NOTE RESEARCH NOTE
Vítimas de acidentes de trânsito na faixa etária pediátrica atendidas em um hospital universitário: aspectos epidemiológicos e clínicos
Pediatric victms of traffic accidents admitted to a university hospital: epidemiological and clinical aspects
Juliana Pontes Pinto Feitas; Lindioneza Adriano Ribeiro; Miguel Tanús Jorge
Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, Brasil
RESUMO
O presente estudo analisa aspectos epidemiológicos e clínicos relacionados às vítimas de acidentes de trânsito de menores de 15 anos mediante dados obtidos de prontuários médicos. Tais casos foram atendidos no Hospital de Clínicas de Uberlândia, Minas Gerais, Brasil, no período de 1999 a 2003. Das 1.123 vítimas analisadas, a média de idade foi de oito anos, 65,7% eram meninos, 76,6% envolveram-se nos acidentes como pedestres ou ciclistas, 45,9% apresentaram traumatismo crânio-encefálico e 9% permaneceram internados por mais de duas semanas. Quatorze (1,2%) vítimas faleceram, 78,6% nas primeiras 48 horas de internação e 85,7% haviam sofrido traumatismo crânio-encefálico grave. Dos passageiros de motocicletas ou veículos de quatro ou mais rodas, 58,8% não usavam adequadamente os dispositivos de segurança no momento do sinistro. Dos ciclistas, 61% sofreram traumatismos isolados nos membros. Diferentemente, os pedestres sofreram, com maior constância, lesões múltiplas (57,5%), foram internados em unidade de terapia intensiva (7,1%) e foram responsáveis por 66,7% dos óbitos. Dados epidemiológicos dos acidentes de trânsito envolvendo vítimas na faixa etária pediátrica devem fundamentar programas de prevenção em saúde pública.
Acidentes de Trânsito; Assistência Hospitalar; Criança
ABSTRACT
This study analyzes epidemiological and clinic characteristics of victims of traffic accidents. Data were obtained from medical records of children under 15 years of age (n = 1,123) admitted to a university hospital in Uberlândia, Minas Gerais State, Brazil, from 1999 to 2003. Mean age was eight years, 65.7% were boys, 76.6% were cyclists or pedestrians, 45.9% suffered head injuries, and 9% remained in hospital for more than two weeks. Fourteen (1.2%) died, 78.6% of these within 48 hours of hospitalization, and 85.7% with brain injuries. Among the passengers of motorcycles and larger vehicles, 58.8% were not using security devices properly at the time of the accident. Among the cyclists, 61% suffered isolated limb injuries. Meanwhile, pedestrians tended to suffer multiple lesions (57.5%) and be admitted to intensive care (7.1%), and represented 66.7% of the deaths. Epidemiological data on pediatric traffic victims can be useful for accident prevention programs.
Traffic Accident; Hospital Care; Child
Introdução
Acidentes de trânsito são eventos de etiologia multifatorial potencialmente evitáveis e decorrentes de fatores como aumento da frota de veículos, falhas humanas e leis inadequadas ou insuficientes 1.
No Brasil, em 2004, 34,8% dos óbitos foram decorrentes de acidentes de transporte e, destes, 6,9% acometeram menores de 15 anos 2. Características biológicas da criança a predispõem a esses acidentes, pois fatores decisivos para o discernimento da situação do trânsito ainda estão em desenvolvimento 1,3 e a menor estatura da criança dificulta a percepção de sua presença pelos condutores 1.
Dados epidemiológicos sobre tais acidentes são fundamentais para que sejam feitos programas de prevenção com a atuação de profissionais da saúde e da educação em relação à instrução de pais e cuidadores 4.
O presente estudo objetiva conhecer aspectos epidemiológicos e clínicos relacionados às vítimas dos acidentes de trânsito na faixa etária pediátrica, em Uberlândia, Minas Gerais, Brasil.
Métodos
Foram avaliados retrospectivamente prontuários médicos das 1.123 pacientes de 0 a 14 anos, vítimas de acidente de trânsito na cidade de Uberlândia, atendidos no Hospital de Clínicas de Uberlândia, Universidade Federal de Uberlândia, centro terciário de referência e único pronto-socorro conveniado ao Sistema Único de Saúde (SUS), de 1999 a 2003. Foram excluídos pacientes encaminhados de outros municípios. Os acidentes foram classificados conforme definições da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, 10ª Revisão (CID-10) 5.
A avaliação do uso correto ou não de dispositivo de segurança pela vítima no momento do acidente segundo o novo Código de Trânsito Brasileiro 6 foi baseada nas informações dos prontuários. O paciente foi considerado como portador de traumatismo crânio-encefálico se no prontuário havia esse diagnóstico ou informações que o justificavam com base nos critérios de Jennett & MacMillan 7; a classificação da sua gravidade foi baseada na escala de coma de Glasgow 8.
Quando pertinente, foi realizada análise de associação das variáveis pelo teste de qui-quadrado ou, quando o número esperado em alguma casa foi menor do que cinco, pelo teste exato de Fisher. O nível de significância estatística foi definido em 5%.
O projeto deste estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Uberlândia.
Resultados
Das 1.123 vítimas, 738 (65,7%) eram do sexo masculino e a média de idade foi de 8,0 ± 4,1 anos. Nos 1.016 (90,5%) casos em que o dado pôde ser obtido, em 467 (46%) a vítima estava em uma bicicleta e 311 (30,6%) sofreram acidentes como pedestres (Tabela 1).
Em 51 (27,7%) de 184 acidentes cuja vítima estava em veículo motorizado foi possível obter informação quanto ao uso de dispositivos de segurança no momento do acidente; 30 (58,8%) não os utilizavam ou o faziam de forma incorreta.
Foram internadas em UTI 22 (7,1%) pedestres e 5 (0,7%) das demais vítimas (p < 0,001) (Tabela 1).
Das 1.114 (99,2%) vítimas cujos dados foram obtidos, lesões apenas em membros ocorreram em 473 (42,5%) e apenas traumatismo crânio-encefálico em 117 (10,5%), mas 509 (45,7%) apresentaram traumatismo crânio-encefálico com ou sem outros traumatismos (Tabela 2).
Das 927 vítimas com descrição de lesões em crânio, membros ou múltiplas e com informação quanto ao tipo do acidente, apresentaram lesões apenas em membros 261 (61%) vítimas que estavam em bicicleta, 42 (48,3%) em motocicleta e 39 (73,6%) em veículos de tração animal. Apresentaram traumatismo crânio-encefálico, isolado ou associado a outros traumas, 196 (66,6%) dentre os pedestres e 45 (69,2%) daqueles em veículos com quatro ou mais rodas (p < 0,05) (Tabela 3).
Em 502 (98,6%) dos 509 casos de traumatismo crânio-encefálico, foi possível observar predominância de vítimas de traumatismo crânio-encefálico leve atendidas no pronto-socorro (331; 75%), moderado na enfermaria (18; 66,7%) e graves em UTI (22; 64,8%) (p < 0,05) (Tabela 4).
Em 344 (95,8%) das 359 vítimas internadas o tempo de internação foi obtido com precisão sendo a média de 4,8 ± 7,8 dias e a mediana de dois dias.
Dos 14 (1,2%) óbitos, 11 (78,6%) ocorreram nas primeiras 48 horas de internação; 12 (1,6%) ocorreram com vítimas do sexo masculino e 2 (0,5%) do sexo feminino (p > 0,05). Dentre as 12 (85,7%) vítimas fatais cujo dado foi obtido, 8 (66,7%) eram pedestres e 4 (33,3%) se encontravam em algum veículo (p < 0,05). Doze (85,7%) vítimas que faleceram apresentaram traumatismo crânio-encefálico, todos classificados como graves. Tanto a ocorrência quanto a gravidade do traumatismo crânio-encefálico associaram-se à letalidade maior (p < 0,05).
Discussão
A predominância de crianças do sexo masculino encontrada no presente estudo corrobora dados da literatura 1 e se justifica por características próprias dos meninos. Chapman et al. 3 evidenciaram que eles brincam fora de casa mais freqüentemente do que meninas e, segundo Salvatore 9, pedestres do sexo masculino fazem julgamentos menos rigorosos quanto à velocidade do carro em aproximação.
O valor da média de idade das vítimas (oito anos) foi semelhante ao encontrado em trabalho realizado por Forlin et al. 10 em Curitiba, Estado do Paraná, Brasil (sete anos e oito meses), que avaliou crianças de até 15 anos internadas após trauma, sendo os acidentes de trânsito a causa mais comum. Segundo Rivara 11, crianças de cinco a nove anos são mais vulneráveis por já estarem mais expostas a acidentes do que as mais novas e pelo fato de não terem adquirido habilidade no trânsito, como as mais velhas.
A grande participação das bicicletas nos acidentes deve-se a vários fatores como seu custo relativamente baixo, a sua utilização também por crianças, como forma de lazer, e ao fato de Uberlândia ser relativamente plana, com predomínio de dias ensolarados, fatos que facilitam a utilização desses veículos.
No presente estudo, apesar de em apenas um quarto dos casos ter se obtido a informação do uso ou não de dispositivos de segurança, é relevante que mais da metade deles não o faziam ou o faziam incorretamente. A constatação, no presente estudo, de elevada porcentagem de não utilização desses dispositivos coincide com dados de trabalho realizado na cidade de Londrina, Estado do Paraná, onde, entre menores de 15 anos ocupantes de motocicleta envolvidos em acidentes, somente 42,4% utilizavam capacete 12. Portanto, devem ser reforçadas as políticas públicas para conscientização da importância do uso de dispositivos de segurança.
A elevada ocorrência de traumatismo crânio-encefálico é relevante pelo fato de a lesão do sistema nervoso central ser "o componente mais devastador do trauma na infância, por ser a principal causa de óbito nesses indivíduos e produzir sofrimento imensurável com diminuição da capacidade funcional e da qualidade de vida" 13 (p. 92). Como no presente estudo, embora avaliando apenas pedestres, Byard et al. 14 mostram que os óbitos ocorrem sobretudo em vítimas de traumatismo crânio-encefálico grave.
Os dados do presente estudo corroboram também literatura acerca dos acidentes envolvendo pedestres 1,15, vítimas frágeis e desprotegidas que correspondem a número expressivo dos acidentados no trânsito que requerem internação na UTI e/ou falecem 16.
A média da duração de internação (4,8 dias) foi menor do que a encontrada em estudo em que foram analisados dados de todos os pacientes vítimas de acidentes de trânsito internados em três hospitais públicos de Belo Horizonte, Estado de Minas Gerais (9,8 dias) 17. Entretanto, menor duração da internação de crianças em relação aos adultos já havia sido evidenciada para pedestres vítimas de acidentes com veículos a motor 18. A maior ocorrência dos óbitos dentro de 48 horas corrobora resultados de Graham et al. 19 e evidencia gravidade das lesões.
Conclui-se que, entre as crianças atendidas por causa de acidentes de trânsito em hospital público de grande porte em Uberlândia, a média de idade é de aproximadamente oito anos e há predomínio do sexo masculino. O veículo mais freqüentemente envolvido é a bicicleta e acidentes com pedestres costumam ser mais graves. Crianças acidentadas enquanto passageiras em veículos motorizados comumente não estão usando dispositivos de segurança. Ocorrência e gravidade de traumatismo crânio-encefálico são determinantes na evolução; cerca de 10% permanecem internadas por mais de duas semanas e o óbito é mais constante entre pedestres. O estudo da epidemiologia de acidentes de trânsito em pediatria deve fundamentar programas de prevenção em saúde pública.
Colaboradores
J. P. P. Freitas participou da elaboração do projeto; revisão de literatura; elaboração da metodologia; obtenção e análise dos resultados; redação do artigo final. L. A. Ribeiro colaborou na revisão do projeto, revisão da literatura, análise dos resultados e revisão do artigo final. M. T. Jorge contribuiu na revisão do projeto, na elaboração da metodologia e na revisão do artigo final.
Agradecimentos
Ao Prof. Dr. Orlando César Mantese pela colaboração na elaboração do projeto de pesquisa e revisão da versão final do artigo.
Referências
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Correspondência:
J. P. P. Freitas
Universidade Federal de Uberlândia.
Rua Johen Carneiro 870, apto. 702
Uberlândia, MG 38400-070, Brasil.
jlpontes@triang com.br
Recebido em 15/Ago/2006
Versão final reapresentada em 30/Mai/2007
Aprovado em 07/Ago/2007