DEBATE DEBATE
Debate sobre o artigo de Rigotto & Augusto
Debate on the paper by Rigotto & Augusto
Marcelo Coutinho Vargas
Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, Brasil. vargasm@terra.com.br
O texto de Raquel Maria Rigotto & Lia Giraldo da Silva Augusto constitui, a meu ver, um esforço consistente e bem sucedido de enquadramento teórico e demarcação de um campo de investigação essencial à pesquisa social contemporânea e à qualidade de vida dos cidadãos: o das relações entre saúde, ambiente e território, que interagem numa teia complexa de influências mútuas condicionadas por aspectos econômicos, políticos e sócio-culturais. Embora a análise se situe predominantemente em níveis de abstração abrangentes, as autoras procuram fundamentar e especificar suas considerações teórico-conceituais com a análise de alguns dados e indicadores empíricos da situação atual em que o Brasil se encontra na interface entre essas três dimensões interligadas no processo de desenvolvimento.
Boa parte da argumentação teórica do texto, em sintonia com as referências bibliográficas (clássicas e atuais) mais importantes para o debate em questão, consiste justamente em questionar a ideologia do desenvolvimentismo e os pressupostos do conceito de "desenvolvimento sustentável" que, desde meados da década de 80 do século passado, vem tomando o lugar do primeiro no discurso dominante mas nem tanto na prática dos agentes políticos e econômicos. Neste debate, que se entrecruza com a emergência da globalização e da sociedade de risco, a noção de "(in)justiça ambiental" aparece como foco de análise principal, ao ressaltar que a maior parte dos danos ambientais derivados do modelo hegemônico de desenvolvimento tende a recair quase sempre sobre os grupos sociais mais vulneráveis. Por fim, na proposta teórica das autoras, cabe ainda considerar o território, em suas múltiplas determinações, como um "operador útil" para analisar as iniqüidades sócio-ambientais envolvidas nas interações entre saúde, ambiente e desenvolvimento.
Não tenho discordâncias mais profundas com a abordagem do tema proposta no artigo, que demonstra sólido embasamento teórico-conceitual. Mas contesto pontualmente algumas análises e afirmações que, a meu ver, pecam por certo esquematismo, ao que parece derivado de uma perspectiva "politicamente correta" de esquerda, cujas implicações tendem a obscurecer reflexões mais isentas sobre o problema investigado. Assim, diversas passagens do texto deixam entrever uma contraditória sobrevalorização das iniciativas de "movimentos sociais e organizações populares" em prol do desenvolvimento sustentável, acompanhada de uma desvalorização paralela dos papéis tanto do mercado (leia-se empresariado, investidores, consumidores) como da própria esfera estatal. Um exemplo disso encontra-se na proposição de que, para "resgatar a idéia de sustentabilidade", bem como defender a sociedade (ou os grupos sociais vulneráveis) da injustiça ambiental, seria preciso "refutar a tese do mercado produzir, consumir, crescer".
Ora, não se trata de negar a necessidade imperiosa de desmercantilizar os direitos sócio-ambientais elementares que devem integrar uma noção democrática e civilizada de cidadania, mas sim de reconhecer que os agentes da produção, sejam patrões, gerentes ou empregados, tanto quanto os consumidores, têm importante contribuição a dar para a "modernização ecológica" da sociedade contemporânea, por meio de práticas orientadas para o crescimento sustentável mediante a racionalização do uso e do consumo de energia e recursos naturais. Ora, após o colapso da União Soviética e de outras experiências socialistas, inclusive no plano ecológico, não cabe mais negar as influências do mercado sobre as decisões econômicas e políticas dos diversos agentes sociais na era de "mundialização do capital", mas antes fazê-las jogar a favor da sustentabilidade sócio-ambiental através da utilização de instrumentos econômicos como a cobrança pelo uso da água ou o princípio do poluidor pagador, entre outros, conjugados a medidas jurídico-administrativas tradicionais de comando e controle, por parte do Estado, na implementação das políticas ambientais. No mesmo sentido, endossar acriticamente o discurso dos trabalhadores das empresas públicas de saneamento ambiental contra a "privatização" deste setor em nome da eqüidade é desconsiderar que o corporativismo também pode ser uma forma disfarçada de privatização dos serviços públicos, ao mesmo tempo em que a concessão de tais serviços a operadores privados pode ser eficazmente regulada, tendo em vista objetivos sociais de eqüidade e universalização, usando-se mecanismos contratuais e arranjos institucionais adequados 1.
No que tange ao papel do Estado na gestão do território, face ao processo de globalização das últimas décadas, os argumentos revelam-se parcialmente contraditórios. Com efeito, as autoras propõem que, na conjuntura política e econômica atual, uma nova territorialidade estaria surgindo no cruzamento entre "forças produtivas" e "forças sociais", cujas respectivas estratégias contribuiriam para romper com a exclusividade do poder do Estado sobre o território. Seja valorizando a competitividade das empresas, o capital natural ou a identidade cultural e autonomia dos espaços locais e regionais, as estratégias de valoração do território por parte das empresas, de organizações populares e movimentos sociais implicariam a redução do "poder de controle do estado sobre a dinâmica do processo produtivo e da sociedade nacional". Ora, parece-me que o Estado, nos diferentes níveis de governo, fortalecido por alianças estratégicas com outros estados e a sociedade, continua tendo um papel preponderante nas políticas de desenvolvimento sustentável e ordenamento territorial, seja no plano da negociação e implementação de tratados e regimes internacionais, seja na regulação do uso e ocupação do solo, ou ainda no incentivo ao desenvolvimento de arranjos produtivos locais na esfera municipal ou microrregional.
Essa relativa desvalorização do papel do Estado parece refletir uma visão simplificadora e algo desatualizada do fenômeno da globalização, cuja "força totalitária" se impôs aos países em desenvolvimento durante a conjuntura neoliberal dos anos 90, sob influência do chamado Consenso de Washington. Ora, não se pode negar que, ao lado dessa globalização hegemônica que se formou naquela conjuntura, em grande parte já superada em diversos países latino-americanos e mesmo no âmbito das instituições multilaterais que a preconizavam, também estão ocorrendo processos de globalização contra-hegemônica que unem movimentos e redes sociais transnacionais em prol de alternativas de economia solidária e inclusão social que desafiam as desigualdades e injustiças do mercado global 2. Embora reconheçam essa possibilidade, as autoras parecem limitá-la ao pólo dos movimentos populares, numa visão desarticulada da construção de políticas estatais soberanas, ao proporem a construção de alianças e "redes sociais com aqueles que estão à margem dessas [novas] tecnologias".
Por último, não posso deixar de criticar o uso abusivo de categorias explicativas excessivamente abrangentes, como "modelo de desenvolvimento", cuja "insustentabilidade", por si só, explicaria fenômenos tão diversos quanto a degradação ambiental e a mortalidade masculina de jovens adultos e adolescentes relacionada à violência e acidentes de trânsito. Mas as autoras certamente não estão sozinhas nessa tentação de envolver questões muito diversas em um amálgama interpretativo cuja generalidade termina por nada explicar. Pode-se dizer, inclusive, que indicam uma pista muito sugestiva para superar ao mesmo tempo uma tal tentação e o erro oposto: a fragmentação da análise. Trata-se precisamente de ancorar a análise do ambiente, do desenvolvimento e da saúde nas estratégias de gestão integrada do território, que consiste numa profícua agenda de pesquisa a ser desenvolvida por todo cientista social comprometido com o futuro do país.
1. Vargas MC. O negócio da água. Riscos e oportunidades das concessões de saneamento à iniciativa privada: estudos de caso no Sudeste brasileiro. São Paulo: Annablume/Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo; 2005.
2. Santos BS, organizador. Globalização e ciências sociais. São Paulo: Cortez Editora; 2003.