ARTIGO ARTICLE
Cárie precoce na infância: prevalência e fatores de risco em pré-escolares, aos 48 meses, na cidade de João Pessoa, Paraíba, Brasil
Early childhood caries: prevalence and risk factors in 4-year-old preschoolers in João Pessoa, Paraíba, Brasil
Andréa Gadelha RibeiroI; Andressa Feitosa de OliveiraII; Aronita RosenblattI
IFaculdade de Odontologia de Pernambuco, Universidade de Pernambuco, Camaragibe, Brasil
IICentro de Ciências da Saúde, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Brasil
RESUMO
O objetivo deste estudo foi verificar a prevalência de cárie precoce na infância em crianças de nível sócio-econômico baixo da grande João Pessoa, Paraíba, Brasil, aos 48 meses de idade, pertencentes a uma coorte. Foram analisados os hábitos alimentares, higiene, exposição ao flúor e presença de defeitos de esmalte. Examinaram-se 224 crianças em domicílio, sob luz natural, utilizando-se a técnica joelho-a-joelho. Cada dente foi limpo com gaze estéril, sendo registrados cárie (OMS) e defeitos de esmalte (DDE Index). Durante o exame foi aplicado um questionário para obtenção de dados sobre dieta, higiene, uso de flúor e presença de amamentação natural e/ou artificial. Para análise estatística, utilizou-se o programa SAS com teste não paramétrico Mantel-Haenszel. Observou-se que 10,7% e 33,0% da amostra apresentaram cárie precoce e cárie severa, respectivamente. Dentre as crianças examinadas, 79,9% tinham ao menos um dente com defeito de esmalte, sendo este o único fator estatisticamente significante (p < 0,001) associado à etiologia da cárie precoce na infância. Sabendo da associação significativa entre cárie precoce e defeitos do esmalte, pode-se concluir que alterações superficiais no esmalte podem facilitar a propagação da doença.
Saúde Bucal; Cárie Dentária; Hipoplasia do Esmalte Dentário
ABSTRACT
The purpose of the present study was to evaluate the prevalence of early childhood caries (ECC), in a cohort of children of low socioeconomic status at 48 months of age in João Pessoa, Paraíba, Brazil, in relation to feeding practices, oral health behaviors, fluoride exposure, and enamel defects. 224 children were clinically examined in the Knee-Knee position at the children's home under natural light. Teeth were dried and cleaned with gauze, and caries (WHO index) and defect (DDE Index) were determined. Questionnaires on children's oral hygiene and dietary history were completed by parents or guardians. The SAS statistical program was used with the Mantel-Haenszel tests. The results showed a prevalence of 10.7% and 33.0% for ECC and SECC, respectively. Of all the children examined, 79.9% had at least one tooth with enamel defects, which was the only statistically significant factor (p < 0.001) for ECC. The association between enamel defects and ECC indicates that alterations in the enamel surface may cause progression of dental caries.
Oral Health; Dental Caries; Dental Enamel Hypoplasia
Introdução
Cárie precoce na infância é um termo utilizado para determinar o acometimento de lesão cariosa em crianças na idade pré-escolar 1,2. O termo define a idade do grupo afetado, caracterizando-se como uma doença de rápido desenvolvimento e que acomete superfícies dentárias normalmente livres de cárie 3.
Para Drury et al. 4, a identificação de lesão cariosa cavitada em crianças com idade inferior a 71 meses indica a presença de cárie precoce na infância ou susceptibilidade a ela. A presença de uma ou mais superfícies lisas, nos incisivos superiores, com cavitação, restauração ou, ainda, perda do elemento dentário é classificada como cárie precoce severa na infância, especialmente se o ceo-s for ³ 4 dos 36 aos 47 meses de idade e ³ 5 entre os 48 e 59 meses.
A cárie em crianças pré-escolares é um assunto de grande importância, uma vez que afeta esta minoria da população, com desvantagens sócio-econômicas, em países desenvolvidos e em desenvolvimento 5. Também é considerada um problema de saúde pública, que acomete comunidades desfavorecidas dos países subdesenvolvidos e industrializados, onde a desnutrição é um fator comum e de grande relevância 6.
A etiologia da cárie precoce na infância é bastante discutida. Horowitz 3 estabeleceu uma relação entre recém-nascidos, crianças desnutridas, com baixo peso ao nascer, com complicações pré-natais ou que apresentaram traumas no nascimento. Em seu relato, levanta a hipótese de que crianças com esse histórico tendem a apresentar defeitos estruturais macroscópicos no esmalte, hipoplasia linear ou desmineralizações microscópicas que afetam sua dentição decídua e as predispõem a um maior risco de cárie. Isso pode explicar, em parte, por que algumas crianças desenvolvem cárie precoce, enquanto outras, aparentemente expostas aos mesmos hábitos deletérios e fatores de risco, não a desenvolvem. Dessa maneira, o dente decíduo, com alterações de desenvolvimento, pode apresentar depressões e fissuras não coalescidas que facilitam a aderência e a colonização de bactérias cariogênicas junto à dentina exposta, facilitando a propagação da cárie nessas superfícies mais rapidamente do que nas intactas 7,8.
Levando em consideração a etiologia multifatorial da doença, a importância dos fatores comportamentais, psicológicos e sócio-econômicos, faz-se necessário que os profissionais e o público em geral conheçam os reais fatores de risco associados à cárie em bebês e em crianças pré-escolares 9. Do ponto de vista social, o desenvolvimento de estudos que visam a conhecer os fatores envolvidos na etiologia da cárie precoce na infância é de grande importância, a fim de, num futuro próximo, diminuir a prevalência dessa patologia, que causa dor e sofrimento às crianças, melhorando, assim, a sua qualidade de vida 10,11,12.
O objetivo deste estudo foi verificar a prevalência de cárie precoce da infância, em crianças de nível sócio-econômico baixo, da grande João Pessoa, Paraíba, Brasil, aos 48 meses de idade, pertencentes a um estudo de coorte, correlacionando com o gênero, hábitos alimentares, higiene, exposição ao flúor e presença de defeitos de esmalte.
Materiais e métodos
Amostra
Este estudo foi realizado com 224 crianças, aos 48 meses de idade, pertencentes a uma coorte, iniciada em janeiro e fevereiro de 2000, nascidas em uma maternidade pública de referência municipal e regional, conveniada ao SUS. A maternidade realiza atendimento a indivíduos economicamente desprivilegiados, em João Pessoa, capital do Estado da Paraíba, Região Nordeste do Brasil. A cidade tem um total de 597.934 habitantes, dos quais apenas 148 mil têm acesso a águas de abastecimento, cujo nível de flúor é inferior a 0,05ppm. O Nordeste é uma região pobre, que apresenta a menor renda per capita do país, e cerca de 39,0% das famílias vivem com a metade de um salário mínimo 13.
O cálculo amostral para o estudo de coorte teve como base o estudo de Li et al. 7,14, considerando um erro de 5,0%, intervalo de confiança 95,0% e poder de teste de 80,0%. Foi, ainda, proposto um aumento de 20,0% para controlar a perda amostral, existente em estudos longitudinal, perfazendo um total de 266 crianças a serem avaliadas. Em quatro anos de acompanhamento semestral, 224 crianças pertenciam ao estudo e foram inseridas nessa pesquisa. Como aos 48 meses todas as crianças da amostra apresentaram a dentição decídua completa, achou-se conveniente a publicação de tais resultados, uma vez que a cárie em crianças pré-escolares é um tema bastante discutido na comunidade científica.
Exame clínico
Em janeiro e fevereiro de 2004, após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelos pais ou responsável, o exame foi realizado por um único cirurgião-dentista, em caráter domiciliar, sob luz natural, utilizando a técnica joelho-a-joelho. Com o auxílio de luvas e máscaras descartáveis, um odontoscópio e uma sonda periodontal, preconizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), cada elemento dentário foi limpo e seco com gaze estéril e examinado quanto à presença de cárie, segundo os critérios da OMS (Levantamento Epidemiológico Básico de Saúde Bucal: Manual de Instruções. Genebra: OMS; 1997), e defeitos de esmalte, de acordo com o Modified DDE Index 1. O diagnóstico diferencial entre opacidades e mancha branca fundamentou-se nos critérios de Seow 8. As observações foram transcritas para uma ficha clínica padronizada, conforme as codificações estabelecidas. A cárie, quando relacionada com a unidade amostral criança, foi subdividida em: cárie precoce na infância, na presença de algum elemento cariado, e cárie precoce severa, no acometimento de cárie em superfície lisa ou ceo-s ³ 5, seguindo os conceitos de Drury et al. 4.
Para a identificação de outros fatores predisponentes à cárie precoce (gênero, dieta, higiene, uso de flúor e presença de amamentação natural e/ou artificial), foi elaborado um questionário aberto, previamente validado, direcionado aos responsáveis no momento do exame e aplicado pela mesma pesquisadora. Na análise da dieta, fez-se um inquérito da alimentação recordatória das últimas 24 horas, sendo considerada cariogênica quando na presença de alimento(s) cariogênico(s) entre as refeições. A higiene foi considerada positiva quando feita pelos responsáveis ao menos uma vez ao dia, e o uso do flúor estava presente se utilizado na forma de creme dental ou de gel, pelo profissional, no intervalo entre os exames. Para os dados da amamentação, foram coletadas informações quanto ao tipo (natural e/ou artificial), idade de suspensão e a presença ou ausência de sacarose na mamadeira. Esses dados foram registrados nas fichas clínicas e categorizados como: ausentes, suspensos antes dos 12 meses ou entre os 13 e 47 meses, ou ainda presente no momento do exame.
O questionário utilizado foi validado no estudo-piloto 15. Para a validação do exame clínico, a cada dez crianças examinadas, uma era sorteada aleatoriamente e reexaminada 24 horas após o último exame, obtendo-se, assim, o coeficiente kappa intraexaminador de 0,94, para cárie, e 0,96, para defeitos de esmalte.
Análise estatística
Após a coleta dos dados e categorização das variáveis, criou-se um banco de dados para a análise estatística, utilizando-se o programa SAS (1997). Para determinar o grau de associação entre as variáveis categóricas, foi realizada uma análise de distribuição conjunta de freqüência, utilizando o seguinte teste não paramétrico: Mantel Haenszel (c2MH).
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade de Pernambuco, sob o protocolo n. E079/02.
Resultados
Foi examinado um total de 224 crianças, e observou-se que 56,3% não apresentaram qualquer lesão cariosa, ao passo que 43,7% apresentaram cárie aos 48 meses. Das 98 crianças com cárie, 10,7% tinham precoce na infância e 33 % cárie precoce severa, de acordo com os critérios de Drury et al. 4. A prevalência de cárie foi maior nos meninos (24,5%) do que nas meninas (19,2%), porém esta diferença não foi estatisticamente significante (p > 0,05).
Analisando os fatores comportamentais de risco à cárie, como dieta, higiene, uso de flúor, amamentação natural e artificial (Tabela 1), não foi verificada nenhuma significância estatística (p > 0,05) quanto ao aparecimento da doença. No entanto, analisando-se a relação entre defeitos do esmalte e cárie, verifica-se que essa associação foi estatisticamente significante (p < 0,001), conforme se observa na Tabela 2. Dentre as 179 (79,9%) crianças que apresentaram defeitos do esmalte, 88 (49,2%) desenvolveram cárie.
Discussão
Nos países subdesenvolvidos, a cárie dentária ainda se constitui em um grande problema de saúde pública. Examinando os dados encontrados nesta pesquisa, numa população de baixa renda, com 43,7% das crianças com cárie, corroboram-se os achados de Cardoso et al. 16, ao considerá-la uma doença polarizada. Esse fenômeno da polarização se caracteriza por acometer uma pequena parte da população, especialmente a menos favorecida, com maior necessidade de tratamento 17.
Comunidades de nível sócio-econômico baixo freqüentemente estão susceptíveis à alta prevalência de cárie 3, considerando que a renda familiar pode afetar a aquisição de alimentos ricos em nutrientes para mães e crianças e, conseqüentemente, alterar o desenvolvimento dentário 7. Nos recordatórios de dieta, ficou patente a baixa ingestão de frutas e verduras, bem como o retardo na introdução de alimentos sólidos, fazendo com que as crianças fossem alimentadas, quase que exclusivamente, por mamadeira. Apesar do crescente uso da amamentação artificial, aliado ao desmame precoce, ter sido relatado como um fator predisponente à cárie 11,18, os achados desta pesquisa corroboram os de Jin et al. 19, nos quais a relação entre amamentação e cárie precoce na infância não foi significativa. É importante ressaltar que a presença de sacarose na mamadeira da maioria das crianças examinadas (71,9%) também não estabeleceu uma relação significativa com a cárie precoce na infância, conforme o relatado por Santos & Soviero 20, Chaves 21 e Jin et al. 19.
Apesar de diversos estudos terem mencionado a alta ingestão de doces 12,19 como responsável pelo desenvolvimento da cárie precoce na infância, a presente investigação evidenciou que a maioria dessas crianças apresentava uma dieta cariogênica, porém sem associação significativa com o desenvolvimento da patologia. Quanto à influência da escovação no surgimento da doença, este não foi considerado um fator significativo, o que também afirmam Lai et al. 22 e Milgrom et al. 23, uma vez que 40,4% das crianças que escovaram os dentes e 53,4% das que não escovaram apresentaram cárie. Já o uso de flúor, relatado na literatura como um dos responsáveis pelo declínio da prevalência de cárie na população 24,25,26, não demonstrou ter ação anticariogênica.
A alta prevalência de cárie encontrada neste estudo é semelhante à encontrada nos trabalhos realizados em Araraquara, São Paulo (46,0%), com crianças de três a quatro anos de idade 11, na cidade do Recife, Pernambuco (47,0%), com crianças aos quatro anos 27, e em Paulínia (45,8%), São Paulo, com crianças de cinco anos 28. Todavia, é superior às encontradas em Goiânia, Goiás (30,1%), com crianças de três anos 29, em Piracicaba (23,6%), São Paulo, com crianças de seis a 36 meses 30 e em Salvador, Bahia (17,6%), com crianças de 0 a 30 meses 31. Vale ressaltar que os critérios de diagnóstico de cárie utilizados pelos autores desses estudos foram similares aos adotados nesta investigação, considerando a cárie como lesão cavitada, segundo os critérios da OMS.
Observando o conceito de Drury et al. 4 sobre cárie precoce na infância e os seus diversos fatores etiológicos e analisando os resultados encontrados nesse estudo, em que o defeito de esmalte foi o único fator etiológico estatisticamente significante no desenvolvimento da cárie, acredita-se ser esse achado de grande relevância, predispondo o elemento dentário ao desenvolvimento da doença, como afirmam Li et al. 14, Lai et al. 22 e Matee et al. 32.
A alta prevalência de cárie registrada nesta pesquisa em crianças de nível sócio-econômico baixo corrobora a hipótese de Horowitz 3, segundo a qual a desnutrição origina defeitos de esmalte, sendo confirmada pelos achados de Chaves 21 ao avaliar o estado nutricional de 228 crianças aos 24 meses de idade. Chaves 21, em seu estudo longitudinal, encontrou que 15,4% das crianças examinadas mostravam algum desequilíbrio nutricional e que 91,4% destas tinham defeitos estruturais no esmalte.
Vale ressaltar que esse resultado não permite esquecer a etiologia multifatorial da doença e anular a importância da dieta, higiene, microbiota e exposição ao flúor, devendo-se observar a qualidade de vida da população de baixa renda e alertar os profissionais de saúde, em especial da odontologia, para as alterações bucais oriundas das desigualdades sociais. Portanto, é necessária a tomada de medidas preventivas em que a visão holística do paciente é de fundamental importância para o seu desenvolvimento.
Conclusões
A existência de defeitos de esmalte foi o único fator estatisticamente significante associado ao desenvolvimento da cárie precoce na infância.
Não se observou associação significativa entre as variáveis comportamentais analisadas (dieta, higiene, uso de flúor, amamentação natural e artificial) e a cárie precoce.
Colaboradores
A. G. Ribeiro realizou a coleta dos dados. A. G. Ribeiro, A. F. Oliveira e A. Rosenblatt participaram da análise dos dados e a redação do texto.
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Endereço para correspondência
A. G. Ribeiro
Faculdade de Odontologia de Pernambuco, Universidade de Pernambuco
Av. General Edson Ramalho 1777, apto. 301, João Pessoa, PB 58038-102, Brasil
Recebido em 25/Out/2004
Versão final reapresentada em 26/Abr/2005
Aprovado em 03/Mai/2005