RESENHAS BOOK REVIEWS

 

 

João Bôsco Hora Góis

Programa de Estudos Pós-graduados em Política Social, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil

 

 

NO NAME FEVER: AIDS IN THE AGE OF GLOBALIZATION. Follér M-L, Thörn H, editors. Lund/Göteborg: Studentlitteratur/Museum of World Culture/Göteborg University; 2005.

ISBN: 91-440-3684-1

No início da década de 1980, quando os primeiros casos de AIDS foram identificados, poucas pessoas imaginaram que esta doença poderia se expandir da forma que fez. Contudo, alguns anos após a identificação do seu agente causal, o HIV, ficou claro que ela caminhava para estar presente em todo o planeta. Tal fato estimulou a produção de livros que buscavam abordar as suas manifestações em distintos países, sendo emblemático dentre eles aquele organizado por Jonhatahn Mann et al. 1, intitulado no Brasil de A AIDS no Mundo. Tal livro, que abriu caminho para a constituição de um tipo de tradição literária no campo dos estudos sobre essa doença, foi seguido de vários outros escritos semelhantes em escopo. A coletânea aqui examinada dá seguimento a tal tradição. O faz, contudo, a partir de um campo teórico no qual a idéia de mundialização da AIDS é substituída pela análise, mais refinada, das suas relações com o processo de globalização. Tais relações constituem o tema central dos seus quatro primeiros capítulos.

Em um deles, Tony Barnett refere-se à globalização como um processo amplo (e nem tão recente) que envolve, dentre outros elementos, a criação de vastas redes financeiras, mobilidade de pessoas e grupos, trocas culturais e questões ambientais. Ao mesmo tempo, ele indaga se esse processo pode ser associado somente a desenvolvimento e bem-estar, uma vez que a globalização também envolve "aumento da pobreza, redução do tempo média de vida dos mais pobres (...) e perda de diversidade, particularmente a diversidade de idéias e tradições" (p. 45). Além disso, ele afirma que a globalização, ao gerar concentração de recursos, não favorece a cooperação internacional no enfrentamento das epidemias, como bem evidencia o isolamento de diversos países africanos nos seus esforços de atenção às vítimas da AIDS. Os outros três textos que tratam da globalização acompanham essa linha de argumentação. Dentre eles, tanto o de Maj-Lis Follér & Hakan Thörn quanto o de Bertil Egero quase nada agregam de novo à discussão proposta por Barnett. Somente Denis Altmann, valendo-se de uma perspectiva menos epidemiológica e mais antropológica, é que matiza o debate mais genérico sobre a globalização presente no livro ao sublinhar que a AIDS é ao mesmo tempo modelada pela dinâmica da globalização e um dos seus elementos constitutivos. Ele também aponta os impactos dela na criação de condições favoráveis à expansão do HIV. Contudo, lembra que essa mesma globalização criou condições para a formação de novas identidades sexuais, permitiu a ampliação do debate sobre as várias expressões da sexualidade e propiciou a inclusão destes dois temas na agenda pública em diferentes países.

Como a noção de globalização que orienta os capítulos do livro não suprime as especificidades regionais, faz sentido que boa parte dele seja composto por textos que analisam o desenvolvimento da epidemia em distintas realidades nacionais. Um deles é aquele escrito por Michaell Blackwell sobre a expansão da AIDS na Romênia. Blackwell atribui o desenvolvimento da epidemia naquele país aos impactos das políticas natalistas estimuladas pela ditadura de Nicolau Ceacescu, às políticas econômicas fracassadas, à recusa do reconhecimento da presença da doença no país e aos efeitos deletérios da transição de uma economia centralizada para uma economia de mercado. Em relação ao programa nacional de combate à doença, Blackwell o vê como bem desenhado, mas de impacto limitado pela insuficiência dos recursos financeiros que lhes são destinados.

O exame do caso da Romênia é importante menos por evidenciar alguma especificidade da situação daquele país e mais, ao contrário, pelo que mostra das suas similaridades com outros países. O mesmo pode ser dito em relação ao capítulo escrito por David Thorsen, no qual ele explicita o grande impacto social causado pela chegada da AIDS na Suécia. Retomando argumentos já amplamente desenvolvidos em outros trabalhos, ele relaciona tal impacto a aspectos de uma ampla crise civilizatória presente em todo o mundo composta pelos seguintes elementos: o fracasso da promessa médica em curar todas as doenças, o colapso do padrão de liberação sexual estabelecido a partir dos anos de 1960 e o medo da destruição coletiva. No que diz respeito ao desenvolvimento de um modelo assistencial, ele salienta que na Suécia tal modelo, ao longo do tempo, foi combinando a adoção de amplas ações de caráter educativo com a utilização de duras medidas repressivas para aqueles infectados.

O terceiro caso, estudado por Suneetha Kadiyala & Tony Barnett, é o da Índia. O cenário de surgimento e expansão da epidemia que nos é apresentado lembra, novamente, a experiência de inúmeros outros países. Mas, parece se distinguir no que tange a intensidade da repressão e negação do cuidado com aqueles afetados pela doença durante os anos de 1980. Isso, na avaliação dos autores, levou ao crescimento e à possibilidade de explosão da doença no país: as previsões apontam que em 2010 o número de pessoas ali infectadas será cinco vezes maior do que é atualmente. Não se resignando às visões apocalípticas, os autores vêem também a possibilidade de seu controle. Para tanto, ressaltam, é necessária a adoção por parte de gestores, das mídias e da população como um todo de uma compreensão da dinâmica da epidemia que capte as bases culturais e comportamentais que permitem o seu avanço.

Ao longo da história foi gerada uma profusão de imagens sobre a AIDS e aqueles por ela afetados. Tais imagens e os discursos a elas associados parecem ter assumido vida própria, em parte distinguindo-se das suas expressões materiais. Elas modelaram as percepções coletivas sobre a doença e o modo como as políticas públicas relacionadas ao HIV/AIDS foram implementadas. Assim, faz sentido que um livro como No Name Fever: AIDS in the Age of Globalization também se ocupe dessa questão. O primeiro trabalho sobre elas, de autoria de L. Chang & R. Donovan, discute as representações da epidemia em material gráfico produzido para fins educacionais em países da Ásia. Argumentam os autores que a sua representação gráfica é modelada por padrões culturais nacionais, particularmente aquelas referentes às condutas sexuais. Em função disso, ao mesmo tempo em que tais materiais inovam, também reproduzem as definições locais de normalidade e moralidade.

O poder das imagens é também o veio explicativo utilizado por Ane Kirkegaard para explicar o papel da variável "raça" na expansão da AIDS no Zimbábue. Mostra a autora que as definições colonialistas sobre o lugar dos negros na divisão sociotécnica do trabalho foram acompanhadas por descrições sobre a natureza das relações entre homens e mulheres daquele grupo racial, que terminaram por colocá-los em maior risco de exposição ao HIV. Essas mesmas descrições – que falam do negro como o "outro" degenerado – terminaram criando um falso senso de segurança entre a população branca no meio da qual se assiste hoje a um crescimento significativo da doença.

Uma outra análise sobre o poder das imagens é aquela feita por An-Charlotte Ek sobre a forma como as mídias da África do Sul têm reportado a epidemia e suas vítimas. Segundo ela, tal forma atende a interesses de grupos específicos ao mesmo tempo em que negligencia as necessidades de outros, principalmente os infectados que, sem voz, geralmente têm as suas histórias ali contadas na terceira pessoa.

Ainda sob as imagens da epidemia vale destacar o trabalho de Ingenborg Svensson, no qual ele mostra como foram construídas fortes vinculações entre a morte, a AIDS e as homossexualidades, vinculações estas que nem mesmo o conhecimento científico consolidado sobre a doença conseguiu dissolver. Essa persistência é aqui explicada pelas imagens preexistentes na Suécia sobre os homossexuais – desviantes, predadores sexuais, pedófilos etc. Tais imagens pareciam ter entrado em declínio ao longo dos anos de 1970, mas foram reinvocadas e reatualizadas quando do surgimento da doença. Nesse processo, Svensson argumenta, o corpo do homossexual morto com HIV passou a representar o objeto de maior repulsa daquela sociedade à medida que ele aglutinava em si a sexualidade perversa, a doença repugnante e a morte terrível. Isso, ao seu turno, modelou muito dos funerais das vítimas da epidemia: tanto os que buscavam negar a soropositividade e homossexualidade do morto quanto aqueles que, como uma forma de resistência, buscavam destacá-las.

Se de um lado, ao longo da sua história, a epidemia de HIV/AIDS encontrou um fácil terreno para a sua disseminação e para a propagação de imagens negativas sobre aqueles por ela afetados; por outro lado, em vários países, ela se deparou com pessoas e organizações decididas a eliminarem os seus signos negativos e a lutar pelos direitos sociais e civis das suas vítimas, conformando experiências inéditas nas lutas por políticas de saúde. As experiências apresentadas no livro sobre esse processo são a brasileira e a estadunidense.

Maj-Lis Follér ocupa-se do Brasil, relacionando o desenvolvimento das respostas da sociedade civil à epidemia neste país, principalmente as das ONGs/AIDS, às mudanças políticas ocorridas nas décadas de 1980 e 1990. Argumenta que, à medida que o regime militar instalado em 1964 declinava, emergiam diferentes movimentos sociais os quais prepararam o terreno no qual tais ONGs floresceram. Elas se responsabilizaram pelas primeiras respostas organizadas à doença e exerceram uma forte pressão para que governos estaduais e federal tomassem medidas para o controle da epidemia. Ao constituírem-se em atores políticos capazes de intervir em problemas locais e internacionais de grande monta, elas, na análise de Follér, tornaram-se co-responsáveis pelo sucesso (mesmo que parcial) alcançado pelo nosso programa nacional de controle daquela doença.

Em relação aos Estados Unidos, a análise da intervenção da sociedade civil é feita a partir da história de um grupo específico: o AIDS Coalition to Unleash Power (ACT UP). Argumenta o autor, Steven Epstein, que o surgimento da doença naquele país, apesar de ter sido devastador para a comunidade gay, encontrou as suas organizações em estágio avançado de amadurecimento político. Essas organizações desenvolveram as primeiras ações educativas e assistenciais relativas à AIDS naquele país, assim como denunciaram a falta de envolvimento governamental. Contudo, passaram por um progressivo processo de conservadorização das percepções sobre a sexualidade e de burocratização que tendiam a eliminar a participação comunitária da tomada das decisões. É nesse contexto que surge o ACT UP, inaugurando um ativismo mais radical e denunciando de forma incisiva a ausência de respostas efetivas à epidemia. O ACT UP viveu uma fase áurea e de muitos ganhos, notadamente no campo da ampliação do acesso a medicamentos e desenvolvimento da pesquisa sobre a doença. Entretanto, diferentes fatores – maior disposição do governo federal em negociar, esgotamento das estratégias de confronto, dissensões e divisões internas etc. – conduziram ao declínio desse tipo de ativismo em geral e das suas atividades em particular.

Considerado em seu conjunto, pode-se dizer que No Name Fever: AIDS in the Age of Globalization apresenta algumas deficiências. Uma delas é a falta de organicidade de alguns textos que, ao discutirem inúmeras questões, perdem o foco do que seria o seu objeto. Uma outra se refere à ausência de um grau satisfatório de diálogo entre os capítulos, algo essencial para dar maior potência explicativa ao livro como um todo. Se a idéia era produzir uma coletânea que examinasse a AIDS no estágio atual da globalização – com tudo que ela produz de homogeneização, mas também permite de diferenciação – era imprescindível a utilização de uma perspectiva comparativa que indicasse em que momento as diversas experiências examinadas se aproximam das grandes tendências e em que momento elas, em razão das especificidades regionais, assumem características mais diferenciadas. Essa limitação é agravada por uma constante repetição de dados já conhecidos no conjunto dos textos da coletânea.

Vale salientar que essa última característica não é exclusiva do livro aqui em análise. Ao contrário, ela tem marcado muito da produção científica sobre a AIDS no Brasil e no mundo no campo das ciências sociais e humanas. Como argumentei em outros escritos 2,3, em torno da epidemia foi construído um "campo científico" nos termos em que Bourdieu 4 entende esta expressão. Tal campo definiu a divisão de poderes entre diferentes agentes, distribuição de recursos, assim como verdades e mentiras sobre ela. Definiu também a agenda de pesquisa, os marcos conceituais e históricos e as formas de indagar esse objeto as quais parecem ter se fixado no campo com tal força que inibem a produção de novos conhecimentos. No Name Fever: AIDS in the Age of Globalization mostra que em grande medida esse quadro permanece o mesmo, roubando o que, paradoxalmente, era uma das mais vivas promessas intelectuais trazidas pela epidemia: a possibilidade de contínua reflexão (e não reprodução tautológica) sobre os nossos dilemas sociais, políticos, sexuais, econômicos etc.

O HIV e a AIDS continuam a assolar o mundo de forma devastadora, gerando mortes físicas, desesperanças, medo e aflição. Continuam a gerar também formas de solidariedade que, em mutação, podem sempre ser aperfeiçoadas. Para tanto é necessário manter viva na memória coletiva que a luta anti-AIDS está longe de acabar, que as imagens as mais aterrorizantes da doença continuam a circular e que milhares de vida estão sendo ceifadas. Se o livro aqui em análise, a despeito das suas limitações, ao reiterar temas relevantes sobre o sofrimento causado por essa doença, puder contribuir para isso, terá a sua publicação justificada.

 

 

1. Mann J, Tarantola DJM, Netter TW, organizadores. A AIDS no mundo. Rio de Janeiro: Relume-Dumará/Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS/Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 1993.

2. Góis JBH. Reabrindo a "caixa-preta": rupturas e continuidades no discurso sobre Aids nos Estados Unidos (1987-98). Hist Ciênc Saúde-Manguinhos 2002; 9:515-33.

3. Góis JBH. Novas reflexões sobre a Aids? Hist Ciênc Saúde-Manguinhos 2005; 12:585-9.

4. Bourdieu P. Language and symbolic power. Cambridge: Harvard University Press; 1991.

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