RESENHAS BOOK REVIEWS
Adriana EstevãoI; Marcos BagrichevskyII
IDepartamento de Ciências da Saúde, Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus, Brasil
IIDepartamento de Ciências da Saúde, Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus, Brasil marcos_bagrichevsky@yahoo.com.br
EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE. Pereira IB, Ramos MN. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006. 120 pp.
ISBN: 85-7541-093-8.
Educação profissional em saúde: perspectivas para além de uma formação técnica
A obra em apreciação de autoria de Isabel Brasil Pereira & Marise Nogueira Ramos, produzida no formato pocket, tem vários méritos. O texto emprega linguagem clara e acessível. Mas, talvez a principal virtude seja a de trazer à tona a dimensão política que subjaz a educação profissionalizante em saúde. As autoras lançam um olhar crítico sobre conceitos e ideologias imbricados nesse tipo de formação com freqüência, relegada ao âmbito de questões meramente técnicas ou legais através de um percurso conjuntural mais amplo, remontado no decorrer do livro. Este é o elogiável compromisso explicitado para o leitor.
Ao longo dos cinco capítulos que estruturam a obra, as autoras concebem o processo educativo do trabalhador técnico em saúde como instância engendrada nas relações sociais da vida cotidiana, em suas perspectivas históricas, políticas, culturais e econômicas. Ressaltam o entendimento da sociedade como lugar de (re)criação e espaço de resistência humana e atribuem ao projeto central descrito no compêndio um papel importante de compromisso público com tais objetivos.
No primeiro capítulo destaca-se a preocupação com o contexto de preparação do trabalhador da saúde. Duas expressões são centrais: "formação profissional" e "qualificação profissional". Segundo Pereira & Ramos, a primeira é mais recente, criada para designar processos históricos que dizem respeito à capacitação para e no trabalho. Nesse enfoque particular, a discussão se desdobra em dois tópicos: "trabalho como princípio educativo" e "formação politécnica". No âmbito da formação profissional estão inseridos sentidos e concepções diversas sobre a qualificação profissional. Advogam que esta precisa ser vislumbrada também na sua relação com a cultura e apontam o taylorismo como um elemento marcante no processo de disciplinarização e despolitização dos trabalhadores. As autoras argumentam ainda que há uma necessidade urgencial de formação profissionalizante (de nível médio e fundamental) desses atores da saúde em regiões longínquas do Brasil, para suprir a falta de médicos (e outras profissionais afins, de nível universitário) em serviços de saúde pública.
Por último, lembram que desde a 7ª Conferência Nacional de Saúde houve preocupação em relação à qualidade da formação desses trabalhadores e que, a partir daí, a Secretaria de Recursos Humanos do Ministério da Saúde traçou diretrizes gerais, para tal fim. Foi dentro desse panorama que surgiu o Programa de Agentes de Saúde no Ceará, em 1987, primeira experiência em ampla escala de utilização das atividades dos agentes comunitários de saúde (ACS).
No segundo capítulo, a abordagem recai sobre um breve histórico das instituições. São enfatizados os educadores da saúde e suas lutas por projetos a favor das instâncias públicas, chamadas a responder pela educação profissionalizante de níveis médio e fundamental. Destaca-se o debate sobre o Projeto de Formação em Larga Escala (criado na década de 1980 para viabilizar escolas e centros formadores do Sistema Único de Saúde), incluindo a proposta político-pedagógica de uma das unidades técnico-científicas da Fundação Oswaldo Cruz, a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV).
Na luta pela profissionalização desses trabalhadores, configurou-se a defesa pelas Escolas Técnicas do SUS (ETSUS), destinadas às pessoas que já atuavam nos serviços. O movimento pelas ETSUS foi ganhando força à medida que os gestores públicos ampliaram o entendimento de que uma assistência de qualidade passaria necessariamente pela melhoria na formação daqueles que ali estavam alocados.
No terceiro capítulo intitulado Particularidades das Relações entre Trabalho e Educação na Conformação do Estado Brasileiro, são tecidas críticas à visão funcionalista de escola, por trazer consigo o risco de se considerar a educação como redentora da humanidade. Deslocar para o plano educacional a responsabilidade pelos "desajustes" e atrasos sociais, seria no mínimo ingenuidade, pois não se pode ignorar a problemática das iniqüidades que se coloca, de maneira inexorável, no plano macroeconômico e político.
No capítulo 4, discutem-se questões da educação profissional em saúde no "Brasil neoliberal", sob a égide do Projeto de Profissionalização da Área de Enfermagem (PROFAE). São formuladas observações sobre a referida proposta que teve como base o Projeto Larga Escala, porém submetido a uma nova regulamentação educacional. Além da competência formal, de caráter técnico-científico, esperava-se que os trabalhadores desenvolvessem competência política para integralização do cuidado profissional no SUS. Segundo as pesquisadoras, a razão que impulsionou o Ministério da Saúde a adotar a noção de "competência" como referência na formação desses atores da saúde foi a mesma que levou o setor da saúde a criticar o currículo estruturado por disciplinas desde o Projeto Larga Escala. Esse paradoxo fica mais evidente quando se pensa sobre a desarticulação da escola técnica do SUS e as possibilidades de superá-la mediante o "currículo por competências", que supostamente, estaria comprometido com a "prática" dos serviços.
Na seqüência são feitos alguns apontamentos sobre a educação profissional no Brasil a partir do Governo Lula, no sentido de demonstrar que as expectativas de profundas mudanças estruturais na sociedade e na educação foram frustradas. O tratamento anunciado pelo Ministério da Educação no início de 2003 para tal perspectiva foi de reconstruí-la como política pública e de corrigir distorções de conceitos e práticas decorrentes de medidas adotadas pelas gestões antecessoras. O Governo FHC havia separado a educação profissional da educação básica, aligeirado a formação técnica em módulos dissociados e estanques e, dado um cunho de treinamento superficial à formação profissional e tecnológica de jovens e adultos trabalhadores. O tema que diz respeito à política de Educação Permanente também é comentado na obra.
No capítulo derradeiro, se discorre sobre as perspectivas de um novo projeto de educação profissional em saúde, com questionamentos acerca de qual deveria ser o papel deste tipo de política pública. Há defesa de uma concepção que trate a educação profissional como importante mediação no processo de construção de conhecimento científico-tecnológico na esfera nacional, por meio de um projeto público que unificaria a formação de trabalhadores de níveis médio e superior para a C&T, tendo como base uma formação integrada e politécnica. Politecnia essa entendida como uma "utopia em movimento", como uma compreensão que enxerga o trabalhador como sujeito de realizações, de conhecimento e de cultura. O avanço dessa construção pressupõe o rompimento com as antigas vertentes tecnicistas da educação e também com aquelas mais contemporâneas, sustentadas pela apologia ao novo, as quais somente rejuvenescem formas arcaicas de educação e de trabalho.
Com relação à lógica da integração ensino-serviço, discute-se que enquanto estiver circunscrita apenas aos aspectos metodológicos e não caminhar para a (re)construção de referenciais políticos e epistemológicos, a educação profissional em saúde continuará a padecer dos mesmos males. As autoras insistem que, visto pelo prisma ontológico, a atenção à saúde precisa ser compreendida como a ação humana destinada ao cuidado do/com o outro. Por esse sentido, o trabalho não é uma mercadoria, o trabalhador não é um recurso e a educação não se reduz ao método. O trabalho em saúde é definido como uma mediação na produção da existência humana degradada ou digna seja para quem o realiza, seja para quem o recebe. O trabalho voltado para a produção de vidas dignas de seres humanos exige a transformação radical não somente das práticas de atenção à saúde, mas das próprias relações sociais de produção. Portanto, a formação do trabalhador em saúde, muito além de ser orientada pelo e para os serviços de saúde, estando a eles integrada, deve ser orientada pela e para a emancipação humana coletiva.