DEBATE DEBATE

 

Debate sobre o artigo de Rigotto & Augusto

 

Debate on the paper by Rigotto & Augusto

 

 

Christovam Barcellos

Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. xris@fiocruz.br

 

 

O território: entre o ambiente e a saúde

Neste período em que vivemos, de aceleração dos ritmos de vida, da "contração tempo-espaço" e da perda de identidades com os lugares, é oportuno lembrar a importância do território na formação política e econômica da sociedade, como fazem as autoras desse trabalho. Quase sempre transparece dos textos sobre globalização a falsa impressão de que vivemos hoje dissociados do espaço e que o território perdeu sua importância original, de apropriação. Esse mito foi analisado com profundidade por Haesbaert 1, que ressalta que as redes de troca de informações e mercadorias, ao contrário de dissolver territórios, constituem e legitimam novos territórios. No espaço geográfico se manifestam variáveis globais de ação local e outros processos, de origem local de pequena amplitude, com resultantes também locais. A organização dessas redes permite, cada vez mais, que esses processos sejam simultâneos e abrangentes.

A produção de itens agrícolas é, cada vez mais, pautada por demandas e normas globais, é verdade, mas esta produção acontece em determinados territórios, que não são escolhidos ao acaso, mas seguem critérios de disponibilidade de recursos para produção e consumo. A globalização, materializada em redes, permite dilatar a distância entre centros de produção, de consumo e de acumulação de capital, aumentando as desigualdades territoriais.

Os territórios são palcos de conflitos entre grupos que se apropriam de benefícios e outros que arcam com danos à saúde e ao ambiente. Desse modo, a primeira tarefa de estudos acerca do impacto de projetos de desenvolvimento sobre a saúde é reconhecer esses grupos e as formas de resistência e apropriação que podem ser mobilizadas para garantir condições de vida e saúde das populações afetadas. Mais que isso, esses conflitos se dão em escalas geográficas diferentes. Muito provavelmente, os principais beneficiados por esses projetos estarão a centenas ou milhares de quilômetros do local de sua implantação. Já os impactos negativos são, na maior parte das vezes, restritos ao entorno próximo dos projetos. Mas os projetos de desenvolvimento não podem ser vistos como estrangeirismos, alheios à dinâmica social local. Para que se viabilizem, necessitam conquistar atores sociais locais. Assim foi com a cultura da cana no Nordeste no período colonial e assim se passa hoje com a soja, que possui poderosos aliados no aparelho de Estado e na sociedade civil.

O bordão norte-americano "not in my backyard" explicita um conflito entre o local e o regional, ou mesmo global. Ao mesmo tempo em que no nível regional se reconhece a necessidade de projetos de desenvolvimento, se observa uma resistência para a localização de instalações perigosas nos níveis locais. Queremos uma grande indústria siderúrgica no nosso estado, mas não no nosso bairro. Queremos um hospital na nossa cidade, mas não no nosso quarteirão. Dessa maneira, os conflitos sócio-ambientais se caracterizam também por uma tensão entre escalas onde se processam as decisões sobre alocação de projetos que envolvam riscos à saúde ou deterioração das condições de vida.

O artigo de Raquel Maria Rigotto & Lia Giraldo da Silva Augusto provoca diversas indagações que podem ajudar a pensar o papel da Saúde Coletiva na promoção de melhores condições de vida, através de uma abordagem territorial. Qual o impacto de modelos de produção voltados para demandas externas sobre comunidades locais? Como o território, usado pelos diferentes atores sociais, pode se converter em uma estratégia de fortalecimento dessas comunidades? Como se pode promover uma gestão mais eqüitativa e democrática desse território?

Gostaria de contribuir para este debate relembrando os significados de ambiente e território e suas implicações sobre as políticas de saúde. Ambiente é uma categoria operacional, antes de ser um conceito, que representa tudo o que nos cerca e nos afeta. Ambiente é um sistema complexo e organizado, amplo e aberto.

Por outro lado, o território é classicamente uma delimitação de poder, e por isso um recorte do espaço, usado para a dominação e apropriação de recursos. O território é uma instância do poder e este poder é exercido não só pelo Estado, mas por atores sociais com interesses conflituosos. Nesse território se expressam a produção, o consumo e a interação humana, daí sua conotação de identidade e subjetividade coletiva.

A distribuição desigual da população no espaço atua também como fonte de outras desigualdades, que se refletem na diferenciação de perfis epidemiológicos, de acesso aos serviços de saúde e de condições ambientais entre grupos sociais. Levantamentos realizados sob a ótica da justiça ambiental têm demonstrado que a contaminação não ocorre de forma equânime no espaço. De alguma forma, há uma tendência de concentração de populações de menor poder aquisitivo e baixa capacidade de organização no entorno de locais ambientalmente degradados. Desse modo, ambiente, condições de vida e situação de saúde formam uma tríade indissociável de fatores com múltiplas e complexas interações. A mediação entre esses fatores se dá pelas relações que esses grupos estabelecem com seu território.

Apesar de necessária, a adoção de limites espaciais para se estudar e atuar sobre as condições ambientais e de saúde é reconhecidamente artificial. Nem o ambiente pode ser completamente constrito dentro dos limites de um território, nem os processos sociais se restringem a estes limites. O território pode ser utilizado como estratégia para a coleta e organização de dados sobre ambiente e saúde, mas deve-se manter claro que os processos sociais e ambientais transcendem estes limites. Obviamente, a atmosfera e o sistema hídrico não podem estar constritos aos limites político-administrativos de um determinado território. Dessa maneira, referir-se à qualidade do ar em um determinado bairro consiste em um esforço de generalização de dados.

Incorporar um dado do ambiente – contínuo – a um território – fragmentado – permite pensar a implementação da política ambiental, que nada mais é que a internalização do vetor ambiental nas várias políticas territoriais 2. Como o território é resultado da organização da sociedade, incorporar dados ambientais a este território permite colocar sobre uma base comum fatores que são da natureza exterior e interior a esta sociedade. Além disso, pelo fato do território ter um caráter de identidade e de organização da população, referir-se à qualidade ambiental de um determinado território promove a politização da questão ambiental e a instrumentalização dos atores sociais para o seu enfrentamento. Mais uma vez, a noção de território como apropriação se faz atual e imprescindível.

 

 

1. Haesbaert R. O mito da desterritorialização: do "fim dos territórios" à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2004.

2. Moraes ACR. Meio ambiente e ciências humanas. São Paulo: Editora Hucitec; 1994.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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