RESENHAS BOOK REVIEWS
Deficiência, saúde pública e justiça social
Arryanne Queiroz
Departamento de Polícia Federal, Ministério da Justiça, Brasília, Brasil. ANIS: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, Brasília, Brasil. arryanne.avq@dpf.gov.br
O QUE É DEFICIÊNCIA. Diniz D. São Paulo: Editora Brasiliense; 2007. 96 pp. (Coleção Primeiros Passos, 324).
ISBN: 978-85-11-00107-5
Durante um longo período, deficiência foi sinônimo de desvantagem natural. Os saberes biomédicos dominaram o campo dos estudos sobre deficiência. A obra O Que É Deficiência, da antropóloga Debora Diniz, publicada na Coleção Primeiros Passos, é uma provocação à compreensão biomédica da deficiência como desvantagem biológica. A vida de Jorge Luiz Borges, escritor argentino cego, é o tropo inicial da obra que assume a assertiva de que "...ser cego é apenas uma das muitas formas corporais de estar no mundo..." (pp. 7-8). Essa redescrição da deficiência em termos sociológicos revela que a lesão é algo recorrente no ciclo da vida humana, especialmente em razão do envelhecimento populacional. Com isso, a pesquisadora mostra que a deficiência é um conceito complexo que, além de reconhecer o corpo com lesão, denuncia a estrutura social que aparta do convívio social a pessoa deficiente. A narrativa é um convite à reflexão; uma provocação ao autismo social e governamental frente à emergência da diversidade de estilos de vida.
O livro é dividido em cinco partes que abordam os seguintes assuntos: o modelo social da deficiência; a revisão do modelo médico; e a deficiência, feminismo e cuidado. Um aspecto preliminar na narrativa é a oposição à idéia de deficiência como anormalidade. Segundo a autora, a deficiência não é uma variação do normal da espécie humana, pois anormalidade é um julgamento estético e, portanto, um valor moral sobre estilo de vida. Essa foi uma crítica central para a construção da primeira geração do modelo social da deficiência. É que a anormalidade era um argumento recorrente para explicar o encarceramento de pessoas com lesões físicas e mentais severas. Antes do modelo social, essas pessoas sobreviviam isoladas em instituições que, a pretexto de tratá-las para devolvê-las à família ou à sociedade em condições de normalidade, impunham-lhes um regime de alienação moral baseado no autoritarismo e na crueldade. O objetivo do modelo social, um marco teórico nos estudos sobre deficiência, era ir além da medicalização das lesões.
A desconstrução da imagem do deficiente como uma pessoa anormal lastreou a tese da Liga dos Lesados Físicos contra a Segregação (UPIAS), a primeira organização formada e gerenciada por deficientes na história da civilização. A UPIAS defendia que a exclusão social que vitimava os deficientes não decorria de suas limitações corporais, como entendia a medicina. Segundo a UPIAS, a deficiência decorria do desamparo institucionalizado de organizações sociais e políticas pouco sensíveis à diversidade corporal. Sem dúvida, essa foi uma estratégia decisiva, porque, ao tempo em que aproximava os deficientes de outras minorias, como as mulheres e os negros, também legitimava a reivindicação de que a deficiência deveria ser, por isto mesmo, matéria de ações políticas afirmativas e de intervenção do Estado. Mesmo sendo inicialmente um movimento social enviesado pelo maior destaque à deficiência física, a UPIAS conseguiu demonstrar que, independentemente da forma de deficiência, ela sempre implicava uma experiência de opressão.
A inovação do modelo social de deficiência estava na concepção de que a experiência da opressão não é uma conseqüência natural de um corpo com lesões. Seria, na verdade, uma imposição social. O problema é que, como demonstra a autora, diferentemente das discussões sobre desigualdade de gênero, nas quais há consenso político de que a biologia não determina a desvantagem social, no campo da deficiência este seria um argumento inócuo: a rejeição à lesão é algo tão difundido nas sociedades industrializadas que a separação entre a natureza e a sociedade não seria facilmente digerida nas negociações políticas em prol dos direitos dos deficientes. Com base nisso, houve a primeira releitura do modelo social tal como ele foi concebido. A crítica buscava trazer o corpo para o centro dos debates sobre justiça para os deficientes. Como espaço de expressão da desigualdade, o corpo não devia ser ignorado, inclusive porque nem todos os ajustes arquitetônicos possíveis garantirão a plena liberdade de ir, de vir e de agir das pessoas deficientes, cujas demandas variam de acordo a multiplicidade e a gravidade de suas lesões, motoras e/ou cognitivas.
Mas o enfoque no corpo não significou um atraso nos estudos sobre deficiência. Muito pelo contrário. O corpo é um aspecto central no debate sobre deficiência, especialmente porque pessoas produtivas podem, após longos anos de trabalho mecânico, experimentar a deficiência. Ou seja, a deficiência não é apenas fruto do acaso da natureza. Não deve ser vista como problema individual, fruto de tragédia pessoal ou de uma limitação corporal. Uma prova disso são os idosos, que experimentam a deficiência pelo desgaste gradual do corpo. Nesse ponto, Diniz mostra o quanto a inclusão dos idosos no universo da deficiência representou uma guinada argumentativa ao debate. A visão da deficiência como um problema social, sem negligenciamento da representatividade do corpo, repercutiria de modo positivo na implementação de políticas de saúde pública e direitos humanos, com prioridade às medidas de reparação de desigualdade, e não às medidas sanitárias de reabilitação. Uma conquista paradigmática.
Um capítulo fundamental para a compreensão da evolução dos estudos sobre o tema é o que aborda a revisão do modelo médico, em que Diniz analisa a importância e a tensão decorrente da publicação, em 1980, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), de um catálogo oficial de lesões e deficiências semelhante à Classificação Internacional de Doenças (CID): a Classificação Internacional de Lesão, Deficiência e Handicap (ICIDH), cujo caráter teleológico era, para além da unificação da terminologia sobre a linguagem biomédica sobre lesões e deficiências, principalmente propiciar uma padronização para fins comparativos e de políticas de saúde. O novo vocabulário proposto pela OMS representou, no entanto, retrocesso ao debate sobre deficiência, porque resgatou conceitos perniciosos, como o de anormalidade, ao debate. O impacto de um vocabulário elaborado pela OMS, cuja força política no cenário internacional é indiscutível, pôs em risco as conquistas feitas pelos teóricos do modelo social da deficiência.
No entanto, a publicação da ICIDH teve uma influência positiva para o debate, porque foi o ponta-pé inicial para uma grande fase de crescimento intelectual para o modelo social, que, numa tentativa consertada de impedir o revigoramento do modelo médico, procurou demonstrar a fragilidade da ICIDH para o enfrentamento da questão política da deficiência. As novas críticas minaram a força da ICIDH. A ICIDH parecia uma expansão da CID, um aspecto negativo do documento, porque aproximava a deficiência das doenças, o que afastava o debate do campo sociológico. Com isso, os críticos mostraram que a ICIDH implicava uma maneira camuflada de retomar a medicalização sobre o corpo com lesões. No mais, a ICIDH carecia de representatividade porque havia sido feita por pessoas sem experiência pessoal na deficiência, além de lastrear-se em concepções de normalidade para a pessoa humana. A revisão da ICIDH ocorreu na década de 1990 e, desta vez, contou com intensa participação de diversas entidades acadêmicas e de movimentos sociais de deficientes.
A revisão teve por desfecho a publicação da Classificação Internacional de Funcionalidade, Deficiência e Saúde (CIF), em 2001. Com ela, a deficiência deixou de ser mera conseqüência de doenças para se tornar uma questão pertencente aos domínios da saúde, traduzindo-se numa tentativa de integrar os modelos médico e social de deficiência. A publicação da CIF foi um marco nos estudos que, porém, ainda sofreram críticas. Outra crítica importante adveio da perspectiva feminista, que deu origem à segunda geração de teóricos do modelo social de deficiência. A revisão do modelo social da deficiência à luz do feminismo desestabilizou a falsa suposição de que os deficientes, sem exceção, retiradas as barreiras físicas, precisem de auxílio ou apoio de terceiros para conduzir os rumos da própria vida. O que as teóricas feministas queriam era mostrar que o cuidado também é uma demanda de justiça social dos deficientes. Era preciso assimilar a idéia de que a independência não deve ser um valor central do modelo social, ou seja, as relações de dependência são inevitáveis à vida social; são inescapáveis à história de vida de todas as pessoas.
A crítica feminista causou uma revolução nos estudos sobre o tema da deficiência. Como esclarece a autora, a perspectiva feminista tinha por principal desafio demonstrar a possibilidade de haver um projeto de justiça que considerasse o cuidado em situações de extrema desigualdade de poder, sem que isso implicasse devolver os deficientes ao espaço de subalternidade e de exclusão social. Mas a crítica feminista, segundo Diniz, não era somente uma proposta de mudança de paradigma. Havia uma estratégia perspicaz por detrás dela: numa sociedade pouco sensível aos interesses dos deficientes, seria mais fácil garantir o cuidado que modificar a ordem social e política que os oprimia. Nesse ponto, aos olhos dos primeiros teóricos do modelo social, a crítica feminista implicava, inicialmente, uma ameaça política. Com o passar do tempo, não houve outra saída senão reconhecer que, além da perspectiva dos deficientes, era preciso levar em consideração também o ponto de vista das cuidadoras dos deficientes.
Nisso, a crítica feminista outra vez surpreendeu, porque viabilizou o reconhecimento de outra autoridade sobre a deficiência que não apenas o deficiente % algo inquietante para a primeira geração de teóricos do modelo social porque abalou o argumento de autoridade de que era preciso ser deficiente para escrever sobre deficiência. A figura da cuidadora foi colocada no centro do debate sobre justiça e deficiência, denunciando o viés de gênero no liberalismo político e servindo, sobretudo, como alerta para o fato de que há desigualdades de poder no campo da deficiência que jamais serão resolvidas por ajustes arquitetônicos. A crítica feminista teve o papel fundamental de desvelar outros protagonistas do universo da deficiência, que vivenciam a experiência da deficiência pelo cuidado aos filhos, sobrinhos, pais, parentes e pessoas com quem não têm vínculo familiar, como é o caso de enfermeiros. Com a crítica feminista, o debate sobre a deficiência passou a considerar que a absoluta independência é uma bandeira perversa que certamente implicará desamparo aos deficientes.
A deficiência é um tema extremamente delicado. O livro de Diniz propicia a compreensão de que a deficiência resulta de um relacionamento complexo entre as condições de saúde de um indivíduo e os fatores pessoais e externos, sendo um conceito guarda-chuva que associa a concepção médica de lesão aos aspectos negativos da interação entre o sujeito e o contexto social. Um aspecto que merece destaque no livro é a profundidade da abordagem, que, apesar de ter sido publicada numa coleção editorial com um perfil didático para leitores leigos, não omitiu dados nem conceitos relevantes para a compreensão fidedigna do tema. Para além da importância acadêmica da obra, o livro representa uma chamada de justiça social, pois nunca, na história da civilização humana, tantas foram as demandas de respeito aos direitos humanos, que passaram a ser, por esta razão, o vértice das ações governamentais dos países democráticos. Os desafios sobre o tema ainda são muitos, mas o entendimento de que a deficiência é uma expressão da diversidade de estilos de vida é um avanço sem precedentes para a concretização de um projeto de justiça social urgente: a integração dos deficientes.