outras comunidades, em função das diferentes características das bases de dados, que podem não dispor de informações específicas para a unidade espacial que se pretende estudar e planejar. Esse é o caso dos indicadores identificados na revisão baseados nos censos britânicos 10,11,12 para cujo cálculo não se dispõe de informações macropopulacionais no contexto brasileiro.
Sobre esse tipo de estudo, costuma-se lembrar que estão sujeitos ao risco de "falácia ecológica", que ocorre quando suas conclusões são inapropriadamente usadas para inferir associações entre doenças e seus determinantes no nível das pessoas afetadas, uma vez que os fatores de exposição dos grupos podem nem sempre refletir relações de risco para as pessoas. Por outro lado, deve-se lembrar igualmente o risco da "falácia atomística" 13, quando dados provenientes de estudos sobre os indivíduos são inadequadamente empregados para fazer inferências sobre riscos que afetam o grupo populacional. Além disso, aponta-se que, ao atribuírem um único valor para o grupo de população, os índices compostos não dedicariam a devida consideração para as desigualdades intra-regionais, como fator de atenuação dos efeitos contextuais da privação social sobre as pessoas mais bem situadas do ponto de vista sócio-econômico dentro do grupo, e de intensificação desses efeitos para as demais. Nesse sentido, sublinha-se que, apesar das restrições aos estudos epidemiológicos de dados agregados, reconhece-se sua utilidade como instrumento efetivo para o desenvolvimento da pesquisa em saúde 14,15.
O índice mais utilizado no Brasil é o critério ABA/ABIPEME, uma medida de potencial e hábitos de consumo. Esse critério é baseado na posse de itens como televisor, rádio, aspirador de pó, máquina de lavar roupa, automóvel e banheiro no domicílio, presença de empregada mensalista e nível de instrução do responsável pelo domicílio. A totalização dos pontos correspondentes a cada item indica a classificação dos respondentes em cinco estratos: A (rico), B (médio-alto), C (médio-médio), D (médio-baixo) e E (pobre). A facilidade de obtenção de dados por meio dessa sistemática cativou pesquisadores da área de saúde para a classificação dos participantes de estudos epidemiológicos segundo seu critério. Todavia, estudos da área de economia criticam essa metodologia como ultrapassada, insensível às modificações mais dinâmicas dos hábitos de consumo, e por incluir itens instáveis e de pequeno poder discriminatório 16. Esse índice não foi desenvolvido tendo em vista preocupações de saúde e bem-estar social. Hábitos de consumo não necessariamente refletem padrões comportamentais em saúde, níveis diferenciais de acesso a serviços médicos e odontológicos ou risco para doença. Há incompatibilidade entre aquilo que o índice procura avaliar e os motivos mais comuns das pesquisas em saúde para estratificar a população. Além disso, a proposição desse critério é desatualizada e tem reduzido poder de discriminação até mesmo para a finalidade a que se destinara originalmente.
Foi também constatada uma participação bastante mais expressiva de estudos sobre cárie dentária do que sobre doença periodontal, o que ilustra o fato de a associação com características de inserção sócio-econômica ser uma convicção mais bem assentada para a primeira doença que para a segunda.
Quando à categoria de país onde foi realizada a pesquisa associando condição sócio-econômica com a distribuição de cáries e doença periodontal, o Brasil aparece em posição de destaque, estando proporcionalmente acima da participação do país em relação à produção mundial, quando consideradas todas as áreas do conhecimento. Ao mesmo tempo, percebe-se o inverso em relação aos Estados Unidos, havendo escassez de publicações relativas a este país na área em pauta. Esta desproporção fica ainda mais evidente quando verificamos que a produção científica oriunda dos Estados Unidos em ciências da saúde, nos anos recentes, atingiu 37,6% da produção mundial, enquanto o Brasil ficou com apenas 0,9%, correspondendo, respectivamente, ao primeiro e vigésimo terceiro lugar 17.
Pode-se concluir que a utilização de indicadores de estratificação social em estudos epidemiológicos das doenças bucais mais prevalentes é diversa e heterogênea, seguindo diferentes critérios, como disponibilidade de dados e diferentes diretrizes conceituais. Como esperado, esta literatura concentrou-se em periódicos voltados à temática da saúde coletiva, e se notou uma expressiva participação de estudos sobre a população brasileira, muito superior à média da produção nacional para as demais áreas do conhecimento.
Colaboradores
A. F. Boing coordenou e participou da coleta de dados, realizou pesquisa bibliográfica, análise dos dados e redigiu o artigo; M. A. Peres planejou e coordenou o trabalho, definindo seu escopo; contribuiu na análise dos dados e na redação do artigo. D. F. Kovaleski e S. E. Zange participaram da coleta de dados, pesquisa bibliográfica e revisão do artigo. J. L. F. Antunes contribuiu com a análise, pesquisa bibliográfica e redação do artigo.
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Endereço para correspondência
M. A. Peres
Departamento de Saúde Pública, Centro de Ciências da Saúde
Universidade Federal de Santa Catarina
Campus Universitário Trindade
Florianópolis, SC 88010-970, Brasil
mperes@ccs.ufsc.br
Recebido em 16/Ago/2004
Versão final reapresentada em 03/Dez/2004
Aprovado em 09/Dez/2004