ARTIGO ARTICLE
Percepção dos problemas da comunidade: influência de fatores sócio-demográficos e de saúde mental
Perception of community problems: the influence of socio-demographic and mental health factors
Leticia Marín-León; Helenice Bosco de Oliveira; Marilisa Berti de Azevedo Barros; Paulo Dalgalarrondo; Neury José Botega
Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil
RESUMO
Foi realizado estudo transversal para identificar quais os problemas da comunidade, de uma lista de 17, que foram referidos como mais importantes e analisar se tal percepção apresenta diferenças segundo variáveis sócio-demográficas e condição de saúde mental dos entrevistados. Em amostra estratificada por conglomerados representativa da população urbana de Campinas, São Paulo, Brasil, de 14 anos e mais (N = 515) aplicou-se entrevista domiciliar da Organização Mundial da Saúde sobre comportamento suicida (SUPRE-MISS) e SRQ-20. Foram calculadas prevalências ponderadas e razões de prevalência bruta e respectivos intervalos de confiança de 95%. Foi realizada análise multivariada mediante regressão de Poisson. Tráfico de drogas, abuso de drogas, desemprego, criminalidade e abuso de álcool foram considerados problemas graves por mais de 45% da população. Mulheres e pessoas residentes em áreas de nível sócio-econômico médio/baixo atribuíram maior gravidade ao tráfico de drogas, abuso de álcool, de drogas, abuso de crianças e esposa, desemprego e pobreza. Mulheres e pessoas positivas no SRQ-20 julgaram como graves os problemas relativos à educação. Diferenças na percepção segundo condições sócio-econômicas e gênero apontam maior suscetibilidade da mulher e de residentes em áreas pobres.
Problemas Sociais; Violência; Saúde Mental; Identidade de Gênero
ABSTRACT
A cross-sectional study was designed to identify which social problems from a list of 17 were considered important and to analyze differences in perception among interviewees according to socio-demographic variables and presence of common mental disorders. A household survey was performed in Campinas, São Paulo, Brazil, with a stratified cluster sample of urban residents aged 14 years or older (N = 515) using the WHO/SUPRE-MISS interview and SRQ-20. Weighted prevalence and crude prevalence ratio with respective 95%CI were calculated. Multiple analyses were performed using Poisson regression. Drug traffic, drug abuse, unemployment, crime, and alcohol abuse were considered severe by more than 45% of the sample. Women and individuals living in medium-low income areas attributed greater severity to drug traffic, alcohol and drug abuse, child and spousal abuse, unemployment, and poverty. Females and individuals with positive SRQ-20 identified problems related to education as more severe. Differences in perception according to socioeconomic status and gender were observed, with women and low-income residents showing the greatest susceptibility.
Social Problems; Violence; Mental Health; Gender Identity
Introdução
O aumento da violência ocorrido nas últimas duas décadas ampliou a percepção e a discussão sobre os problemas sociais existentes e o impacto que provocam na qualidade de vida e saúde da população.
As elevadas taxas de homicídio representam a ponta do iceberg dos problemas da violência social. A realidade da violência é polifacetada e se compõe de: exposição freqüente a imagens violentas nos meios de comunicação; testemunhar atos violentos na própria comunidade; sentir-se ameaçado pela violência, fazendo surgir sentimento de impotência; e ainda, o surgimento da crença de que a violência é o desfecho natural e legítimo para muitos conflitos sociais 1. Sofrer uma violência, tanto quanto presenciá-la, tem sido associado a problemas psicológicos e sociais, com o surgimento da síndrome de estresse pós-traumático 2; com ansiedade, depressão, tristeza profunda e comportamento de afastamento social 3. O medo é o mecanismo que associa tais desfechos negativos à percepção da falta de controle interno 3.
As condições sócio-econômicas desfavoráveis associam-se à violência: condições inadequadas de moradia, ausência de, ou escassa escolaridade, desemprego e outras condições associadas à pobreza contribuem para aumentar o risco de que alguns jovens cometam crimes ou participem indiretamente nos mesmos. O empobrecimento das famílias representa um risco adicional. A perda da capacidade de consumo pode suscitar a percepção de pobreza e levar os jovens à criminalidade 4. O comércio das drogas tem aumentado e nele a violência é a forma usualmente adotada para resolver discrepâncias e expandir a participação no mercado 4.
A cidade de Campinas, São Paulo, Brasil, por ser um pólo industrial, apresentou nos últimos trinta anos um grande fluxo migratório, e o crescimento da infra-estrutura não conseguiu acompanhar o crescimento populacional. A este crescimento desordenado acrescentou-se o desemprego que afetou também o município desde fins da década de 80, vindo a piorar a situação de pobreza. Concomitantemente, o tráfico de drogas e a criminalidade aumentaram, sem serem vislumbradas possibilidades de controle.
Esta pesquisa foi desenvolvida como parte das análises do inquérito de base populacional, do Estudo Multicêntrico de Intervenção no Comportamento Suicida (SUPRE-MISS) 5 da Organização Mundial da Saúde (OMS). Trata-se de um projeto transcultural realizado em oito países (Brasil, Estônia, Índia, Irã, China, África do Sul, Sri Lanka e Vietnam) dentro de uma iniciativa destinada à prevenção do suicídio, com a supervisão científica do Australian Institute for Suicide Research and Prevention, Griffith University (Brisbane, Austrália) e do National Centre for Suicide Research and Prevention of Mental Ill-Health, Karolinska Institute (Stocolmo, Suécia) 6.
Nos jornais científicos indexados são escassas as referências sobre a percepção dos problemas da comunidade; este é um tema abordado quase que exclusivamente pelos jornalistas na imprensa escrita ou TV. O objetivo do presente estudo foi identificar quais os problemas da comunidade que foram referidos como mais importantes e analisar se tal percepção apresenta diferenças segundo variáveis sócio-demográficas e condição de saúde mental dos entrevistados.
Método
Trata-se de estudo transversal com dados do inquérito domiciliar de base populacional realizado no Município de Campinas em 2003. A amostra de 515 indivíduos é representativa da população não institucionalizada de 14 anos e mais, residente na área urbana do município. Realizou-se seleção aleatória de residentes na área urbana de Campinas mediante amostragem estratificada por conglomerados. Os setores censitários foram organizados segundo proporção de chefes da família com escolaridade superior, sendo o estrato de nível superior integrado por setores censitários com mais de 25% de chefes com escolaridade superior; o de nível médio por 5 a 25% e o de nível baixo por menos de 5%. De cada estrato foram sorteados dez setores censitários; de cada setor, vinte residências; em cada residência, um indivíduo sorteado. O plano amostral encontra-se detalhado em Botega et al. 5.
Utilizou-se questionário padronizado baseado no European Parasuicide Study Interview Schedule (EPSIS), utilizado no WHO/EURO Multicentre Study on Suicide Behaviour 7. No presente texto detalham-se somente as variáveis centrais ao tema em estudo. Os dados sócio-demográficos do entrevistado, levantados pelo questionário foram: sexo, escolaridade e renda mensal.
Os problemas da comunidade foram abordados pelo SUPRE-MISS mediante uma lista, constante do protocolo da OMS, de 17 problemas com resposta sobre a gravidade dos mesmos em escala Likert de 1 a 5 pontos, correspondendo o 1 a "não grave" e o 5 a "muito grave". A lista de 17 problemas da comunidade segundo sua natureza incluiu os relativos à violência (tráfico de drogas, abuso de drogas, criminalidade, abuso de álcool, segurança física, abuso de crianças e esposa); a condições sócio-econômicas (desemprego, pobreza e moradia); a serviços (serviços de saúde, governo, educação e transportes) e outros (vida familiar, qualidade de vida, poluição e preconceito racial). Para fins de análise procedeu-se à dicotomização em 0 e 1, sendo 0 a importância menor do problema (1-4 pontos) e 1 a existência importante do problema (5 pontos).
O julgamento dos vizinhos foi perguntado em escala Likert de 1 a 5 pontos, correspondendo o 1 a "sem esperança ou pessimistas" e o 5 a "muito esperançosos ou otimistas". Para fins de análise, o julgamento dos vizinhos como pessimistas foi codificado como 1, quando na escala foi marcado 1 ponto; a percepção do otimismo da vizinhança foi codificada como 0 nas respostas com 2 a 5 pontos.
O conceito de saúde mental utilizado foi negativo, isto é, baseado na existência de condição mental alterada, diagnosticada pela positividade no teste Self-Reporting Questionnaire (SRQ-20), instrumento de screening de problemas psiquiátricos. O SRQ-20 foi definido como positivo com pontuação de 8 ou superior, sendo indicativo de provável caso de morbidade psiquiátrica não psicótica 8.
A partir do setor censitário de residência foi definida uma variável ecológica "nível sócio-econômico do bairro de residência", considerando "baixos" aqueles com menos de 5% de chefes de família com escolaridade superior, "médios" aqueles com 5 a 25% e "altos" aqueles com mais de 25%.
As análises foram realizadas utilizando o programa computacional Stata versão 7.0 (Stata Corporation, College Station, Estados Unidos). Foram calculadas as prevalências ponderadas da gravidade percebida dos 17 problemas da comunidade segundo variáveis sócio-demográficas (sexo, escolaridade, renda anual do entrevistado, nível sócio-econômico do bairro de residência) e SRQ-20. As prevalências foram ponderadas para incorporar no cálculo as diferentes probabilidades de seleção dos integrantes da amostra e o efeito de delineamento. Utilizando análise de regressão de Poisson para cada um dos 17 problemas foi calculada a razão de prevalência (RP) entre as categorias das seguintes variáveis: sexo (feminino/masculino), escolaridade (até 11 anos/12 anos e mais), renda anual do entrevistado (< R$ 5.000,00/R$ 5.000,00 e mais), nível sócio-econômico do bairro de residência (baixo e médio/alto), e SRQ-20 (positivo/negativo). Nos problemas em que na análise bivariada o valor de p foi < 0,20 procedeu-se à análise multivariada, utilizando regressão de Poisson. Foi calculada a razão de prevalência (RP) de cada problema, ajustada por sexo, escolaridade, renda, estrato sócio-econômico e SRQ-20. Foi testada interação entre as variáveis: renda, escolaridade e estrato sócio-econômico. Permaneceram no modelo apenas as variáveis com p < 0,05.
Em Campinas, o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, e os entrevistados tiveram a confidencialidade das informações assegurada.
Resultados
Em ordem de freqüência, os problemas considerados graves por mais de 45% da população foram: tráfico de drogas, abuso de drogas, desemprego, criminalidade e abuso de álcool. Com prevalências entre 20 e 45% foram referidos pobreza, segurança física, governo, serviços de saúde, abuso de crianças e esposas, poluição, educação e moradia. Qualidade de vida, transportes, preconceito racial e vida familiar foram considerados problemas graves por menos de 20% da população (Tabela 1).
A proporção de mulheres que caracterizaram os problemas da lista como graves foi sempre maior que a dos homens, sendo esta diferença estatisticamente significativa (sem sobreposição de intervalo de confiança de 95% IC95%) para abuso de álcool, segurança física e serviços de saúde. As maiores diferenças de gênero observam-se quanto ao julgamento de: vida familiar (RP = 2,21), serviços de saúde (RP = 1,96), segurança física (RP = 1,79), educação (RP = 1,78), abuso de crianças e esposa (RP = 1,54) e abuso de álcool (RP = 1,51).
Da Tabela 2 em diante os problemas foram agrupados segundo sua natureza. Pessoas de menor grau de escolaridade (até 11 anos de estudo) tendem a atribuir maior gravidade a alguns problemas como: abuso de álcool, desemprego, pobreza, poluição e preconceito racial (Tabela 2).
A percepção da gravidade de certos problemas modifica-se significativamente segundo a faixa salarial dos entrevistados. Abuso de álcool e abuso de crianças e esposa, desemprego e poluição, apresentaram maior freqüência de gravidade entre os de menor renda (< R$ 2.000,00), sendo ainda observada freqüência progressivamente decrescente com o aumento da faixa de renda. Educação e transportes foram considerados problemas graves por maior proporção de pessoas de menor renda, mas não houve tendência decrescente com a faixa salarial. O abuso de drogas é julgado como grave por uma proporção menor de pessoas da faixa de renda mais elevada (Tabela 3). Ao comparar os indivíduos que recebem anualmente R$ 5.000,00 e mais com os que ganham abaixo deste valor observa-se que os últimos consideram graves com maior freqüência o tráfico de drogas (RP = 1,28), abuso de drogas (RP = 1,51), abuso de álcool (RP = 1,97) e poluição (RP = 2,15).
Ao comparar os moradores de bairros de nível sócio-econômico baixo e médio com os de nível alto, observou-se que os primeiros julgaram como mais graves, com uma freqüência significativamente maior, o tráfico de drogas (RP = 1,53), abuso de álcool (RP = 2,00), abuso de crianças e de esposa (RP = 2,17), desemprego (RP = 1,80), pobreza (RP = 1,97) e poluição (RP = 1,95) (Tabela 4).
A presença de transtorno mental menor diagnosticado pelo SRQ-20 associou-se a diferenças na percepção da gravidade de certos problemas da comunidade; maior proporção de indivíduos SRQ-20 positivo julgou como graves os problemas relacionados com os serviços de saúde (47,1% vs. 31,2%; RP = 1,51; IC95%: 1,10-2,07), a educação (41,9% vs. 25,3%; RP = 1,65; IC95%: 1,22-2,23) e os transportes (28,4% vs. 15%; RP = 1,89; IC95%: 1,14-3,13) (dados não apresentados em tabela).
Entre as pessoas que julgam seus vizinhos como pessimistas há uma visão de maior gravidade dos problemas que entre os que os julgam otimistas (dados não apresentados em tabelas). Entre os homens houve diferença estatisticamente significativa apenas para qualidade de vida, mas entre as mulheres a diferença foi significativa quanto à percepção de criminalidade, pobreza, serviços de saúde, desemprego, abuso de álcool, abuso de crianças e esposas e segurança física. Assim, entre as mulheres que consideram a vizinhança pessimista a proporção que julgou o desemprego como problema grave foi de 88,9% vs. 64,1% entre as que qualificaram a vizinhança como otimista (p = 0,030). A pobreza foi considerada problema grave por 76,1% das pessoas que julgam a vizinhança como pessimista, sendo esta proporção de 44,9% no grupo que julga a vizinhança como otimista (p = 0,006). As que julgam a vizinhança pessimista consideraram que os serviços de saúde representam problema grave em maior proporção que as que não consideram pessimista a vizinhança (71,4% vs. 42%, p = 0,021).
No modelo final de regressão de Poisson os problemas que apresentaram associação com as variáveis estudadas foram: tráfico de drogas, abuso de drogas e de álcool, abuso de crianças e de esposa, desemprego e pobreza. Ser do sexo feminino e residir em bairro de nível médio ou baixo esteve associado à maior freqüência de percepção destes problemas como graves. Associou-se à percepção da educação como problema grave ser do sexo feminino e ter SRQ-20 positivo. A interação entre as variáveis sócio-econômicas e os problemas da comunidade não apresentou significância no modelo de regressão.
Discussão
Entre as limitações do estudo, destaca-se que o desenho transversal impede formulação de causalidade. No questionário não constaram, por não ser este seu objetivo, perguntas que permitiriam avaliar repercussões dos problemas na saúde mental, como por exemplo, em relação à violência, os comportamentos compulsivos e o medo exagerado, com comportamentos de evitação.
Apesar de a lista dos problemas da comunidade ser abrangente, não permitiu saber se a percepção do respondente derivou ou não de experiência pessoal, ou de familiar próximo, e não apenas das notícias nos meios de comunicação. Em relação à vivência pessoal de experiências de violência, sabe-se que esse problema tem sido associado aos agravos da saúde mental 3; como o questionário não incluiu questões sobre o fato de o indivíduo ter sofrido violência, os possíveis casos ficaram diluídos no total da amostra.
Na percepção dos problemas de educação e serviços de saúde houve diferenças, segundo sexo e condição mental, mas no modelo final de regressão, apenas o julgamento da educação como problema grave associa-se a sexo feminino e alteração da saúde mental. Esse fato parece ser indicativo de problemas que têm maior relação com o cuidado familiar, tradicionalmente centrado na mulher.
A ausência de diferenças significativas, na prevalência do julgamento como "grave", dos problemas de moradia, preconceito racial, transporte e governo, segundo sexo, é indicativa de serem problemas com percepção homogênea e pouco relacionados às questões de gênero.
Criminalidade, segurança física e desemprego são problemas macro-sociais de elevada prevalência, altamente discutidos nos meios de comunicação e que aparentemente não seriam percebidos como mais graves em maior proporção por portadores de transtorno mental. Uma hipótese para este fato é que em grandes cidades a influência dos meios de comunicação acaba homogeneizando a percepção dos problemas, especialmente a violência. A constante apresentação de cenas de violência urbana nos noticiários e outros programas sensacionalistas acabam banalizando o fato 9. Uma outra explicação possível é que as pessoas, para conviver com o medo de virem a sofrer alguma violência, devem recorrer a mecanismos de negação para continuar seu cotidiano de forma normal. Na cultura preponderante, em que ao homem cabe proteger a mulher, este mecanismo de negação poderia ser mais freqüente neste sexo 10.
Ao utilizar três indicadores de nível sócio-econômico, dois de caráter individual (renda anual e escolaridade) e um ecológico (nível sócio-econômico do bairro de residência) observaram-se diferenças na percepção da gravidade de alguns problemas. Abuso de álcool, desemprego e poluição tiveram freqüência significativamente maior em indivíduos de escolaridade, renda anual e bairro de nível sócio-econômico inferiores. Tráfico de drogas foi julgado como grave com maior freqüência por pessoas de menor renda e de bairro de nível sócio-econômico médio/baixo, e abuso de drogas foi considerado com maior freqüência grave por pessoas de baixa renda. Destaca-se a presença das variáveis sexo feminino e bairro de nível sócio-econômico baixo ou médio no modelo final de regressão da percepção de problemas relativos à violência (tráfico de drogas, abuso de drogas e de álcool, abuso de crianças e de esposa) e também de problemas macro-sociais, como desemprego e pobreza. A variável ecológica "nível sócio-econômico do bairro de residência" representaria fatores de ordem social e ambiental que influiriam na saúde física e mental 11.
Ross & Mirowsky 12 observaram que a saúde percebida seria negativamente afetada por residir em bairros com desordem social; o medo decorrente dos perigos do ambiente degradado estimularia a liberação cronicamente aumentada de catecolaminas e corticoesteroides, podendo levar à hipertensão arterial, hipercolesterolemia, hiperglicemia e explicar a maior incidência de arteriosclerose, diabetes, doenças cerebrovasculares e cardiopatias isquêmicas. Ross 13 e Latkin & Curry 14 descreveram que a depressão associa-se a morar em bairros com ruas sujas, muros pichados, pessoas consumindo drogas e álcool nas ruas, vandalismo e crime. O convívio diário nesse ambiente ameaçador com evidente quebra da ordem social e carente de estímulos explicaria a maior incidência de depressão.
Cabe destacar que a ausência de diferença na percepção de criminalidade e segurança física, segundo "nível sócio-econômico do bairro de residência" representa uma percepção exacerbada da camada alta, uma vez que as taxas de mortalidade por homicídio aumentam à medida que diminui o nível sócio-econômico. No período de 1999-2001, no sexo masculino, a taxa do distrito de melhor nível sócio-econômico, o Leste, foi de 57 óbitos/100 mil habitantes e no Noroeste, um dos mais pobres, de 140 óbitos/100 mil habitantes 15. Os dados da região metropolitana de São Paulo apontam, também, neste sentido, a mais baixa percepção de violência (21,2%) corresponde a classe E (£ R$ 300,00) 16.
No entanto, embora a prevalência de uso de drogas ilícitas nos últimos três meses entre os entrevistados tenha sido inferior a 1,5%, na percepção de problemas da comunidade, o tráfico de drogas e o abuso de drogas tiveram elevada freqüência. Provavelmente esta maior percepção esteja vinculada à representação do risco das drogas para a sociedade e sua associação com o ingresso no mundo do crime, ao risco de morte violenta, à desestruturação da família, à dificuldade de vínculos de trabalho estáveis, entre outros, que fogem às possibilidades de controle e deterioram a qualidade de vida de qualquer família.
O abuso de álcool foi mais prevalente que o de drogas ilícitas e foi percebido como um problema grave por mais de 45% da população. Como a proporção que julga o abuso de álcool como grave é maior entre pessoas de menor escolaridade e renda, cabe pensar que essa percepção decorra da observação da população de comportamento agressivo associado ao consumo de álcool em bares, constatado por estudos dessa temática 17.
Diferenças de gênero na percepção da violência e segurança parecem sugerir maior susceptibilidade das mulheres 3. No inquérito de Campinas verificou-se maior percepção de gravidade dos problemas da comunidade pelas mulheres: 12 dos 17 problemas listados foram percebidos como graves em proporção significativamente maior que nos homens. Entre esses 12, apareceram cinco dos seis relacionadas à violência, e poder-se-ia acreditar que, embora a mulher seja muito menos vitimizada que o homem, ela fica mais afetada emocionalmente pelos problemas, verbaliza mais, ou recorre menos a mecanismos de negação.
Conclusão
Os problemas da comunidade percebidos como graves por 45% ou mais da população foram: tráfico de drogas, abuso de drogas, desemprego, criminalidade e abuso de álcool. Ser do sexo feminino e residir em bairro de nível sócio-econômico médio/baixo associou-se de forma significativa à percepção de maior gravidade de tráfico de drogas, abuso de drogas, abuso de álcool, abuso de crianças e esposa, desemprego e pobreza. A elevada freqüência de percepção de problemas que afetam a ordem social requer novos estudos que permitam compreender como os cidadãos podem enfrentar adequadamente esses problemas e que meios sociais podem ser adequados para controlá-los.
Colaboradores
L. Marín-León elaborou e redigiu o corpo deste artigo. N. J. Botega e H. B. Oliveira participaram da revisão de todas as versões do artigo. M. B. A. Barros e P. Dalgalarrondo realizaram importantes contribuições à versão final do manuscrito.
Agradecimentos
À Organização Mundial da Saúde e à Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo pelo financiamento do projeto. A Maria Cecília Goi Porto, pesquisadora do Instituto de Saúde, Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo, pela elaboração do plano amostral.
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Correspondência:
L. Marín-León
Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas.
Rua dos Alecrins 234, apto. 62, Campinas, SP
13024-410, Brasil.
leticia@fcm.unicamp.br
Recebido em 24/Jan/2006
Versão final reapresentada em 11/Out/2006
Aprovado em 14/Nov/2006