RESENHAS BOOK REVIEWS
Paulo César Alves
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil. paulo.c.alves@uol.com.br
A CURA DA RAÇA: EUGENIA E HIGIENISMO NO DISCURSO MÉDICO SUL-RIO-GRANDENSE NAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX. Silveira E. Passo Fundo: Editora Universitária de Passo Fundo; 2005. 173 pp.
ISBN: 85-7515-321-8
Uma das questões recorrentes nos estudos sobre a constituição da identidade brasileira na passagem do século XIX para o XX diz respeito ao processo da filiação de correntes do pensamento nacional a similares europeus. Assim, termos como "influência", "assimilação", "imitação" e "adaptação" povoam esses trabalhos. Tomado de forma acrítica, o postulado da "absorção das idéias estrangeiras" pode nos levar a uma concepção enganadora: a de que o Brasil não seria nada mais do que um entreposto de produtos culturais provindos do exterior. Sem um exame mais cuidadoso em relação ao significado de "cópia", a própria discussão sobre a identidade brasileira perderia muito do seu significado. Se há uma identidade nacional, é preciso mostrar em que consiste o nacional. Além do mais, sem essa preocupação, como seria possível diferenciar um autor de um outro? É necessário observar que qualquer processo de "assimilação" é realizado mediante uma determinada fusão entre elementos considerados pertinentes a um sistema teórico de partida e o contexto ou "tradição" sócio-político para o qual as idéias são importadas. O livro do historiador gaúcho Éder Silveira tem este mérito: caracterizar a originalidade das leituras de textos europeus em território nacional. O principal argumento que está subjacente no seu estudo é o de que a incorporação de idéias européias deu-se de forma seletiva e plenamente instrumentalizada.
O objetivo principal do livro é refletir como a intelectualidade brasileira na passagem do século XIX para o XX estabeleceu uma utopia do ideal nacional a ser realizada no futuro. Procurando identificar e caracterizar as trilhas pelas quais a "Geração de 1870" construiu narrativas sobre o ser brasileiro, o autor analisa como o discurso médico, articulando a eugenia e o higienismo, possibilitou (re)pensar a "identidade nacional". O argumento fundamental é o de que, naquele período, as "construções narrativas" sobre a identidade brasileira ressaltavam a "diferença" na fixação de papéis sociais e de estereótipos de amplas camadas da população. Essas narrativas eram sustentadas pelo evolucionismo darwiniano e pelo "racismo científico" da época, contudo a incorporação de idéias estrangeiras pelos nossos intelectuais deu-se por processos de "misturas e hibridações" (segundo as palavras de Serge Gruzinski). Com isso, a intelligentsia brasileira terminou por criar um discurso ambíguo, em decorrência da originalidade com que o projeto homogeinizador dos modelos eurocêntricos foi introduzido em uma realidade social não homogênea um "entrelugar", no dizer de Homi Bhabha , constituída pela presença de sujeitos diferenciados que tiveram suas trajetórias cruzadas em um mesmo espaço e tempo. Nesse processo, o discurso médico higienista-eugenista procurou apontar caminhos para extinguir tais diferenças e, assim, alçar o país às condições de "civilização". "Ainda que discordassem quanto aos caminhos a serem percorridos, os médicos brasileiros, dispostos a não perder as esperanças em relação à reabilitação do brasileiro, elegeram como alvo a doença, ou seja, há uma possibilidade de reabilitação, na medida em que a doença simboliza a transitoriedade, ao contrário da degeneração racial, que significa condenação perpétua ao atraso" (p. 159).
O trabalho está dividido em três capítulos. O objetivo do primeiro, Artefatos, é apresentar brevemente os nexos entre a ciência e a cultura da época. Por intermédio das teorias evolucionistas e raciológicas, a biologia tornou-se a ciência paradigmática do período, constituindo-se como fonte germinal para a concepção eugênica. A própria idéia de nacionalidade era uma variação antropológica do conceito de raça, "dessa forma naturalizando a cultura e compreendendo-a dentro de um espectro cientificista e racializado, que tornou possível a identificação de tipos raciais e de escalas valorativas entre eles" (p. 32). Detendo-se com mais cuidado nos olhares de Gobineau, Louis Agassiz e Darwin em virtude da influência que esses cientistas exerceram na reflexão racial desenvolvida no Brasil , Éder Silveira volta-se para a questão da hereditariedade, particularmente para a de "herança miscível" (idéia de que a evolução, a médio espaço de tempo, deveria levar à igualdade entre as raças pela supressão gradual da diferença na marcha evolutiva). Tal concepção "salvaria" a mestiçagem, responsável pela ruína de uma nação. Assim, pela voz da ciência e em nome do progresso humano, era possível eliminar tecnicamente as "vidas indignas" dos cidadãos, sem que isso fosse considerado um homicídio. Para tanto, seria necessário que o Estado e a sociedade tomassem certas providências, como a de desenvolver uma "política eugenista de imigração". Em um país como o Brasil, marcado pelo olhar lúgubre sobre a composição racial como entrave ao progresso, a teoria da "herança miscível" despertou expressiva euforia na nossa produção literária e científica do final do século XIX.
O segundo capítulo, Contatos, focaliza a complexa entrada, no território brasileiro, das teorias "científicas" sobre o racismo e a forma como os padrões culturais e morais do país constituíram um desafio às lógicas mestiças do pensamento europeu. É o capítulo central do estudo.
Ao discutir o significado do "tipo brasileiro essencial" sob bases "raciais" e "singularidades do meio tropical", a intelectualidade brasileira propôs um conjunto de projetos de intervenção social, passando, com isso, a chamar a atenção para a necessidade de se conhecer melhor o interior do país e seus complexos processos de mestiçagem. Euclides da Cunha foi pioneiro nesse processo. O discurso médico-eugênico e higienístico foi tomado como um modelo científico para diagnosticar a nação. Desenvolvido pelo inglês Francis Galton, o discurso eugênico estava assentado na tese de que o papel da hereditariedade era fundamental para a formação de "tipos humanos diferenciados" e, conseqüentemente, para a degeneração. Sob a orientação dos cientistas, caberia ao Estado estimular a união entre casais com saúde perfeita (eugenia positiva) e determinar os grupos dos "anormais" ou degenerados, restringindo-lhes o casamento ou mesmo esterilizando-os (eugenia negativa). Mas, como argumenta Éder Silveira, ao contrário da idéia de degeneração racial que está implícita nas concepções eugenistas-higienistas (portanto, uma condenação perpétua ao atraso), a intelectualidade brasileira viu nesse discurso uma alternativa salvacionista para os males provocados pelas condições raciais existentes. Ou seja, o atraso brasileiro era fundamentalmente uma questão de doença (e descaso) uma questão transitória, médica e política, portanto , e não de degeneração racial. "Optar pela doença significava apostar na reversibilidade dos 'problemas brasileiros'" (p. 96). Assim, ao eleger a doença como a principal problemática do país, a intelectualidade nacional reabilitou as esperanças de se construir um novo e sonhado "ser brasileiro", desde que o Estado, sob o olhar atento dos médicos, desenvolvesse uma política de "tratamento" e "cura". Monteiro Lobato, através dos seus livros Urupês (1915) e Problema Vital (1918), juntamente com a criação da Liga Pró-Saneamento e da Sociedade Eugênica de São Paulo, ambas fundadas em 1917, são exemplos significativos dessa posição. Em Problema Vital (obra que reúne um conjunto de ensaios jornalísticos), as atenções de Lobato estavam voltadas para identificar os agentes causadores das doenças que acometiam o caboclo. Como um ser doente e não degenerado o caboclo deveria ser medicado e, sendo purificado, poderia exibir os seus atributos positivos. Caberia ao Estado urgentemente reabilitar esse tipo brasileiro. Portanto, a "questão posta era sanear ou perecer" (p. 95). A proposta salvacionista era dada, portanto, pela voz da ciência médica entrelaçada com a ação política. Trata-se de uma tese que representava uma saída para o dilema em que a intelectualidade brasileira se encontrava no momento: "ou doença ou incapacidade racial". Ao optar pela doença do "Jeca", apontava-se também pela reversibilidade dos "problemas nacionais", contrariando um dos postulados essenciais do "determinismo racial" e da teoria galtoniana: a hierarquia entre "raças diferentes".
A crença de que era possível regenerar física e moralmente uma raça não ficou restrita ao campo. A cidade também apresentava "fatores disgênicos", como a libertinagem, os vícios, a luxúria, o desregramento moral e as más condições higiênicas. Como tal, era necessário ser "policiada eugenicamente". Esse discurso, desenvolvido principalmente pelos médicos Renato Kehl e Amadeu Amaral, terminou por refugiar-se muito mais em argumentos pedagógicos e de forte cunho moralizador do que propriamente "científicos".
No decorrer da Primeira República, os discursos em torno da identidade nacional, elaborados com base nos conceitos de raça, meio e doença, marcados por forte acento moral, adquirem novas formulações, as quais não necessariamente entraram em disputa com as existentes. Há uma fragmentação do discurso eugênico dentro do próprio "movimento", o que demonstra tanto a inexistência de sínteses de idéias, quanto a associação de noções contraditórias para conceber as fabulações acerca da "identidade nacional". Exemplos marcantes dessa multiplicidade de vozes podem ser encontrados no Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia (1929) e na literatura ficcional. No referido Congresso, Edgar Roquette-Pinto e Fróes da Fonseca, dois antropólogos do Museu Nacional, apontaram para a impossibilidade de se pensar a eugenia, em moldes galtonianos, como um projeto viável para a nação. Para eles, o caráter racialmente mestiço da população brasileira não era um impeditivo ao florescimento do progresso social. O problema nacional era de ordem organizacional o abandono das populações do interior do país, ainda expostas a doenças seculares. Portanto, uma questão de política sanitária e educativa. Por sua vez, a literatura ficcional representada pelo romance Memórias sentimentais de João Miramar (Oswald de Andrade) ironiza a construção de uma nacionalidade fundada nos corpos viris.
O capítulo três, Conexões, está dedicado a pensar as concepções eugênicas e higienistas no Rio Grande do Sul. Em uma região de forte imigração "branca", esse estado representava, para grandes setores da intelectualidade brasileira como Silvio Romero, Nina Rodrigues e Oliveira Vianna , a realização de um "projeto de arianismo tropical". Para eles, o Rio Grande do Sul estaria, em poucas décadas, à frente dos demais Estados brasileiros por causa do rápido branqueamento racial provocado pelo cruzamento das "raças inferiores" (pretos e índios) com o grande volume de "elementos da raça superior" (no caso, os alemães) que ingressavam na região. O caráter antitético do gaúcho e do sertanejo foi realçado por Euclides da Cunha. Embora considerasse o sertanejo como o cerne da nacionalidade brasileira, o autor de Os Sertões viu no gaúcho a encarnação épica de um tipo nacional superior por não conhecer "os horrores da seca e os combates cruentos com a terra árida e exsicada". No entanto, o processo de branqueamento no Rio Grande do Sul era também motivo de preocupação, pois a intensa miscigenação levaria a um desequilíbrio regional, o que poderia causar a independência dos estados do sul em relação ao resto do país.
Tendo em vista a singularidade "racial" da região e o "narcisismo do gaúcho" (expressão de Gilberto Freyre), era de se esperar que houvesse um bloqueio da intelectualidade sulina à reflexão crítica sobre a importância da ação saneadora nesse estado. Mas, como argumenta Éder Silveira, a análise dos discursos elaborados pelos médicos gaúchos revela o contrário. A "institucionalização do saber médico" no Rio Grande do Sul caracterizou-se pelo influxo do pensamento eugenista e higienista dirigido principalmente para a cidade, procurando torná-la um espaço totalmente racionalizado, livre das infecções, das moléstias e da sujeira. Caberia ao Estado assumir a função de defensor da saúde pública, em prol do desenvolvimento da força produtiva. "Aos olhos dos higienistas-eugenistas, cumpria que o Estado brasileiro centralizasse as decisões sobre saúde pública, tornando, assim, o povo brasileiro "hígido"; logo, mais apto ao trabalho, o que deveria representar um ganho ao país em condições materiais para a busca do 'progresso'. A exigência era de que, na prática, o Estado usasse a força combinada a campanhas de 'conscientização sanitária'. (...) A higiene e a eugenia eram vistas como saberes que deveriam ser naturalizadas pela população" (p. 144-5). Havia no discurso médico uma intensa preocupação com a educação dos jovens, pelo reerguimento moral e preservação das futuras gerações. Para alcançar o ideal de perfectibilidade humana, seria necessário garantir a hereditariedade, seja mediante a conscientização da população, seja pela ação enérgica do Estado. Assim, preocupados em criar um "tipo superior de homem", os médicos gaúchos propunham a articulação de dois fatores: cuidado com a infância, mediante a puericultura, e as campanhas de "esclarecimento da população". A escola passa a ser vista como um local tanto da observação, quanto da ação higienizadora e moralizadora. O discurso higienista-eugenista deslocou, portanto, a análise do determinismo racial para questões da doença e desigualdades sociais. Nesse aspecto, consciência sanitária tornava, na época, o Rio Grande do Sul ainda mais participante da nação, na medida em que unificava o sul e os demais Estados não só pelas doenças, que atacavam igualmente a todos, mas também pela consciência de que a cura de todos colocaria o país nos trilhos do "progresso".
Por último, cabe observar que o texto de Éder Silveira tem, como ele mesmo observa, características de um "ensaio", no qual, lidando com fragmentos ao invés de completudes, busca-se a abertura de problemas e não conclusões definitivas.