NOTA RESEARCH NOTE

 

Leishmaniose tegumentar americana humana e canina no Município de Mariluz, Estado do Paraná, Brasil

 

Human and canine American cutaneous leishmaniasis in Mariluz, Paraná State, Brazil

 

 

Maria Valdrinez Campana LonardoniI; Thaís Gomes Verzignassi SilveiraI; Waneska Alexandra AlvesII; Ana Nilce Silveira Maia-ElkhouryII; Umberto Assis Membrive†; Norberto Assis MembriveIII; Gesse RodriguesIII; Nélio ReisIII; Paulo Donizete ZanzariniI; Edna IshikawaIV, V; Ueslei TeodoroI

IDepartamento de Análises Clínicas, Universidade Estadual de Maringá, Maringá, Brasil
IISecretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde, Brasília, Brasil
III16ª Regional de Saúde de Apucarana, Secretaria de Saúde do Paraná, Arapongas, Brasil
IVSeção de Parasitologia, Instituto Evandro Chagas, Belém, Brasil
VNúcleo de Medicina Tropical, Universidade Federal do Pará, Belém, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

Relata-se a ocorrência de um surto de leishmaniose tegumentar americana no ano de 2002, no Município de Mariluz, mesorregião noroeste do Estado do Paraná, Brasil. Das 38 pessoas investigadas, quatro tinham lesões cicatrizadas, 10 em cicatrização e 24 tinham lesões ativas. Dos 126 cães investigados, 20 (15,9%) tinham lesões sugestivas e 24 (19%) tiveram sorologia positiva. Os parasitos isolados de dois pacientes e de três cães foram identificados como Leishmania (Viannia) braziliensis serodema I. Os flebotomíneos coletados foram identificados como Nyssomyia whitmani, N. neivai e Migonemyia migonei. Considerando que a área onde ocorreram os casos é semelhante a outras de colonização antiga no Estado do Paraná, acredita-se que as alterações ambientais e as matas remanescentes propiciam a manutenção do ciclo enzoótico do parasito e a transmissão para o homem e para os animais domésticos, mantendo o caráter endêmico da leishmaniose tegumentar americana.

Leishmaniose Cutânea; Leishmania (Viannia) braziliensis; Psychodidae; Surtos de Doenças


ABSTRACT

An outbreak of American cutaneous leishmaniasis was reported in 2002 in Mariluz, northwestern Paraná State, Brazil. Of 38 humans who were investigated, four had healed lesions, ten showed lesions in the healing process, and 24 had active lesions. Of the 126 dogs, 20 (15.9%) presented suggestive lesions and 24 (19%) had positive serology. Parasites isolated from two patients and three dogs were identified as Leishmania (Viannia) braziliensis serodeme I. The captured sand flies were identified as Nyssomyia whitmani, N. neivai, and Migonemyia migonei. Considering that the region where the cases occurred is similar to other old human settlements in Paraná State, the environmental alterations and remaining forests facilitate the maintenance of the parasite's enzootic cycle and transmission to humans and domestic animals, thereby maintaining the endemicity of American cutaneous leishmaniasis.

Cutaneous Leishmaniasis; Leishmania (Viannia) braziliensis; Psychodidae; Disease Outbreaks


 

 

Introdução

A leishmaniose tegumentar americana vem recrudescendo na América do Sul, destacando-se o Brasil, onde atinge as 27 unidades federadas. É endêmica no Estado do Paraná, com notificação em 289 dos 399 municípios, onde a doença tem sido observada em áreas com elevado grau de antropia, nas quais prevalecem grandes plantações de soja, milho, cana-de-açúcar e pastagens, ao lado de matas remanescentes 1.

A leishmaniose tegumentar americana persiste endemicamente em áreas de colonização antiga 1,2,3,4, mas parece que ainda mantém interdependência com as matas remanescentes modificadas. Nessas áreas os assentamentos rurais despertam a atenção pois podem gerar focos de leishmaniose tegumentar americana devido à ocupação desordenada da terra e à derrubada de árvores, cuja madeira é usada na construção de moradias precárias, normalmente localizadas às margens da mata. Esse fato ocorreu no Município de Mariluz, Estado do Paraná, especialmente no Assentamento Nossa Senhora Aparecida. Os objetivos deste trabalho foram relatar a ocorrência de casos humanos e caninos de leishmaniose tegumentar americana, e identificar os parasitos e as espécies de flebotomíneos envolvidas, numa área de assentamento rural no noroeste do Estado do Paraná.

 

Materiais e métodos

O Município de Mariluz localiza-se a 594Km de Curitiba, entre os paralelos 24º00'00"S e 53º10'00"W, ocupando uma área de 391,53Km2, com altitude de 500m. O clima é subtropical úmido mesotérmico, com temperatura média superior a 22ºC no verão e inferior a 18ºC no inverno. Em junho e julho de 2002 foi investigada a ocorrência de leishmaniose tegumentar americana nas localidades rurais do Assentamento Nossa Senhora Aparecida, Fazenda Santa Gertrudes e Povoado São Luís. Os primeiros casos aconteceram no final de dezembro de 2001 e a partir de março 2002 ocorreu um surto da doença. O diagnóstico laboratorial de leishmaniose tegumentar americana em 38 pessoas com suspeita clínica foi realizado usando-se a pesquisa parasitológica, intradermorreação de Montenegro (IDRM) e imunofluorescência indireta (IFI). A investigação da leishmaniose tegumentar americana também foi realizada em 126 cães utilizando-se a IFI. O material de lesão de casos humanos e de cães foi inoculado em hamsters para o isolamento do parasito. A identificação das amostras de Leishmania foi feita com um painel de 23 anticorpos monoclonais (B2, B5, B11, B12, B13, B18, B19, M2, T3, D13, M11, M12, CO1, CO2, CO3, L1 – doados pela Dra. D. McMahon-Pratt, Yale University, Estados Unidos; WIC 79.3 – doado pelo Dr. D. Snary, Wellcome Foundation, Reino Unido; N2, N3, LA2, V1, WH1, WA2 – doados pela Dra. C. A. Hanham, Yale University, Estados Unidos), de acordo com a técnica de imunofluorescência descrita por Shaw et al. 5, e as amostras foram classificadas em serodemas como definido por Shaw et al. 6. Foram realizadas coletas de flebotomíneos utilizando-se armadilhas de Falcão em abrigos de animais domésticos (pocilgas e galinheiros), das 18:00 às 23:00, durante 3 dias, perfazendo 15 horas de coletas.

 

Resultados

Verificou-se que das 38 pessoas investigadas, 27 eram do sexo masculino e 11 do sexo feminino. A idade dos indivíduos variou de 3 a 77 anos. Quatro tinham as lesões cicatrizadas e 10 estavam em tratamento, com as lesões em processo de cicatrização. Em 24 pacientes as lesões estavam ativas, dos quais 10 estavam em tratamento. As lesões tinham de 15 dias a 7 meses de evolução, conforme o relato dos pacientes. A IDRM foi feita em todos os pacientes, com resultado positivo em 100% deles. A IFI foi realizada em 30 pacientes, dos quais 22 (73,3%) tiveram título >40. Dentre as 24 pessoas com lesão ativa, a pesquisa parasitológica foi realizada em 17, sendo positiva em 15. De três isolados de Leishmania, dois eram Leishmania (Viannia) braziliensis serodema I (Tabela 1).

Dos 126 cães investigados, 75 eram do sexo masculino, com idade entre seis meses e 14 anos. Vinte (15,9%) tinham lesões sugestivas localizadas no focinho (cinco), na orelha (quatro), no escroto e focinho (quatro), no focinho e orelha (um), na orelha e escroto (dois), no escroto (três) e pênis (um). Os títulos da IFI foram > 40 em 24 (19%) cães. Todos os cães com lesão apresentaram títulos > 40 na IFI. Dos vinte cães que apresentavam lesões isolou-se Leishmania de seis. Três isolados foram identificados como L. (V.) braziliensis serodema I (Tabela 1).

As coletas de flebotomíneos realizadas no Assentamento Nossa Senhora Aparecida mostraram a presença de Nyssomyia whitmani, N. neivai e Migonemyia migonei. Nos abrigos de animais domésticos coletaram-se 2.101 flebotomíneos. No lote 133 foram coletados 522 exemplares de N. neivai e 94 de N. whitmani, enquanto no lote 143 foram coletados 1.135 exemplares de N. whitmani, 339 de N. neivai e 11 de M. migonei. No domicílio do lote 133 coletaram-se 10 exemplares de N. whitmani e 10 de N. neivai; na mata foram coletados 39 exemplares de N. neivai e 20 de N. whitmani. No domicílio e na mata do lote 143, apesar das armadilhas de Falcão terem sido instaladas, não se coletaram flebotomíneos.

 

Discussão

No Estado do Paraná a leishmaniose tegumentar americana vem sendo notificada desde 1980 com número crescente de casos. No período de 1980 a setembro de 2004 foram notificados 14.668 casos no Estado do Paraná, que representam 99,6% dos casos ocorridos na Região Sul do Brasil 7. A ocorrência da leishmaniose tegumentar americana em todas as faixas etárias e em ambos os sexos sugere a transmissão domiciliar e peridomiciliar 1,4,8. A constatação de elevado número de flebotomíneos no domicílio e peridomicílio, em áreas onde a presença de matas remanescentes alteradas é uma constante, reforça a hipótese da transmissão do parasito nesses ambientes 1,9,10.

A ocorrência dos casos humanos e caninos, com isolamento de L. (V.) braziliensis, no Município de Mariluz, não difere do que tem sido observado em outras áreas de colonização antiga no Estado do Paraná. Em localidades dos municípios de Terra Boa e Jussara, verificou-se que 19,9% dos indivíduos estudados tiveram ou estavam com leishmaniose tegumentar americana 2 e 18,2% dos cães examinados apresentavam anticorpos anti-Leishmania 3, com isolamento de L. (V.) braziliensis desses animais 11. Trabalhos posteriores 1,4 mostraram que a leishmaniose tegumentar americana foi notificada em 276 dos 399 municípios, especialmente no norte e oeste do Estado, onde as ações antrópicas são intensas, devido ao plantio intensivo de monoculturas, especialmente de milho, soja, cana-de-açúcar e pastagens.

As espécies N. whitmani, N. neivai e M. migonei coletadas na área estudada também têm sido encontradas em outras localidades do Estado do Paraná 9,10. N. whitmani e M. migonei, além de terem importância epidemiológica em outras regiões do Brasil 12,13, têm sido coletadas em grande número em ecótopos artificiais (galinheiros, pocilgas, residências), normalmente nas proximidades de matas remanescentes, em localidades onde ocorreram casos de leishmaniose tegumentar americana. Dados mais recentes mostram que esse fato é muito freqüente em diversos municípios do norte do Paraná 9, sugerindo a participação dessas espécies na transmissão do parasito no Município de Mariluz.

Constataram-se a infecção humana e canina por L. (V.) braziliensis e a presença de N. whitmani, N. neivai e M. migonei na área de assentamento rural, no Município de Mariluz, onde as características ambientais são semelhantes às de outras áreas endêmicas do Paraná. Em áreas alteradas, o ciclo enzoótico do parasito se mantém nas matas remanescentes, propiciando a infecção humana e de animais domésticos, o que explica o caráter endêmico da leishmaniose tegumentar americana.

 

Colaboradores

M. V. C. Lonardoni, W. A. Alves e A. N. S. Maria-Elkhoury contribuíram no delineamento do trabalho, análise dos dados, elaboração do manuscrito e na revisão e aprovação da versão final do texto. U. A. Membrive, N. A. Membrive, G. Rodrigues, N. Reis e P. D. Zanzarini contribuíram no delineamento do trabalho e na aquisição e análise de dados. E. Ishikawa contribuiu na identificação dos isolados e na revisão e aprovação final do texto. T. G. V. Silveira e U. Teodoro contribuíram na análise dos dados, na elaboração do manuscrito e na revisão e aprovação final do texto.

 

Agradecimentos

Esta pesquisa contou com auxílio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (processo n. 400227/99-1), da Fundação Araucária e do Ministério da Saúde.

 

Referências

1. Lima AP, Minelli L, Comunello E, Teodoro U. Distribuição da leishmaniose tegumentar por imagens de sensoriamento remoto orbital, no Estado do Paraná, Sul do Brasil. An Bras Dermatol 2002; 77:681-92.        

2. Silveira TGV, Teodoro U, Lonardoni MVC, Gui-lherme ALF, Toledo MJO, Ramos M, et al. Aspectos epidemiológicos da leishmaniose tegumentar em área endêmica do Estado do Paraná, sul do Brasil. Cad Saúde Pública 1996; 12:37-45.        

3. Silveira TGV, Teodoro U, Lonardoni MVC, Toledo MJO, Bertolini DA, Arraes SMAA, et al. Investigação sorológica em cães de área endêmica de leishmaniose tegumentar, no Estado do Paraná, sul do Brasil. Cad Saúde Pública 1996; 12:89-93.        

4. Silveira TGV, Arraes SMAA, Bertolini DA, Teodoro U, Lonardoni MVC, Roberto ACBS, et al. Observações sobre o diagnóstico laboratorial e a epidemiologia da leishmaniose tegumentar americana no Estado do Paraná, sul do Brasil. Rev Soc Bras Med Trop 1999; 32:413-23.        

5. Shaw JJ, Ishikawa EA, Lainson R. A rapid and sensitive method for the identification of Leishmania with monoclonal antibodies using fluorescein-labelled avidin. Trans R Soc Trop Med Hyg 1989; 83:783-4.        

6. Shaw JJ, Lainson R, McMahon-Pratt D, David JR. Serodemes of the Leishmania braziliensis complex. In: Rioux J, editor. Leishmania: taxonomie et phylogénèse. Applications éco-épidémiologiques. Montpellier: IMEEE; 1986. p. 179-83.        

7. Ministério da Saúde. Série histórica de casos de doenças de notificação compulsória por doença (1980-2003). http://dtr2001.saude.gov.br/svs/epi/situacao_doencas/planilhas_doencas.htm (acessado em 04/Ago/2006).        

8. Castro EA, Thomaz-Soccol V, Membrive N, Luz E. Estudo das características epidemiológicas e clínicas de 332 casos de leishmaniose tegumentar notificados na região norte do Estado do Paraná de 1993 a 1998. Rev Soc Bras Med Trop 2002; 35:445-52.        

9. Luz E, Membrive N, Castro EA, Dereure J, Pratlong J, Dedet A, et al. Lutzomyia whitmani (Diptera: Psychodidae) as vector of Leishmania (V.) braziliensis in Paraná State, southern Brazil. Ann Trop Med Parasitol 2000; 94:623-31.        

10. Teodoro U, Silveira TGV, Santos DR, Santos ES, Santos AR. Freqüência da fauna de flebotomíneos no domicílio e em abrigos de animais domésticos no peridomicílio, nos municípios de Cianorte e Doutor Camargo, Estado do Paraná, Brasil. Rev Patol Trop 2001; 30:209-24.        

11. Lonardoni MVC, Teodoro U, Arraes SMAA, Silveira TGV, Bertolini DA, Ishikawa EAY, et al. Nota sobre leishmaniose canina no noroeste do Estado do Paraná, sul do Brasil. Rev Saúde Pública 1993; 27:378-9.        

12. Queiroz R, Vasconcelos IAB, Vasconcelos AW, Pessoa FAC, Sousa RN, David JR. Cutaneous leishmaniasis in Ceará in Northeastern Brazil: incrimination of Lutzomyia whitmani (Diptera: Psychodidae) as a vector of Leishmania braziliensis in Baturité municipality. Am J Trop Med Hyg 1994; 50:693-8.        

13. Pita-Pereira D, Alves CR, Souza MB, Brazil RP, Bertho AL, Barbosa AF, et al. Identification of naturally infected Lutzomyia intermedia and Lutzomyia migonei with Leishmania (Viannia) braziliensis in Rio de Janeiro (Brazil) revealed by a PCR multiplex non-isotopic hybridisation assay. Trans R Soc Trop Med Hyg 2005; 99:905-13.        

 

 

Correspondência
M. V. C. Lonardoni
Departamento de Análises Clínicas
Universidade Estadual de Maringá
Av. Colombo 5790
Maringá, PR 87020-900, Brasil
mvclonardoni@uem.br

Recebido em 01/Fev/2006
Versão final reapresentada em 06/Jul/2006
Aprovado em 26/Jul/2006

 

 

† Falecido

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br