ARTIGO ARTICLE

 

Consumo de nutrientes em adultos e idosos em estudo de base populacional: Projeto Bambuí

 

Nutrient consumption by adults and seniors in a population-based study: the Bambuí Project

 

 

Aline Cristine Souza LopesI, II; Waleska Teixeira CaiaffaII; Rosely SichieriIII; Sueli Aparecida MingotiII; Maria Fernanda Lima-CostaII, IV

ICentro Universitário Newton Paiva, Belo Horizonte, Brasil
IIFaculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil
IIIInstituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
IVCentro de Pesquisas René Rachou, Fundação Oswaldo Cruz, Belo Horizonte, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Inquérito alimentar populacional em amostra aleatória de 550 indivíduos >= 18 anos, realizado em Bambuí, Minas Gerais, Brasil, utilizando o Questionário Semiquantitativo de Freqüência Alimentar e recordatório 24 horas calibrados pela técnica de regressão linear. A análise constou de comparação de médias, teste de qui-quadrado e razão de adequação do nutriente (RAN-adequada: 90,0-110,0%). Foi baixo o percentual da população que apresentou RAN de acordo com o recomendado para consumo de carboidratos (2,4%), proteínas (17,6%), vitaminas (0,0-5,1%) e minerais (0-21,1%). Diferenças de acordo com sexo e idade foram encontradas: 90,2% e 91,8% de mulheres apresentaram baixo consumo de ferro e vitamina B6, respectivamente. Ao contrário, 87,7% dos homens relataram consumo excessivo de ferro, 80,3% de fósforo e 11,9% de colesterol. Quanto à idade, 64,3% de idosos (> 60 anos) relataram baixa ingestão protéica e 39,3% apresentavam inadequação das frações lipídicas; sendo que 35,7% informaram consumo excessivo de ácidos graxos saturados. Dos adultos (18-59 anos), 67,8% relataram excessivo consumo protéico e 53,4% ingestão insuficiente de ferro. Alto e inadequado consumo de lipídios e baixa ingestão de fibras, vitaminas e minerais, constituem problema importante de saúde pública por possivelmente contribuir para o aumento das doenças crônicas não transmissíveis.

Consumo de Alimentos; Nutrição; Nutrientes, Questionários


ABSTRACT

A nutritional survey was performed in a random sample of 550 individuals (>= 18 years) in Bambuí, Minas Gerais State, Brazil, using the Semi-Quantitative Food Frequency Questionnaire calibrated with 24-hour recall. Comparisons used means, proportions, and the nutrient adequacy ratio (NAR: 90.0-110.0%). Adequate intake was reported in only 2.4% of the individuals for carbohydrate, 17.6% for protein, 0.0 to 5.1% for vitamins, and 0.0 to 21.1% for minerals. NAR was influenced by gender and age: 90.2% and 91.8% of women presented low iron and B6 vitamin intake, respectively. Meanwhile, 87.7% of men reported excess iron, 80.3% phosphorous, and 11.9% cholesterol. Regarding aging, 64.3% of elderly (> 60 years old) reported low protein intake and 39.3% inadequate lipid fraction balance (P/S); 35.7% reported high unsaturated fatty acid intake. For adults (18-59 years), 67.8% reported excess protein and 53.4% deficient iron intake. In this population, high lipid consumption and low intake of fiber, vitamins, and minerals pose an important public health problem and may contribute to an increase in chronic non-communicable diseases.

Consumption Food; Nutrition; Nutrients; Questionnaires


 

 

Introdução

Os agravos relacionados à nutrição dos indivíduos, incluindo as doenças crônicas-degenerativas não transmissíveis, constituem prioridade para a saúde pública em países desenvolvidos e naqueles em desenvolvimento, tanto nas regiões metropolitanas quanto nos municípios de pequeno porte. Atinge todos os sexos e idades, sendo que, no momento, importância crescente tem sido conferida ao grupo de idosos. Sua importância é tal que, em 2000, a Organização Mundial da Saúde (OMS) propôs uma estratégia mundial para a prevenção e o controle das doenças crônicas-degenerativas não transmissíveis. Essa estratégia concentrou-se nos fatores de risco tabagismo, dietas aterogênicas e atividade física, mas de maneira integrada, considerando a interação existente entre eles 1.

Os estudos epidemiológicos têm fornecido evidências sobre a importância da dieta como fator de risco para doenças cardiovasculares, cerebrovasculares, diabetes mellitus e neoplasias. Vários alimentos e nutrientes têm sido relacionados tanto à ocorrência quanto à prevenção de doenças crônicas em diferentes populações. Destacam-se investigações sobre o efeito antioxidante das vitaminas A, E e C na prevenção do câncer e de doenças cardiovasculares 2,3; a ingestão alimentar e suplementar de cálcio na prevenção da osteoporose 2,4,5; o consumo excessivo de colesterol e gorduras saturadas e a ocorrência de doenças cardiovasculares 3,6; a deficiência de ferro e a redução da imunidade, da capacidade de trabalho e desempenho intelectual, além da associação com anemia e gastrite atrófica 7; assim como a deficiência de zinco com anorexia, depressão da resposta imune e anormalidades ósseas 8.

No Brasil, os inquéritos populacionais são, em sua maioria, conduzidos em regiões metropolitanas. Dessa forma, negligencia-se a importância dos municípios de pequeno porte, que constituem a grande realidade sociogeográfica do país 9.

Os inquéritos dietéticos são úteis pois determinam o padrão alimentar da população e sua evolução com o tempo, além de detectar a deficiência nutricional em seu estágio inicial 10. O inquérito alimentar mais importante realizado no país foi o Estudo Nacional de Despesa Familiar (ENDEF-1974/1975) 11. Mais recentemente destaca-se o Estudo Multicêntrico sobre o Consumo Alimentar e Estado Nutricional (1996), realizado em cinco cidades brasileiras, utilizando o Questionário Semiquantitativo de Freqüência Alimentar (QSFA) 12.

O QSFA, referente ao último ano, tem sido utilizado em inúmeras investigações, apesar das discussões recentes acerca de sua adequação em estimar a ingestão de nutrientes 13. Na pesquisa epidemiológica são necessários instrumentos de avaliação do consumo alimentar de fácil aplicação, baixo custo e capazes de caracterizar a dieta habitual dos indivíduos, objetivos estes que o QSFA contempla de maneira satisfatória. Também, a magnitude do seu erro tem sido avaliada em estudos de validação, reprodutibilidade e calibração 2,14,15,16,17,18,19,20,21.

Os estudos de calibração são particularmente úteis na correção do erro de medida do QSFA e têm sido indicados como alternativa em situações nas quais a realização de inquérito alimentar de vários dias para o estudo de validação é inviável. A calibração consiste na correção estatística da ingestão de nutrientes aferida pelo instrumento teste (QSFA) com aquela obtida pelo método referência, dada a inexistência de um padrão-ouro que avalie o consumo alimentar 2,15,16,18,19,20,21. Essa metodologia tem sido utilizada em estudos internacionais como o EPIC – European Prospective Investigation into Cancer and Nutrition 22, e também no Brasil, como no estudo realizado em Bambuí, Minas Gerais, Brasil. Neste estudo, o consumo de nutrientes foi calibrado por meio da comparação do QSFA, com recordatório 24 horas associado a réplicas de alimentos (R24) 19,20,21.

Este artigo tem como objetivo verificar a adequação da ingestão de nutrientes para uma amostra populacional de Bambuí, de acordo com as recomendações nutricionais, enfocando principalmente as diferenças de sexo e idade.

 

Metodologia

Projeto Bambuí

O Projeto Bambuí é um estudo epidemiológico com base populacional desenvolvido no Município de Bambuí, com cerca de 15 mil habitantes. Esse projeto tem dois componentes, um inquérito de saúde da população e um estudo prospectivo da população idosa 23. O presente trabalho faz parte do inquérito de saúde.

População de base e amostra

Os participantes do estudo foram identificados por censo realizado pela equipe do Projeto Bambuí, em 1994. O inquérito de saúde foi realizado em amostra aleatória simples de 1.664 moradores com cinco ou mais anos de idade. Dos 1.221 participantes do inquérito de saúde com 18 ou mais anos, 23 selecionou-se aleatoriamente 660 indivíduos para o inquérito alimentar, baseando-se em 2,5% de erro amostral, 20,0% de prevalência de obesidade, 95% de nível de confiança e 20,0% de perdas. A amostra final foi composta por 550 participantes (83,2%), sendo a perda de 16,8%, inferior ao previsto. O estudo de calibração foi realizado em 98 participantes selecionados aleatoriamente, com as mesmas características amostrais, exceto o erro amostral que foi de 6,5% 21.

Coleta de dados

O inquérito alimentar, parte do inquérito de saúde, objetivou criar bases metodológicas para a investigação epidemiológica nutricional e verificar a adequação da ingestão de alimentos e nutrientes na população. Para essa investigação foi utilizado o questionário semiquantitativo de freqüência alimentar associado a fotos (QSFA) e referente ao último ano, e o recordatório 24 horas associados a réplicas de alimentos (R24). Para o estudo de calibração os participantes responderam tanto o QSFA quanto o R24.

O QSFA continha informações sobre 94 alimentos, sendo utilizado um álbum de 52 fotos objetivando minimizar o viés de informação. As entrevistas, realizadas no domicílio, tiveram duração média de quarenta minutos. Os entrevistadores, selecionados entre os residentes da cidade, tinham pelo menos o segundo grau completo e foram treinados por um nutricionista.

O R24 associado a réplicas de alimentos foi aplicado em dias distintos da semana, a fim de minimizar o efeito da variação diária. Os participantes foram convidados a montar suas refeições do dia anterior utilizando 75 réplicas de alimentos e sete medidas caseiras como modelos. No caso de não existir a réplica do alimento consumido, o entrevistado relatava o alimento e o tamanho da porção de acordo com as medidas caseiras disponíveis.

Análise

A tradução das informações do QSFA em valores de nutrientes foi realizada em um programa especialmente desenvolvido em SPSS 11.0, no qual as informações referentes às freqüências e quantidades de alimentos consumidos eram transformadas em ingestão diária de nutrientes. O banco de dados de composição de alimentos foi construído a partir do Programa de Apoio à Nutrição, versão 2.5, da Escola Paulista de Medicina 24, e das tabelas de Avaliação de Consumo Alimentar em Medidas Caseiras 25 e de Composição Química de Alimentos 26.

Os bancos de dados de composição de alimentos utilizados para o R24 foram os mesmos utilizados para o QSFA e sua análise realizada no Programa de Apoio à Nutrição 24.

Transformações logarítmicas dos valores de nutrientes foram realizadas com o objetivo de normalizar os dados, possibilitando a calibração pela técnica de regressão linear 27. Como variável resposta utilizou-se a ingestão obtida pelo R24 associado a réplicas de alimentos, e como explicativas, o consumo de nutrientes aferido pelo QSFA, sexo e idade dos participantes, e as possíveis interações entre essas variáveis. Para cada nutriente identificou-se um modelo de calibração. O critério de permanência das variáveis nos modelos univariados foi um valor de p < 0,10. Para o consumo de carboidratos, lipídios, fibras, cálcio, fósforo, vitaminas B6 e E, e ácidos graxos saturados e moninsaturados foi suficiente um modelo de regressão linear simples para o ajuste. Para outros nutrientes, variáveis explicativas adicionais contribuíram significativamente para estimar a ingestão calibrada. Essas variáveis foram: sexo do indivíduo para consumo de proteínas, ferro, zinco; e idade para proteínas, zinco, vitamina C e ácidos graxos poliinsaturados. Já para outros nutrientes, variáveis modificadoras de efeito foram significativas como a interação entre sexo e ingestão avaliada pelo QSFA para o consumo de vitamina A e colesterol, e a interação entre o QSFA e a idade para a ingestão de proteínas e zinco (Tabela 1). Esses modelos foram utilizados para estimar a ingestão calibrada de nutrientes para os 550 participantes do inquérito alimentar.

 

 

A análise constou do cálculo de médias, teste-t de Student pareado para comparação de médias, teste qui-quadrado e cálculo da razão de adequação do nutriente (RAN). A RAN é o índice de adequação para a ingestão do nutriente de acordo com as recomendações propostas pela literatura. Foram utilizadas como referências os valores propostos pelo Ministério da Saúde do Brasil, OMS e Recommended Dietary Allowance do National Reseach Council 28. A RAN foi considerada como adequada quando seu valor variou de 90,0 a 110,0% 10. Para todos os testes considerou-se como significante o valor de p < 0,05.

O Projeto Bambuí foi aprovado pelo Comitê de Ética da Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, e todos os participantes assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido.

 

Resultados

Os participantes do inquérito alimentar (n = 550) eram em sua maioria mulheres (55,6%), estando concentrados principalmente nas faixas etárias de 18-30 e 41-60 anos (31,8% cada), sendo a média de idade da população de 41,4 ± 16,5 anos e a mediana de 39 anos. Não houve diferenças significativas na distribuição etária e de gênero em relação à amostra do inquérito de saúde e a subamostra do estudo de calibração (n = 98).

Comparação das médias de nutrientes calibradas e não calibradas obtidas a partir do QSFA

Como esperado, as médias de nutrientes não calibradas obtidas a partir do QSFA foram sempre maiores do que as médias calibradas (p < 0,01), sendo a única exceção o relato da ingestão de álcool. Essa superestimação reforça, portanto, a necessidade de calibrar esse instrumento (Tabela 2). 

 

 

Razão de adequação do consumo de nutrientes na população de acordo com sexo e idade

Na Tabela 3 estão descritas as RAN para a população total (n = 550) e de acordo com o sexo. O percentual da população que apresentou o índice RAN de acordo com os valores recomendados foi pequeno, principalmente para o consumo de carboidratos (2,4%), proteínas (17,6%), vitaminas (0,0 a 5,1%) e minerais (0,0 a 21,1%). Simultaneamente, a população apresentou para o mesmo nutriente, percentuais excessivos e insuficientes em relação às recomendações. Por exemplo, 50,9% dos entrevistados relataram consumo baixo de ferro, 39,8% alto e apenas 9,3% tiveram uma ingestão adequada (Tabela 3).

Alguns nutrientes apresentaram-se abaixo da adequação para praticamente toda a população, como fibras e vitamina E (100,0% para ambas); zinco e vitamina A (99,8% para ambos); cálcio (98,0%); carboidratos (97,5%); vitaminas B6 (94,9%) e C (93,8%). Ferro, relação P/S (razão da ingestão de ácidos graxos poliinsaturados e monoinsaturados pelos saturados) e proteínas também estiveram abaixo do recomendado em 50,9%, 30,7% e 22,9%, respectivamente (Tabela 3).

A proporção da população relatando consumo excessivo foi menor, sendo mais importante para fósforo (99,3%), proteínas (59,5%), ferro (39,8%), lipídios (31,1%) e ácidos graxos saturados (24,4%) (Tabela 3).

Quando estratificada por sexo, homens apresentaram valores mais adequados do que mulheres, com exceção para o consumo de lipídios (67,2% contra 70,3% para mulheres), fósforo (14,8% contra 26,1%), vitamina B6 (1,2% contra 8,2%) e colesterol (88,1% contra 100,0%) (Tabela 3).

As RAN foram estatisticamente diferentes para o consumo de proteínas, fósforo, ferro, vitaminas B6 e colesterol. Essas diferenças ocorreram devido ao consumo excessivo apresentado pelos homens para nutrientes como fósforo (80,3% contra 60,5% para mulheres), ferro (87,7% contra 1,6%) e colesterol (11,9% em homens), e o baixo consumo de vitaminas B6 (98,8% contra 91,8%); assim como a baixa ingestão de proteínas em mulheres (26,5% contra 18,4% para homens) (Tabela 3).

Na Tabela 4 estão apresentadas as RAN segundo a idade, sendo que os idosos (> 60 anos) apresentaram as piores adequações em relação aos adultos (18-59 anos), com exceção para o consumo de proteínas (22,6% contra 16,7% para adultos), ferro (25,0% contra 6,4%) e colesterol (97,6% contra 94,2%).

Ainda na Tabela 4, os nutrientes que apresentaram valores estatisticamente diferentes foram proteínas, fósforo, ferro, ácidos graxos saturados, relação P/S e colesterol. Essas diferenças devem-se ao consumo insuficiente de proteínas apresentado pelos idosos (64,3% contra 15,5% em adultos), assim como uma baixa relação P/S (39,2% contra 29,2%) e o excesso de ácidos graxos saturados (35,7% contra 22,3%) e fósforo (76,2% contra 68,0%). Já os adultos relataram consumo insuficiente de ferro (53,4% contra 36,9% em idosos), excessivo de proteínas (67,8% contra 13,1%) e pior adequação para a ingestão de colesterol (94,2% contra 97,6%) (p < 0,05).

 

Discussão

A população relatou uma inadequação importante para a maioria dos nutrientes analisados, apresentando diferenças de acordo com o sexo e a idade. Esse desequilíbrio dietético caracterizou-se tanto pelo consumo excessivo quanto insuficiente de nutrientes. No entanto, as mulheres e os adultos relataram uma dieta mais saudável do que homens e idosos. As inadequações apresentadas, principalmente em homens e idosos, constituem problema importante de saúde pública por sugerir uma possível associação do consumo de nutrientes com algumas enfermidades, inclusive as cardiovasculares.

O estudo sugere a necessidade de intervenções dietéticas diferenciadas na população de acordo com sexo e idade. Para mulheres foi mais expressivo o baixo consumo de ferro na dieta, enquanto que para homens foi o excesso de fósforo, ferro e colesterol. Já, segundo a idade, idosos apresentaram consumo insatisfatório de proteínas e baixa relação P/S, sendo que, para adultos, o excesso protéico se destacou. Vale ressaltar que, para alguns nutrientes, a inadequação esteve presente em toda população, independente do sexo e idade, como o baixo consumo de fibras, cálcio, zinco e vitaminas, além do excesso de ácidos graxos saturados.

A baixa ingestão de ferro apresentada pelas mulheres pode ter ocorrido devido às necessidades diferenciadas por sexo. Esse consumo insuficiente de ferro associado à baixa ingestão de vitamina C, nutriente responsável pelo aumento da absorção do ferro dietético, poderia estar associado à ocorrência de anemia, alteração da resposta imune, redução da capacidade de trabalho e desempenho intelectual 7,12. Essa inadequação dietética reforça a necessidade de intervenções nesse grupo, uma vez que as ações de saúde pública, em geral, visam às crianças e gestantes, negligenciando outros grupos de risco.

Para os homens, o consumo excessivo de nutrientes foi uma constante, destacando-se ferro (87,7%), fósforo (80,3%), proteínas (58,6%), ácidos graxos saturados (25,0%) e colesterol (11,9%), além da baixa relação P/S (28,7%). Esse excesso de nutrientes pode estar relacionado ao maior consumo de fontes protéicas de origem animal, o que pode justificar a ingestão excessiva de colesterol apenas entre os homens. O colesterol dietético excedeu o limite recomendado de 300mg/dia em 11,9% dos homens, enquanto que todas as mulheres tiveram ingestão adequada. Essa diferença entre os sexos parece ser um indicativo de uma atitude mais saudável entre as mulheres; apesar da proporção de consumo inadequado de ácidos graxos saturados e a baixa relação P/S relatado, esse foi ainda menor entre as mulheres do que entre os homens (Tabela 3) 9.

O alto consumo de frações lipídicas em Bambuí, independente de sexo e idade, constitui problema importante de saúde pública. Cerca de 22,0% de adultos e 36,0% dos idosos, independente do sexo, apresentaram ingestão de gorduras saturadas acima da recomendação máxima de 10,0% da energia total. A relação P/S apresentou-se insuficiente em cerca de 30,0% dos entrevistados, com exceção dos idosos que apresentaram valor ainda maior (39,3%). Esse consumo inadequado de lipídios associado à baixa ingestão de fibras, zinco e vitaminas antioxidantes pode contribuir para a maior ocorrência de doenças cardiovasculares, cânceres e outras enfermidades nessa população 2,3,6,7.

A ingestão inadequada de cálcio e zinco também constituiu problema importante, principalmente em mulheres e idosas, dada a alta incidência de anormalidades ósseas, como osteoporose e fraturas nessa população 2,4,5,8. No entanto, ressalta-se que os estudos epidemiológicos ainda são cautelosos quanto ao efeito protetor do cálcio dietético na ocorrência da osteoporose.

Limitações na obtenção da informação do consumo de nutrientes podem ter ocorrido, haja vista que, neste estudo, o consumo de alguns nutrientes tais como carboidratos, fibras, cálcio, zinco, vitaminas A, C e E foi inadequado em quase 100,0% dos participantes. Para nutrientes como cálcio e fibras, o consumo insuficiente pode, em parte, ser explicado pelas elevadas recomendações nutricionais propostas. Outros, como a vitamina A, devido à sua grande concentração em poucos alimentos, poderiam apresentar adequação subestimada em virtude do não consumo de suas fontes alimentares. Por outro lado, para zinco, vitaminas C e E, a alta prevalência de consumo insuficiente parece pouco freqüente, como relatado em outros estudos. Por exemplo, no Estudo Multicêntrico sobre o Consumo Alimentar e Estado Nutricional, a ingestão abaixo dos valores recomendados de vitamina C variou de 4,0 a 24,0%, contrapondo-se ao valor de 93,8% aqui encontrado 12. Essa baixa adequação no consumo de alguns nutrientes, principalmente micronutrientes, poderia estar relacionada às limitações de tabelas de composição de alimentos, como sua pouca validade e confiabilidade, além da ausência de informações relativas às preparações de alimentos.

Além disso, algumas considerações finais devem ser feitas. A primeira delas trata da necessidade de realizar a calibração do QSFA. As médias de nutrientes superestimadas encontradas para este instrumento justificam a necessidade da realização da calibração. Essa superestimação pode ocorrer por vários fatores, entre eles uma lista grande de alimentos e viés de informação das quantidades e freqüências de alimentos consumidos. No entanto, o uso do QSFA foi particularmente importante neste estudo, pois um dos objetivos da investigação prospectiva realizada em Bambuí é estabelecer associações entre dieta e eventos, principalmente doenças cardiovasculares. Nessa situação o que se pretende, mais do que estimar adequadamente a ingestão alimentar, é classificar corretamente os indivíduos segundo graus de exposição. No entanto, o QSFA, diferentemente de outros métodos dietéticos, deve ser calibrado e/ou validado para cada população, a fim de evitar a ocorrência de erros de estimação 2,15,16, 18,19,20,21.

A segunda trata da boa validade interna apresentada, uma vez que a perda constatada pela amostra populacional foi inferior ao previsto (20,0%), o que possibilita a generalização dos resultados para a população > 18 anos de Bambuí.

Finalmente, o perfil de consumo de nutrientes apresentado pela população se aproxima de outros estudos realizados em capitais e regiões metropolitanas do país 12. O elevado consumo de lipídios, ácidos graxos saturados, e a baixa quantidade de fibras e gorduras insaturadas na dieta relacionados com um maior risco para doenças crônicas-degenerativas não transmissíveis, principalmente as cardiovasculares, parecem não ser exclusividade das grandes cidades, mas também de municípios de pequeno porte, como Bambuí 9. No entanto, para a realização desse tipo de inferência torna-se necessário realizar outros inquéritos populacionais a fim de melhor conhecer o perfil alimentar dos municípios de pequeno porte e conseqüentemente investigar a associação com enfermidades.

A realização de estudos epidemiológicos nutricionais pode direcionar atividades locais de promoção e recuperação da saúde por meio de ações relativamente baratas como a adoção de hábitos alimentares saudáveis. O presente estudo parece contribuir para o planejamento em saúde do município, ao sugerir intervenções dietéticas diferenciadas de acordo com sexo e idade, objetivando prevenir principalmente as doenças cardiovasculares, uma das principais causas de morbi-mortalidade em Bambuí 23.

 

Colaboradores

A. C. S. Lopes participou da revisão da literatura, da coleta de dados, da análise estatística e da redação e revisão final do artigo. W. T. Caiaffa participou da coleta de dados, da análise estatística e da redação e revisão final do artigo. R. Sichieri e S. A. Mingoti auxiliaram na análise estatística e na redação e revisão final do artigo. M. F. Lima-Costa participou da e redação e revisão final do artigo.

 

Agradecimentos

À equipe do estudo, à população de Bambuí e à Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), CNPq pelo financiamento, e ao Grupo de Pesquisa em Epidemiologia da Universidade Federal de Minas Gerais.

 

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Endereço para correspondência
A. C. S. Lopes
Grupo de Pesquisas em Epidemiologia
Faculdade de Medicina
Universidade Federal de Minas Gerais
Av. Alfredo Balena 190
Belo Horizonte, MG 31130-100, Brasil
aline@medicina.ufmg.br

Recebido em 28/Mai/2004
Versão final reapresentada em 10/Mar/2005
Aprovado em 11/Mar/2005

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br