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Influenza, a medicina enferma: ciência e práticas de cura na época da gripe espanhola em São Paulo

 

 

Dina Czeresnia

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. dina@ensp.fiocruz.br

 

 

Liane Maria Bertucci. Campinas: Editora Unicamp, 2004. 442 pp.

ISBN: 85-268-0659-9

A gripe espanhola foi um dos acontecimentos sanitários do século XX que mais fortemente atualizou a experiência trágica provocada por epidemias, as "pestes" que assolaram a humanidade no decorrer da história. Imagens de devastação, sofrimento, desespero. Inúmeros doentes e mortos. A constatação da fragilidade e impotência para lidar com o mal. Nenhuma ciência detentora de solução eficaz, o sistema de saúde em xeque. Em meio ao desastre, manifestações de grandiosidade humana: organização de socorros, distribuição de remédios e comida. Mobilização civil, solidariedade. Ao mesmo tempo, demonstrações de pequenez, egoísmo, mesquinharia: debandada de políticos, ações de aproveitadores de todo tipo. Este é o quadro que introduz o estudo de Liane Maria Bertucci sobre a epidemia da gripe na cidade de São Paulo, em 1918.

No período imediatamente anterior ao surgimento da epidemia, a cidade vivia transformações relativas ao crescimento populacional, diversificação das atividades econômicas e redesenho do espaço urbano. Na época, questões de salubridade já ocupavam a academia, jornais e opinião pública. Por exemplo, a reforma urbana e a busca de soluções para os principais problemas de saúde pública como tuberculose e febre tifóide. A questão que inicia o primeiro capítulo do livro é como a ciência da época, presente de diversas formas no cotidiano da cidade, estruturava oficialmente o cuidado sanitário no período imediatamente anterior à gripe espanhola.

O Serviço Sanitário do Estado, dirigido por Arthur Neiva, passou no período de 1917-1918 por reformulações baseadas em pressupostos científicos. Implementaram-se e redirecionaram-se práticas de saúde. Todo este processo foi posto em xeque a partir da segunda metade de 1918, com o surgimento da epidemia de gripe. A influenza tornou-se um pesadelo a partir da confirmação dos primeiros casos em meados de outubro. A doença foi anunciada como microbiana, mundial e sem meio de tratamento específico. A autora analisa o discurso oficial e ações implementadas pelo Estado; o esgotamento de todas as medidas frente à epidemia; a organização de um conjunto de ações voltadas ao apoio dos doentes e familiares; a desestruturação da vida cotidiana; o impacto da doença na população pobre. Como governo municipal, médicos e moradores da cidade agiram diante da devastadora epidemia?

Os clamores pela implementação do isolamento e segregação dos doentes, uma das alternativas mais antigas, acabaram por tornar a hospitalização a forma reconhecida de enfrentar a epidemia. Em face do desastre, rearticularam-se desse modo o discurso e a prática dos cientistas. Revalidaram-se o saber e as instituições médicas como detentores dos meios para controlar a doença e restaurar a saúde. Contudo, permaneceu a pergunta: não existiriam outros recursos, outras opções de tratamento mais eficazes?

Em meio à impotência e ao desespero, o socorro aos doentes foi palco de manifestações contraditórias. Por um lado, tentativas de aliviar o sofrimento com a busca remédios e sua distribuição aos necessitados; por outro, os abusos com a venda de produtos inúteis, viabilizada por intermédio da manipulação do pânico das pessoas. A recuperação da riqueza do universo de alternativas de tratamentos para a gripe espanhola é o tema que a autora destrincha no segundo capítulo do livro. Neste processo ela destaca como o discurso dos cientistas buscou se diferenciar e se firmar socialmente, buscando discriminar os medicamentos "oficiais" em relação às outras opções que invadiam as páginas dos jornais. Neste capítulo é estudada, também, a participação da homeopatia como outra perspectiva médica que propôs e indicou terapêuticas, disputando clientes com a alopatia. Alopatia e homeopatia apresentavam dois discursos distintos. A alopatia prometia a cura eficaz no futuro, acreditando em novas descobertas pelo desenvolvimento progressivo da ciência, de seus métodos e pesquisas. A homeopatia, como analisa a autora, via a possibilidade de cura no presente. Sendo assim, foi mais fácil para a alopatia do que para a homeopatia explicar o insucesso. De qualquer forma, ambas tiveram que lidar com o estrondoso fracasso denunciado pelo crescente número de doentes e mortos. Ainda neste segundo capítulo são resgatados os saberes populares que também foram utilizados na tentativa de combater a gripe espanhola. Produtos que compunham alternativas de remédios caseiros como limão, canela, folhas de eucalipto, alho, cebola, canela foram amplamente empregados. Alguns deles chegaram inclusive a ser industrializados. A medicina popular e mesmo manifestações religiosas de cura imbricaram-se com as idéias científicas da época. O Serviço Sanitário de São Paulo buscou, naquele período, conhecer, classificar e controlar estes saberes e práticas.

Uma das questões que Bertucci assinala em seu livro foi como as intervenções instituídas contra a gripe espanhola em 1918, na cidade de São Paulo, misturaram o antigo e o novo. Práticas oriundas de antigas concepções como a desinfecção das casas dos doentes e dos ambientes públicos, conviveram com a introdução do moderno uso de máscaras para evitar a transmissão.

Os limites dos tratamentos disponíveis contra a gripe foram logo constatados. O recurso da hospitalização rapidamente demonstrou-se insuficiente para a prevenção e cura da doença. O crescimento assustador do número de doentes obrigou o governo a realizar mudanças na estrutura do Serviço Sanitário de São Paulo. O acompanhamento destas transformações é realizado no terceiro capítulo. A reorganização instituída nos serviços de assistência às vítimas coincidiu com o início da redução do número de casos, sugerindo que o fim da epidemia estaria próximo.

A autora acompanha, também no capítulo três, os estudos e debates que ocorreram na cidade de São Paulo indagando sobre as causas da ocorrência desta epidemia tão letal, assim como as descrições realizadas por médicos alopatas sobre as manifestações clínicas, diagnóstico, prognóstico e tratamento da doença. Independentemente das muitas interrogações, poucas explicações e intervenções efetivas, a epidemia da gripe espanhola terminou. A questão analisada pela autora desloca-se então para problemas que se seguiram a este fim, como discordâncias em relação à contagem de mortos, o tratamento das denúncias de extorsões e mau atendimento às vítimas e inclusive, de procedimentos tenebrosos como o enterro de doentes ainda vivos no auge do período epidêmico.

Após a epidemia, o medo da gripe continuou a atormentar a população. A esperança de um conhecimento efetivo capaz de neutralizar os possíveis efeitos devastadores de uma nova epidemia de gripe foi depositada no desenvolvimento científico futuro. Afirmou-se assim a credibilidade do saber e dos doutores da medicina alopata.

Enfim, o livro alcançou resgatar, mediante o caso da cidade de São Paulo, a história do terrível período que foi o da gripe, doença tão familiar, que se manifestou de forma tão surpreendentemente grave em 1918, desorganizando a sociedade e colocando em xeque o saber científico. Destrinchou como governo, população e, sobretudo, médicos mobilizaram-se e agiram na época diante da catástrofe. Este resgate mostrou aspectos de diferença e também de semelhança com a realidade de hoje.

Bertucci concordou em parte com a proposição Luc Montagnier de que a gripe espanhola foi a última epidemia de tipo clássico. Para ela, o que se pode afirmar é que isto é verdade para o século XX, mas que não é possível garantir que não se repita no futuro uma epidemia que atinja um grande número de pessoas em pouco tempo e que seja tão letal quanto a de 1918.

Sem dúvida o vírus da gripe, isolado em 1933, apresenta a característica de ter intensa mutabilidade, tornando mais difícil o desenvolvimento de medicamentos antivirais específicos. Esta mutabilidade reafirma o potencial surgimento de novas cepas extremamente letais. A gripe é uma das principais ameaças em termos da possível emergência de doenças epidêmicas. Esta ameaça foi, sem ter alcançado a dimensão da gripe espanhola, concretizada com a epidemia da síndrome respiratória aguda severa (SARS) em 2003. Esta experiência recente permite estabelecer um diálogo com a questão que finaliza o livro de Liane Bertucci: "teria o discurso médico sobre a gripe, apesar das novas pesquisas e descobertas da ciência, mudado essencialmente desde a época da gripe espanhola?".

O vírus da SARS surgiu no outono de 2002, na província de Guangdon, China e o primeiro caso foi diagnosticado em março de 2003. Constatou-se que a transmissão da doença ocorre por meio de contato próximo, particularmente membros da família e profissionais de saúde encarregados do cuidado aos doentes. Não existe uma medicação específica contra o agente da SARS, e o tratamento disponível é de suporte aos pacientes: antibióticos de amplo espectro, corticosteróides, e a ribavirina, um antiviral inespecífico com eficácia ainda controversa e presença de efeitos adversos. As medidas de prevenção e controle recomendadas são o manejo dos doentes em hospitais, garantindo-se estrito isolamento e uso de técnicas rigorosas de controle da transmissão: máscaras, luvas, camisolas e inclusive proteção para os olhos nos contatos diretos com doentes 1,2,3.

Pode-se observar, portanto, no caso da gripe, que o isolamento dos doentes permanece até hoje como base das medidas de prevenção e controle. Além do isolamento hospitalar, foi proposto no caso da SARS quarentena domiciliar voluntária (foi aventada inclusive a possibilidade de legalmente instituir quarentena domiciliar involuntária) de contatos próximos e outros indivíduos potencialmente expostos. Essas opções de intervenção são semelhantes às antigas e autoritárias práticas contagionistas do passado.

Por um lado, as características do mundo contemporâneo imprimem aceleração e velocidade nos contatos e o potencial de propagação de uma epidemia é muito maior e mais rápido. Por outro lado, também é muito mais veloz a produção e transmissão de informações científicas. É exponencialmente mais ágil a criação de redes de realização de trabalhos, de publicação de resultados e mesmo de colaboração global na identificação e controle dos focos epidêmicos. É incrivelmente maior também, para o bem e para o mal, a divulgação de informações pela mídia. Tanto no tocante ao esclarecimento e tranqüilização, quanto na geração de pânico na população. O medo da epidemia também se espalha velozmente, mesmo em lugares onde a ameaça era remota.

Verificou-se que, no que se refere às formas instituídas para lidar com uma pandemia, o discurso médico científico encontra-se hoje mais fortemente legitimado, disputando muito menos espaço com outras formas alternativas de prevenção e cura.

Em 1918, o agente etiológico da gripe ainda não tinha nem sido isolado. Hoje, é possível rapidamente desvendar a seqüência genética de uma nova mutação viral. Ao mesmo tempo, a perspectiva de uma terapêutica específica e eficaz ainda permanece uma promessa para o futuro. Reafirma-se mais uma vez a necessidade de se integrar ao esforço de pesquisa biológica a compreensão e intervenção sobre as condições ambientais, econômicas e culturais que podem favorecer ou limitar o surgimento e a propagação de novas epidemias.

 

 

1. Hoey J. Severe acute respiratory syndrome. CMAJ 2003; 168:1013.
2. SARS: the struggle for containment [Editorial]. CMAJ 2003; 168:1229.
3. Koren G, King S, Knowles S, Phillips E. Ribavirin in the treatment of SARS: a new trick for an old drug? CMAJ 2003; 168:1289-92.

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