RESENHAS BOOK REVIEWS

 

 

Letícia Erig Osório de Azambuja

Cátedra UNESCO de Bioética, Universidade de Brasília, Brasília, Brasil

 

 

AS RAÍZES CRISTÃS DA AUTONOMIA. Selleti JC, Garrafa V. Petrópolis: Editora Vozes; 2005. 120 pp.
ISBN: 85-326-3221-1

As Raízes Cristãs da Autonomia é fruto de uma pesquisa desenvolvida por dois autores qualificados para escrever sobre o assunto: Jean Carlos Selleti, um respeitado pastor presbiteriano, e Volnei Garrafa, professor titular do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade de Brasília. De forma didática, o livro apresenta um conceito contemporâneo de autonomia sob a ótica de um país de cultura latina, buscando revelar as verdadeiras raízes históricas desse conceito, originadas ainda no início da Idade Média. O tema é denso e bem explorado pelos autores, que brindam os leitores com citações pertencentes a grandes pensadores da História, como Santo Agostinho, Martinho Lutero, Immanuel Kant e Max Weber, entre outros.

O embasamento empírico da obra é dado por um trabalho de pesquisa, parte da Dissertação de Mestrado em Ciências da Saúde de Selleti, orientada pelo professor Garrafa. Nesta obra, bioética e religião se encontram unidas pelas origens históricas da autonomia, um tema especialmente caro ao campo da saúde pública e coletiva. O livro passa longe de ser leitura exclusiva para religiosos; o tema é interessante para as mais diversas áreas e seu conteúdo é apresentado com a neutralidade que a ciência exige. A quantidade de informações relevantes, sustentada em uma bibliografia adequadamente documentada fará, certamente, com que caia no gosto de todos.

Os autores, logo na introdução, traçam o panorama histórico do início do processo de formação da bioética. O cenário ­ Estados Unidos da América, início dos anos 70 ­ será um dos pontos-chave para a discussão do tema proposto. A bioética, na mesma década em que nasce, também é consolidada por meio de quatro princípios definidos e universalizados: autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça. Dentre os quatro, a autonomia acabou tendo seu peso maximizado com relação aos demais, assumindo, na prática, papel de destaque nos países de cultura anglo-saxônica.

Ainda na introdução, é apresentada a pesquisa que serviu como suporte empírico da obra: um estudo com 16 pastores das quatro correntes tradicionais do protestantismo ­ presbiteriana, batista, metodista e luterana ­ proporcionou aos autores os dados que procuravam. Desta forma, Selleti & Garrafa constataram que a visão protestante estadunidense, individualista, da autonomia não se repetia na América Latina, mais precisamente no Brasil. Observaram, ainda, que o componente cultural humanista acaba tornando a visão latina de autonomia mais ecumênica no sentido de uma mescla do protestantismo com o catolicismo, onde os temas coletivos têm preferência em face de decisões individuais.

No primeiro de seus quatro capítulos, o livro traz a construção histórica da autonomia em meio a premissas filosóficas e teológicas, a maioria com centenas de anos, muito antes do surgimento da bioética, ou mesmo da Reforma Protestante. Os autores mostram que as verdadeiras raízes da autonomia são semeadas dez séculos antes da ruptura entre catolicismo e protestantismo. Dentre as origens mais remotas, as controvérsias ideológicas quanto ao livre-arbítrio, entre Santo Agostinho e Pelágio, parecem ser as mais antigas.

A apresentação do princípio da autonomia sob a perspectiva da ética cristã é feita em um segundo capítulo. Os autores mostram de que maneira a teologia de reformadores, como Martinho Lutero e João Calvino, modificou os valores do cristianismo até então existentes. Novos conceitos trazidos pela Reforma, como o da predestinação do indivíduo, afloraram a subjetividade e o individualismo protestante. Citar um, dentre os vários subtítulos pertinentes à obra, já dispensa maiores explicações: "A Moralidade Protestante como Gênese da Autonomia?".

A pesquisa cresceu e acabou levando os autores à análise de outros referenciais também relacionados ao tema. Em um terceiro capítulo, que avança na temática abordada e relaciona a autonomia com o compromisso, temas como alteridade, liberdade e crescimento interpessoal são apresentados em analogia com outros termos de origem historicamente católica, como a solidariedade, a compaixão e a misericórdia. Além destas comparações, os autores ainda discorrem sobre uma espécie de ética do compromisso historicamente originada pela perspectiva latina de preocupar-se também com "o outro".

No capítulo final, Selleti & Garrafa chamam a atenção para uma questão preocupante: a tentativa de universalização da bioética sob a ótica unilateral dos países ricos. Essa universalização consiste na redução da bioética a questões biomédicas e biotecnológicas, atendendo aos interesses apenas dos países já desenvolvidos. Os países pobres ainda sofrem com problemas que, há muito tempo, já foram solucionados por esses países, principalmente no campo sanitário. Os autores defendem um foco de atuação bioético mais abrangente, assim como a necessidade de uma postura científica e política mais engajada na resolução dos problemas sociais concretos constatados nos diferentes países do Hemisfério Sul, entre eles as questões de acesso a sistemas adequados de saúde pública e a medicamentos essenciais.

Após a análise desta obra, fica fácil compreender porque uma bioética, que inicialmente aspirava ser única e universalizada, acabou se transformando em "bioéticas", contextualizadas e, no sentido latino apresentado pelo livro, preferencialmente comprometidas com a realidade onde estão inseridas.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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