DEBATE DEBATE
Debate sobre o artigo de Correia et al.
Debate on the paper by Correia et al.
Luiz Carlos de Oliveira Cecílio
Departamento de Medicina Preventiva, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, Brasil. lcc@medprev.epm.br
Pessoas com transtornos mentais e delinqüentes: o desafio de garantir os avanços da reforma psiquiátrica brasileira
O conciso e bem escrito, o texto Direito das Pessoas com Transtorno Mental Autoras de Delitos pareceu-me vir, de forma oportuna, alertar para questões nem sempre colocadas no debate que se construiu no campo da reforma psiquiátrica brasileira. Ele aponta, com agudeza, sem tergiversação, para o papel do Estado nas sociedades ocidentais, em particular para a complexa rede de instituições que se constitui para que ele cumpra suas funções de controle e regulação da sociedade. Interessante chamar a atenção para o fato de que tal função disciplinar e excluidora da instituição psiquiátrica é, em si, menos evidente, ou foi preciso que fosse "denunciada" por certos movimentos sociais para que se tornasse mais visível do que quando se fala da prisão propriamente dita. De fato, foram os notáveis estudos de Michel Foucault que apontaram, com agudeza, como as finalidades políticas e normalizadoras das instituições psiquiátricas ficavam como que obscurecidas por suas supostas funções "técnicas e neutras", ancoradas no saber da Psiquiatria e, portanto, da medicina oficial. A luta antimanicomial tem aí seu eixo central: denunciar o manicômio/prisão e seu papel de violência e de violação de direitos básicos de cidadania.
Penso que o artigo, ao tratar de responder a questão "o que fazer com os delinqüentes que são loucos, ou, com os loucos que são delinqüentes", nos faz recordar a lógica cruel e complementar do funcionamento das duas instituições totais máximas que conhecemos: o hospício e a prisão. Mas, principalmente, nos apontar como uma reforma psiquiátrica conseqüente, inevitavelmente, terá de enfrentar tais questões. Resolver o dilema: como não "contaminar" as conquistas no sentido do desmonte da instituição psiquiátrica e da humanização das pessoas com problemas mentais, com o tratamento judicial e punitivo que se cobra e se espera que o Estado imponha a quem cometa delitos imputáveis, mesmo quando consideradas portadoras de "problemas mentais". A idéia de "o respeito aos direitos humanos não implica a imputabilidade", como está dito no resumo, me pareceu sintetizar com precisão o dilema posto pelo artigo.
Para finalizar, gostaria de dizer que a leitura do artigo me remeteu a um precioso livro de Michel Foucault intitulado Un Diálogo sobre el Poder y Otras Conversaciones 1, que não foi citado na elaboração do artigo, e que trata, com bastante profundidade boa parte dos temas apontados no texto, incluindo da delinqüência juvenil às dissidências políticas em vários países, denunciando o quanto o sistema psiquiátrico/prisional constitui um conjunto de vasos comunicantes para que o Estado possa cumprir suas funções repressoras. Fica como minha sugestão de leitura complementar para os interessados pelo tema.
1. Foucault M. Un diálogo sobre el poder y otras conversaciones. Madrid: Editorial Alianza; 1981.