RESENHAS BOOK REVIEWS
Vera Lucia Edais Pepe
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. verapepe@ensp.fiocruz.br
"AO PERSISTIREM OS SINTOMAS, O MÉDICO DEVERÁ SER CONSULTADO". ISTO É REGULAÇÃO? Nascimento AC. São Paulo: Sociedade Brasileira de Vigilância de Medicamentos; 2005. 152 pp.
ISBN: 85-88284-07-3
Esse livro, fruto direto de Dissertação de Mestrado, realizado no Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IMS/UERJ), sintetiza uma reflexão atualizada e necessária sobre a regulação no campo da saúde, mais especificamente da regulação da propaganda de medicamentos com suas implicações e resultados. Mas não se resume a isso. Ele conjuga também a experiência de vida profissional na informação e comunicação em saúde com a militância na construção da Reforma Sanitária Brasileira como processo civilizatório, uma vez que a informação e a comunicação exercem papéis fundamentais na construção da cidadania e na transformação social. Exemplo típico de uma obra indissociável de seu autor: a leitura do livro nos remete ao jornalista, que, na coordenação do programa Reunião, Análise e Difusão de Informações sobre Saúde (RADIS) importante veículo de democratização da informação na saúde , buscava sempre soluções criativas, muitas vezes para além da tradição "científica". Se Eduardo Galeano nos diz que "somos lo que hacemos para cambiar lo que somos", autor e obra nos lembram todo o tempo que é na busca da transformação do status quo que nos transformamos enquanto cidadãos e que, neste processo, a informação é um instrumento imprescindível.
O livro parte do pressuposto de que o medicamento, visto como mercadoria, é uma unidade que, em consonância com a concepção marxista, possui "valor de uso" e "valor de troca", além de ser um "instrumento de acumulação de poder e capital". Não é por acaso que é alta a rentabilidade da indústria farmacêutica no Brasil, se comparada a outros setores industriais, embora isso não signifique um maior acesso da população brasileira aos medicamentos de que necessita, nem que o seu uso seja racional.
Abordando a propaganda de medicamentos direcionada ao consumidor, a frase título do livro, "Ao persistirem os sintomas, o médico deverá ser consultado", constante na Resolução n. 102, de 30 de novembro de 2000, da Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), resume a crítica do autor ao tipo de regulação efetuada sobre a propaganda de medicamentos, veiculada pela grande mídia à população. É como um estímulo à automedicação: tome o remédio primeiro, se não funcionar procure o médico! O autor propõe que ela seja substituída pela frase: "Antes de consumir qualquer medicamento, consulte um médico".
Ainda que a grande mídia só possa fazer propaganda dos medicamentos de venda livre, os preceitos do Uso Racional de Medicamentos nos informam ser importante o acesso ao sistema de saúde antes do uso indevido de medicamentos. Ainda mais quando este uso ocorre como tão bem demonstrou Temporão 1 sob a influência da propaganda, que faz do indivíduo um consumidor sem capacidade de discriminar entre as opções disponíveis para seu sofrimento. A influência da propaganda costuma ser de tal importância, que a Organização Mundial da Saúde 2, em sua 41ª Assembléia Mundial, fez recomendações aos seus estados membros sobre os Critérios Éticos para a Promoção de Medicamentos.
Nesse livro, o autor elenca os principais mecanismos de regulação da propaganda de remédios no Brasil. Analisa cem peças publicitárias de medicamentos veiculadas em rádio, televisão, jornais, revistas, folhetos e outdoors, no período de outubro de 2002 a julho de 2003, coletadas no Rio de Janeiro e em Juiz de Fora por equipes de estudantes e professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Essas equipes fazem parte do Projeto de Monitoração da Propaganda e Publicidade de Medicamentos, instituído pela ANVISA numa tentativa de monitorar esse tipo de propaganda no Brasil. Por um lado, brinda-nos com o conhecimento da forma de atuação das indústrias produtoras de medicamentos no que diz respeito ao estímulo ao consumo de seus produtos pela população e o respeito com o qual tratam a legislação sanitária referente ao tema. Por outro lado, informa-nos sobre a efetividade do modelo regulatório na direção desejada: a de promover o uso racional de medicamentos e de minimizar os riscos à saúde pelo consumo indiscriminado e inadequado dos medicamentos.
A regulação, feita a posteriori, não protege a população da (des)informação veiculada nas propagandas de medicamentos, difundidas pelo rádio e pela televisão, geralmente em horários de alta audiência. Em primeiro lugar, todas as cem propagandas analisadas desrespeitavam a legislação sanitária. O autor demonstra, em um exercício de simples raciocínio, duas importantes falhas nesse tipo de regulação. A primeira delas refere-se ao tempo entre a identificação da propaganda irregular e a ação do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária. Sendo esse tempo maior que um mês, ele é maior do que o tempo necessário para que a propaganda "dê o seu recado". A segunda delas diz respeito à certa "monetarização" do risco, sem que ele seja minimizado. Há uma arrecadação crescente em multas pelo Sistema Nacional de Vigilância Sanitária que, entretanto, significa muito pouco em relação ao que é gasto na veiculação da propaganda na grande mídia. Ainda que o número de multas e o valor arrecadado sejam maiores ano a ano, isto não significou uma maior adequação à legislação sanitária, visto não ter havido diminuição das irregularidades existentes na propaganda de medicamentos. Ressalte-se que, no universo de cem peças de propaganda, 21 delas eram de uma mesma empresa produtora.
Os medicamentos mais anunciados foram os analgésicos, os antigripais, os tônicos/fortificantes/vitaminas, os antiácidos, os expectorantes/antitussígenos e os emagrecedores. Os artigos da Resolução n. 102/2000 da Diretoria Colegiada da ANVISA mais descumpridos foram o que obriga constar de forma clara e precisa a contra-indicação principal do medicamento e o que veda que a publicidade sugira diagnósticos, aconselhando um tratamento correspondente. Dessa forma, a propaganda não apenas "indica", como não "contra-indica" nos casos em que há risco à saúde. A não-advertência ao consumidor sobre os efeitos adversos e as precauções quanto ao uso dos medicamentos leva o autor a concluir que a veiculação de informações sobre possíveis riscos ou agravos à saúde é vista, sob o ponto de vista publicitário, como uma contrapropaganda do produto.
Os termos mais utilizados nas propagandas de medicamentos na grande mídia foram, dentre outros: emagrecer/emagrecedor, dor, alivia, alívio imediato, saúde, rápido(inho), problema e natural. Pode-se aqui identificar o que vem sendo estudado por alguns autores do campo da antropologia da saúde: o aspecto "mágico" dos medicamentos. A mensagem passada para a população é de que estes, além de representarem a própria saúde, agem de uma maneira "mágica". Assim, ao tomar um medicamento, o cidadão toma um pedaço de saúde e acaba com seu problema de uma forma rápida e imediata.
Um outro aspecto selecionado pelo autor é o fato de a indústria, a publicidade e a mídia identificarem um "mercado resistente" aos produtos de origem química, mercado este que simboliza os medicamentos oriundos da síntese química como a negação do que seria "natural". Torna-se necessário incluir, em sua publicidade, o que é "natural", com o objetivo de afastar a possibilidade de risco advinda de seu uso e dar a falsa impressão de que tais medicamentos podem ser usados sem que haja nenhum possível comprometimento de sua saúde.
Um detalhe é importante na veiculação da propaganda de medicamentos voltada ao grande público. Elas se utilizam de apresentadores de rádio e televisão, artistas e atletas famosos para induzir o consumo de determinados medicamentos, buscando uma identificação do indivíduo com o padrão de beleza e/ou desempenho físico desses garotos-propaganda, ou se utilizando da credibilidade que eles possuem perante o grande público.
Em suas conclusões, Álvaro Nascimento destaca a fragilidade do cidadão em face dos interesses do mercado farmacêutico. Indica a necessidade de se construírem instrumentos capazes de tornar a regulação pública do setor de publicidade e propaganda de medicamentos mais efetiva e consoante com a atual Política Nacional de Medicamentos, cujos objetivos incluem o acesso a medicamentos de qualidade e seu uso racional.
Entre os instrumentos, pode-se destacar a construção de um novo modelo regulatório, que assegure a disseminação de informações cientificamente embasadas, por meio da articulação de "...interesses dos segmentos industriais, dos profissionais de saúde responsáveis pela prescrição e dispensação, além de representantes dos órgãos de defesa do consumidor e gestores do SUS...". Além de um modelo regulatório mais efetivo, são necessárias políticas globais que utilizem instrumentos de informação e comunicação voltados para o uso racional de medicamentos.
Em resumo, trata-se de um livro de interesse a todos os profissionais da saúde coletiva por abordar de forma acessível um tema fundamental ao sistema de saúde. As implicações da propaganda de medicamentos para a população, feita de acordo com os interesses da indústria farmacêutica, das agências de publicidade e das empresas de comunicação vis-à-vis às possibilidades da regulação sanitária, por meio do Estado, dão-nos a dimensão dos desafios a serem enfrentados na qualificação da informação veiculada aos cidadãos brasileiros e na proteção de sua saúde.
1. Temporão JG. A propaganda de medicamentos e o mito da saúde. Rio de Janeiro: Graal; 1986.
2. Organización Mundial de la Salud. Criterios éticos para la promoción de medicamentos. http://www.opas.org.br/medicamentos/docs/who-wha-41-17.pdf.