RESENHAS BOOK REVIEWS

 

 

Erimaldo Nicacio

Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.eri@ess.ufrj.br

 

 

TECNOLOGIAS DO CORPO: UMA ANTROPOLOGIA DAS MEDICINAS NO BRASIL. A. Leibing, organizador. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2004. 304 pp.
ISBN 85-85936-51-7

Nas ciências sociais, a antropologia é uma disciplina que tem trazido importantes contribuições ao campo da saúde pública. Neste, há muito tempo, consolidou-se o entendimento de que as condições concretas de vida das pessoas e das populações determinam seu estado de saúde e de doença. Mais recentemente, por intermédio dos estudos antropológicos, vem crescendo o interesse por investigações sobre a dimensão sócio-cultural da relação do sujeito com o corpo e a doença. Tais investigações mostram, por exemplo, como o recurso ao médico ou o consumo de medicamentos são determinados pelo modo como a cultura modela a percepção que o sujeito tem do corpo e dos seus padecimentos.

Uma nova contribuição nos foi dada, recentemente, por meio do livro Tecnologias do Corpo: Uma Antropologia das Medicinas no Brasil, organizado por Annette Leibing, professora do Instituto de Psiquiatria, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em cada um dos seus onze artigos encontramos, de diferentes maneiras, o pressuposto de que o corpo não é um mero organismo e a doença e o sofrimento psíquico não se reduzem a simples alterações anatômicas, fisiológicas ou neuroquímicas. A relação do sujeito humano com o corpo, a doença e o sofrimento são, acima de tudo, experiências que o envolvem tanto no que ele tem de mais singular quanto no que ele encarna das determinações sociais e culturais mais amplas.

O livro se divide em três partes. Na primeira (Saúde Mental), encontramos estudos que tematizam a relação sofrimento psíquico e cultura. O artigo que abre esta primeira parte, intitulado Ciência, Tecnologia e Saúde Mental, aborda uma determinada forma de sofrimento que emerge nos CTA (Centros de Aconselhamento e Testagem Anônima) de Salvador, Bahia. O que chama a atenção neste trabalho é o registro de um número elevado de pacientes sofrendo de ansiedade em relação à possibilidade de ser portador do vírus HIV e apresentando também sintomas que seriam indicativos da presença de AIDS. O autor constata que a maior parte dos pacientes era soronegativa e retornava para uma segunda e até uma terceira testagem. Isso testemunharia o aparecimento de uma nova população: os portadores de uma "AIDS imaginária". Segundo o autor, os CTA veiculam novas formas de controle dos indivíduos pelo Estado. Os clientes do CTA são treinados para auto-administrarem sua subjetividade, em particular os seus instintos, e o exame de HIV é um instrumento dessa administração. Porém, há uma questão que o artigo apenas tangencia e que merece investigações mais profundas. Trata-se dos múltiplos usos que os pacientes fazem do CTA, como por exemplo, servir-se dele como um espaço em que podem obter acolhimento para os seus conflitos familiares e amorosos e conflitos relacionados às suas orientações sexuais.

O sofrimento psíquico é o objeto privilegiado da psiquiatria, campo que historicamente sempre foi marcado por cisões teóricas; isso é o que nos mostra o artigo de Jane Russo et al., Entre o Corpo e a Mente: a Noção de Indivíduo na Assistência de um Hospital Psiquiátrico Universitário. Este artigo nos oferece um panorama da divisão interna do campo psiquiátrico entre os defensores da psiquiatria biológica e os defensores de uma visão psicodinâmica. Esta hegemonia se expressa na ampla difusão do DSM-III (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders ­ 3ª Edição) 1. Esta edição do DSM marca um ponto de inflexão ao se apresentar como uma classificação descritiva, ateórica, livre de explicações etiológicas. As autoras concluem seu estudo mostrando que a psiquiatria biológica está substituindo o dualismo corpo/mente por uma representação monista da Pessoa, em que o plano físico é a dimensão explicativa para o comportamento geral do sujeito. A conseqüência disso é que se psiquiatria passa a se situar mais confortavelmente como parte da medicina científica, abandona-se nesse campo a consideração das dimensões tanto subjetivas, quanto culturais e políticas da experiência da loucura.

A preocupação das autoras se coaduna com a proposta do trabalho de Cristina Redko, Vivendo a Primeira Experiência da Psicose Através da Religião. A autora mostra, mediante um estudo de caso, como os referentes religiosos são importantes recursos para nomear, descrever e lidar com a experiência psicótica, servindo como um "ponto de apoio" no qual o sujeito busca um sentido para o inexplicável dessa experiência perturbadora. Mas, ao mesmo tempo, a autora percebe que nem sempre a religião serve como ponto de apoio, pois sua função para cada pessoa depende exatamente da economia subjetiva de cada um, isto é, das maneiras idiossincráticas por que cada pessoa reinterpreta os idiomas e referentes religiosos.

Outro tema importante nos dias atuais é a medicalização do sofrimento. O último artigo desta primeira parte Atração Fatal: Trabalho Escravo e o Uso de Psicotrópicos por Povos Indígenas de São Paulo, de Marina Leal, apresenta-nos um quadro impressionante do uso abusivo de medicamentos psicotrópicos por grupos indígenas de São Paulo. Centenas de índios que trabalham como bóias-frias em regime de escravidão encontram-se submetidos a uma situação de intensa exploração econômica. A maioria deles consome, em média, quatro tipos de medicamentos por dia, entre analgésicos, anti-hipertensivos e "remédios dos nervos". A importância dos remédios para essa população é inequivocamente ilustrada por uma das entrevistadas: "pode faltar comida, mas sem remédio a gente não vive (...) remédio aqui virou ouro: quem tem é rico" (p. 93). Mas essa atração exercida pelos remédios pode ser fatal e o artigo nos abre a possibilidade de se discutir rigorosamente duas grandes questões: quais são os determinantes dessa atração? Quais são os efeitos que a tornam fatal?

A segunda parte (Saberes/Conhecimento) inclui os trabalhos que discutem o saber médico e algumas referências teóricas que abrem novas perspectivas de análise do tema do corpo e da doença nas ciências sociais. O primeiro artigo desta parte é o de Kenneth R. de Camargo Jr., intitulado Sobre Palheiros, Agulhas, Doutores e o Conhecimento Médico: a Epistemologia Intuitiva dos Clínicos. O autor nos dá a conhecer resultados de sua pesquisa com professores de clínica médica de duas faculdades de medicina do Rio de Janeiro. Camargo Jr. observa que o modo como se estabelece a relação entre conhecimento médico e prática clínica se materializa na "busca amplamente intuitiva, pragmática, orientada a resultados, por informação relevante (isto é, potencialmente útil na prática)" (p. 139). O autor levanta, corajosamente, a discussão sobre o papel do complexo médico-industrial na seleção e promoção das fontes de informação médica.

No artigo Nem Tudo na Vida tem Explicação: Explorações Sobre Causas de Doenças e Seus Significados, Carlos Alberto Caroso et al. analisam relatos nos quais os entrevistados tentam construir um discurso explicativo sobre as causas de problemas mentais. O artigo aponta que a experiência da doença não se resume a um conjunto de sinais objetivos que indicam uma perturbação do funcionamento do corpo ou da mente de uma pessoa. Ela é algo vivenciado subjetivamente pelo doente, que atribui significado a essa vivência de acordo com suas referências simbólicas. As narrativas sobre as causas da perturbação mental sempre levam em conta as relações sociais e afetivas em que o doente ou aquele que narra a experiência estão inseridos.

Miriam Cristina Rabelo e Paulo César Alves, no artigo Corpo, Experiência e Cultura, empreendem uma reflexão sobre o corpo, relacionando-o ao conceito de experiência. Com base nas filosofias de Heidegger e Merleau-Ponty, os autores apresentam as linhas mestras de uma "filosofia da encarnação" ou embodiment, procurando articular as suas conseqüências para as ciências sociais. Corpo e consciência são redefinidos a partir da sua imbricação, o que nos conduz à noção de "corpo vivido", no sentido de que o corpo é sempre um corpo para um sujeito. Mas esse sujeito não se confunde com a consciência individual, pois ele só existe por encarnar uma cultura e uma tradição que o antecedem.

A terceira parte do livro (Contextos) nos permite concluir que o conhecimento sobre as condições de saúde de um determinado grupo ou população depende da consideração de fatores sociais, políticos, econômicos e culturais. É o que se verifica já no primeiro artigo desta parte, de Telma Camargo da Silva, intitulado Desastre Como Processo: Saberes, Vulnerabilidade e Sofrimento Social, cujo objetivo é analisar a produção do sofrimento social entre os sobreviventes do desastre ocorrido em Goiânia, Goiás, no qual foram vítimas da exposição à radiação de césio 137. Um dos méritos do artigo é o de deslocar a noção de desastre de considerações objetivistas, centradas meramente no impacto físico e na sua magnitude numérica, e propor a inclusão das dimensões sociais, culturais e políticas desse tipo de evento. A autora examina a construção da noção de "vítima oficial", isto é, o grupo considerado apto a receber atendimento, pensões e indenizações. Ela revela, ainda, a luta empreendida pelos rádio-acidentados pela legitimação da dor junto à instituição médica contra a desqualificação das manifestações de sofrimento que não coincidem com as referências diagnósticas dos manuais de medicina.

Na mesma linha, o artigo Saber e Itinerários de Cuidados na Amazônia Brasileira: o Doméstico na Encruzilhada do Espaço Terapêutico, de Francine Saillant, descreve e analisa os saberes e práticas da mulher cabocla amazonense voltados para os cuidados de saúde no interior da família. Ela mostra como as mulheres caboclas são responsáveis pela saúde dos membros da casa, o que envolve desde os remédios caseiros e também recorrer aos diversos agentes de cura que compõem o "espaço terapêutico" desse grupo social. O espaço terapêutico se refere a um sistema de práticas de saúde que inclui os serviços oficiais de saúde e instituições alternativas como igrejas, organizações não governamentais (ONG), curandeiros, medicina popular. A autora retrata esse espaço terapêutico brasileiro como, concomitantemente, mestiço, à medida que articula uma pluralidade de práticas e saberes, e hierárquico, uma vez que oferece um acesso desigual aos serviços oficiais de saúde.

O artigo Contato Iminente, Saúde Desamparada: Conseqüências e Reflexões Sobre o Contato Interétnico com os Índios Guajá do Maranhão, de Louis C. Forline, discute os efeitos do contato dos índios Guajá com a sociedade nacional na sua alimentação e sua saúde. Forline mostra como o contato provocou uma acentuada queda populacional. As epidemias que mais atingiram esses grupos foram a malária e a gripe. Além disso, a transição para a agricultura implicou uma mudança na dieta alimentar. O autor afirma a importância de os representantes da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) conhecerem melhor a etnomedicina desses grupos indígenas, bem como sua visão de doença, saúde, morte e cura. Alerta para o fato de que esses grupos se tornam mais dependentes da assistência do Estado.

Finalmente, o último artigo do livro, Tão Alto Quanto o Morro ­ Identidades Localizadas de Mulheres Hipertensas na Favela da Mangueira, de Annette Leibing e Daniel Groisman, descreve as narrativas de mulheres idosas hipertensas que moram na favela da Mangueira, Rio de Janeiro, analisando a relação entre identidade e localidade. As narrativas em torno do problema da hipertensão traziam no seu bojo uma série de referências à identidade dessas mulheres muito vinculadas à localidade: ser moradora da favela, pertencente a uma tradição. O passado mitificado aparece nas narrativas quando se opõe, por exemplo, a violência do mundo de hoje à tranqüilidade e à paz do mundo de ontem.

Após este percurso, pode-se perceber que as contribuições que todos estes artigos do livro aportam são múltiplas e dizem respeito a problemas enfrentados tanto no âmbito da gestão de serviços e sistemas de saúde, quanto no âmbito da atenção à saúde. E também podem nos ajudar a refletir sobre uma série de impasses nas práticas de prevenção, promoção e recuperação da saúde.

Uma das grandes contribuições que se pode extrair de todos estes trabalhos tem a ver com o encaminhamento de Malinowski ao propor como tarefa do antropólogo a consideração do ponto de vista do nativo. Esse respeito pela palavra do outro que desde então passou a caracterizar a antropologia deve servir de inspiração para nossas práticas em saúde pública, pois para se conhecer os problemas de saúde de um determinado grupo social é necessário, entre outras coisas, valorizar os discursos que seus membros produzem sobre a saúde e a doença e também reconhecê-los como interlocutores legítimos na produção das políticas de saúde. E é por isso que não se pode falar de saúde sem falar de participação popular e democracia. 

 

 

1. American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders. 3rd Ed. Washington DC: American Psychiatric Association; 1980.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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